Ciência

Não é doping: quais são os usos do canabidiol, liberado na Olimpíada

Extraído da flor da maconha, o canabidiol revolucionou o tratamento de doenças como a epilepsia e outras síndromes do sistema nervoso central. Agora, com o avanço do entendimento de suas propriedades médicas, a substância se tornou aliada dos esportistas de alto rendimento

O efeito antinflamatório é o principal interesse dos atletas que consomem o CBD (Tinnakorn Jorruang/Getty Images)

O efeito antinflamatório é o principal interesse dos atletas que consomem o CBD (Tinnakorn Jorruang/Getty Images)

LP

Laura Pancini

Publicado em 30 de julho de 2021 às 06h00.

Última atualização em 31 de julho de 2021 às 09h58.

O maratonista Daniel Chaves foi diagnosticado com síndrome bipolar depressiva logo depois dos Jogos Olímpicos do Rio em 2016. Ele perdeu a chance de se classificar para a competição por 18 segundos na corrida de 10.000 metros. A ausência dos jogos levou a problemas psicológicos e muitas dificuldades em sua carreira de atleta, até que Chaves encontrou o equilíbrio físico e mental, com ajuda do canabidiol (CBD). 

Hoje, prestes a competir na Olimpíada de Tóquio, Chaves é um dos atletas brasileiros que mais promovem o uso do não-psicoativo. A substância extraída da Cannabis sativa tem imenso potencial terapêutico e auxilia em casos de ansiedade, depressão e dores (crônicas ou não), além de melhorar a qualidade do sono.

Sem a nova legislação da Agência Mundial Antidoping (Wada), Chaves e outros esportistas  estariam em uma situação completamente diferente. Desde janeiro de 2018, o canabidiol não é mais considerado doping e passou a ser utilizado por atletas olímpicos.

“A Olimpíada já começa com uma quebra de barreira, que é tirar essa mística negativa e o preconceito sobre o canabidiol”, disse Renato Anghinah, professor da Faculdade de Medicina da USP e CMO (Chief Medical Officer) da HempMeds, primeira empresa autorizada pela Anvisa a importar o CBD no mercado brasileiro sob prescrição médica.

Porém, as coisas não são tão simples assim: os atletas devem garantir que o produto com CBD não tenha mais do que 0,3% de THC, substância psicoestimulante da cannabis e responsável pelos efeitos principais da droga maconha.

A atleta norte-americana Sha’Carri Richardson, por exemplo, testou positivo para maconha no exame antidoping e recebeu uma suspensão de um mês, o suficiente para deixá-la de fora das Olimpíadas este ano.

Por enquanto não há dados sobre quantos atletas, brasileiros ou não, fazem uso do CBD. Uma série de coincidências, porém, fez com que ela tivesse um crescimento especial no último ano: em 2020, a Wada proibiu que atletas usassem corticoides a partir de 2021, sem expectativa que os jogos seriam atrasados pela pandemia.

O corticoide tem propriedade anti-inflamatória e é largamente usado no esporte. Com a proibição e as Olimpíadas deslocadas para o ano seguinte, os atletas buscaram outra substância com o mesmo benefício antiflogístico: o canabidiol.

Ítalo Penarrubia, 30, não está em Tóquio, mas começou a usar os produtos da HempMeds em 2016 para lidar com dores crônicas, ansiedade e dificuldade para dormir. Penarrubia tem 16 anos de carreira no skate e já ganhou medalha de ouro no torneio X Games, considerado os “Jogos Olímpicos dos esportes radicais”.

“Em um esporte como o meu, que tem bastante lesão, o CBD salva minha vida diariamente”, disse Penarrubia à EXAME, que relata que a pomada e o óleo de canabidiol o ajudam na recuperação. “Consegui excluir os remédios da minha vida e hoje posso dizer que o canabidiol tem me ajudado para tudo”.

Anghinah descreve o crescente número de atletas olímpicos que fazem uso do canabidiol como uma medalha de ouro para a medicina canábica. “Atletas são sinônimos de saúde. Eles podem usar [CBD], é comprovado que não faz mal e que não dá nenhum tipo de vantagem nos esportes, e as Olimpíadas permitem que isso aconteça”, disse.

A função do CBD

Pesquisas científicas recentes têm demonstrado os benefícios do CBD no tratamento de inúmeras doenças neurológicas, como epilepsia, Parkinson, esclerose múltipla e depressão.

Mais recentemente, devido ao seu efeito anti-inflamatório e analgésico, há indicadores de que a substância é ideal para portadores de dores crônicas, como osteoartrite, fibromialgia e, no caso dos atletas de alto rendimento, para acelerar a recuperação pós-exercício.

Para a médica Débora Sanchez, consultora da plataforma Dr. Cannabis, o CBD é uma alternativa mais segura e eficaz do que muitas das opções acessíveis atualmente. “O processo contínuo de treinamento causa grande estresse ao organismo. No processo de recuperação, o músculo que foi lesionado produzirá uma inflamação e nesse ponto o CBD tem um papel importante", afirma.

O canabidiol, diferente de corticoides e opióides, ou até mesmo do ibuprofeno que é mais usado no dia a dia para alívio da dor, não causa danos no trato gastrointestinal, e também não possui um interação conflituosa com outras substâncias, como o álcool. "Também há um efeito neuroprotetor. Os atletas estão muito sujeitos a lesões cerebrais leves, e neste ponto, o CBD tem uma grande capacidade de amenizar essa inflamação e até do agravamento de algum problema neurológico", diz Débora.

Para discutir as mais recentes aplicações medicas da cannabis, a plataforma Dr. Cannbais está promovendo o congresso CNABIS, que ocorre em agosto. O evento terá paineis educativos destinado a médicos, profissionais da saúde e ouvintes interessados no uso medicinal dos canabinoides. As inscrições são gratuitas e feitas pelo link.

De onde vem a proibição  

Quando se trata de doping, é preciso entender que existem proibições que não são justificadas apenas por serem substâncias que visam melhora no desempenho do atleta. A cannabis e seus derivados entram neste critério. 

A testagem de drogas pela Wada foi iniciada em 1999 após vários escândalos de doping de alto nível nas Olimpíadas ocorrerem. A princípio, quando foi elaborada a lista de substâncias banidas do esporte, a maconha era ilegal em quase todos os países do mundo. Incluí-la na tabela de restrição, neste caso, era mais para evitar problemas com as regulações locais de cada país, do que uma proibição baseada em evidências de vantagem esportiva para os usuários.

Logo, não tardou para que atletas fossem pegos consumindo a erva. O velocista americano John Capel foi o primeiro a ser afastado por dois anos depois de um segundo teste positivo para THC em 2006. Só em 2009, quando o nadador Michael Phelps teve fotos vazadas fumando maconha e, entre perdas de patrocínios, foi impedido de competir por três meses, que se teve uma das primeiras comoções públicas sobre a função da planta na vida dos atletas. 

Na última década, a situação legal da maconha e a recepção cultural do tema começou a mudar. O Uruguai foi o primeiro a tornar legal a compra e venda de cannabis para uso recreativo em 2013, com o Canadá seguindo o processo em 2018. Muitos outros países a descriminalizaram até certo ponto, incluindo África do Sul, Austrália, Espanha e Holanda.

Nos Estados Unidos, é ilegal em âmbito federal, mas é legal em cerca de um terço dos estados. No Brasil, o uso do CBD e derivados medicinais cresce fora dos esportes. De acordo com dados da Anvisa, o número de pacientes emitindo solicitações iniciais foi de 6.459 para 15.510 entre 2019 e 2020, representando um aumento de 140%.

A expectativa é que o mercado nacional chegue a 4,7 bilhões de reais em três anos, segundo a empresa de pesquisas New Frontier Data. Só a HempMeds teve aumento de 20% na receita nos seis primeiros meses de 2021, o que a companhia credita ao aumento de médicos prescritores e pacientes “reconhecendo cada vez mais os efeitos positivos dos tratamentos com o canabidiol”. Entretanto, no esporte, não existe previsão de quando o THC que vai parar na corrente sanguínea dos atletas por razões recreativas vai deixar de ser ilegal.

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