Movimentação na praia do Leblon, no Rio de Janeiro (RJ), neste domingo (14). (BRUNO MARTINS/Estadão Conteúdo)
Agência O Globo
Publicado em 26 de janeiro de 2022 às 08h42.
Onipresente no verão do Brasil, o calor registra ondas extremas cada vez mais frequentes, intensas e prolongadas, a exemplo da bolha tórrida que aprisionou o Sul do país nas últimas duas semanas e pode ser a mais longa da história da região. Morrer de calor não é figura de linguagem: é um risco real, alertam cientistas. As altas temperaturas estão entre os grandes problemas de saúde pública da década no planeta, destaca a revista Lancet, que dedicou ao tema uma série especial de estudos.
O ano de 2021 foi o sexto mais quente da História, segundo a Nasa e a Agência Americana de Oceanos e Atmosfera (Noaa, na sigla em inglês). Porém, mais grave ainda é a tendência de aquecimento. Os dez anos mais ardentes da vida humana foram registrados nos últimos 12. A bolha infernal do Sul deve arrefecer esta semana, mas o calor seguirá no país.
Nem é preciso chegar a 40oC para que o calor mate. Quando o termômetro marca acima de 29oC na cidade de São Paulo, o número de mortes por causas naturais aumenta 50%, afirma Paulo Saldiva, professor titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que há décadas estuda o impacto do meio ambiente sobre a saúde.
Autor de numerosos estudos sobre a influência da temperatura e da poluição na saúde, Saldiva também integrou o grupo internacional que no ano passado publicou na revista Nature Climate Change pesquisa mostrando a correlação entre as mortes nas ondas de calor e as mudanças climáticas.
Integrante do mesmo grupo, Micheline Coelho, pesquisadora do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da USP, diz que em cidades como São Paulo, a partir de 25oC já começa a existir uma associação com hospitalização e morte.
São mortes causadas por um assassino oculto que tem muitas faces.
— Ninguém tem estampado na testa que morreu disso. A causa pode ser um AVC, um infarto. Quase sempre são pessoas com doenças crônicas, como pacientes renais. Mas quem puxa o gatilho é o calor — diz Saldiva.
O calor afeta a todos, mas há pessoas mais vulneráveis. Obesos (a gordura retém mais calor), mulheres (têm maior composição de gordura), crianças (o sistema de regulação da temperatura é imaturo), idosos (o mesmo sistema começa a ter falhas), diabéticos, cardíacos e pacientes renais são mais sensíveis. O mesmo pode ser dito de profissionais que trabalham expostos ao sol.
Renda também é fator de risco, enfatiza Coelho. Pessoas que não têm acesso a ar condicionado, moram em casas mal ventiladas e se espremem em ônibus e trens lotados têm mais chance de sofrer estresse térmico.
E mesmo o mais saudável, esguio e endinheirado dos mortais está sujeito a ir parar no hospital e até morrer caso pratique atividade física desafiando o calor.
Saldiva, Coelho e pesquisadores da Universidade de Monash, na Austrália, publicam este ano um estudo sobre o impacto do calor em pacientes renais, com números de 1.816 cidades brasileiras, colhidos num período de 15 anos. O resultado mostra que as altas temperaturas respondem por 7% das internações do SUS.
O ser humano controla sua temperatura de duas formas. A primeira é por meio dos vasos sanguíneos que se dilatam para levar mais sangue até a pele, para que o calor possa ser irradiado para fora do corpo. O segundo é por meio do suor, que refresca a pele por evaporação. Quando eles não funcionam, morremos.
O calor adoece e mata de diferentes formas. Um estudo do grupo de Camilo Mora, da Universidade do Havaí, lista 27 formas pelas quais ele pode ser fatal. São cinco mecanismos fisiológicos podem ser deflagrados pela temperatura elevada: isquemia (redução ou interrupção da irrigação sanguínea), citotoxidade (envenenamento das células), inflamação, coagulação intravascular disseminada (formação de trombos que podem destruir órgãos) e rabdomiólise (síndrome causada pela destruição das fibras musculares).
O calor pode impactar gravemente sete órgãos: cérebro, coração, intestinos, fígado, rins, pulmões e pâncreas.
Quando o corpo é aquecido, o hipotálamo ativa uma resposta cardiovascular, que dilata os vasos sanguíneos e redireciona o sangue para a pele, onde o calor é dissipado para o ambiente. O problema é que isso prejudica a irrigação de outros órgãos, como o pâncreas. Com a baixa oxigenação, o organismo libera moléculas tóxicas.
O corpo também perde muito líquido na tentativa de se aliviar pelo suor. Em excesso, essa reação desidrata o corpo e torna o sangue viscoso, afetando os rins e o coração, que são mais exigidos. A desidratação também causa vasoconstrição, que eleva o risco de trombose e de derrame.
O calor extremo mergulha o corpo no caos. O cérebro deixa de receber oxigenação suficiente e falha no comando do organismo.
— A pressão sanguínea é alterada, causando um efeito dominó, no sistema respiratório, nos rins e em outros órgãos. A pessoa deixa de trocar calor com o ambiente e pode sofrer desmaios e até, nos casos graves, um choque térmico letal — explica Coelho.
Acima de 39oC, 40oC, enzimas fundamentais para o metabolismo sofrem uma queda abrupta na velocidade das reações químicas necessárias à vida. O corpo começa a parar, de quebrar proteínas e açúcares para obter nutrientes e energia.
A tolerância ao calor varia de um indivíduo para outro e também do seu entorno. Embora o calor seco, como na atual onda do Sul, seja terrível, a umidade é ainda pior. Ela impede que o suor evapore e regule a temperatura.
O consenso científico dita como limite para a sobrevivência humana a temperatura de bulbo úmido de 35oC, equivalente a 35oC no ambiente com 100% de umidade do ar, ou 38,9oC com 77% de umidade.
Acima disso, uma pessoa, mesmo que à sombra, não sobrevive por mais de seis horas, segundo uma pesquisa publicada em 2020 na revista Science Advances. Nesse caso, o ser humano perde a capacidade de regular a própria temperatura.
O corpo se torna hipertérmico (acima dos 40oC de febre). A pulsação dispara, surge confusão mental, o suor cessa, sobrevem o desmaio. E, se não houver rápida assistência, a consequência pode ser coma e morte, diz um alerta do Institutos Nacionais de Saúde dos EUA.
Até hoje, a tal temperatura de bulbo úmido jamais foi registrada. Mas está mais perto. Desde 1979, há um aumento de cinco dias de calor e umidade extremos por década, sobretudo nas áreas mais povoadas das regiões tropical e subtropical do mundo, o que inclui o Brasil.