Coronavírus: modelos já bem estabelecidos para outras infecções respiratórias podem ser adaptados com relativa facilidade (Wolfgang Rattay/Reuters)
Victor Sena
Publicado em 5 de março de 2020 às 10h57.
Última atualização em 6 de março de 2020 às 11h21.
São Paulo — No arsenal ao qual cientistas recorrem com o intuito de combater epidemias, os modelos matemáticos estão entre os itens estratégicos. Mais do que estimar como será a disseminação da doença, o número de infectados e o percentual de mortes e hospitalizações, essas ferramentas permitem simular inúmeros cenários e, assim, testar a eficácia de intervenções que podem ser adotadas pelas autoridades de saúde para reduzir o contágio, como o fechamento de escolas, o cancelamento de eventos públicos e a restrição de viagens.
Modelos já bem estabelecidos para o estudo da gripe e outras infecções respiratórias podem ser adaptados com relativa facilidade para prever a disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2), auxiliando governos e gestores de saúde no planejamento de ações para conter a transmissão e atender os doentes. Faltam, no entanto, algumas informações-chave para tornar as estimativas minimamente precisas, como, por exemplo, o percentual de pessoas que se infectam e não manifestam sintomas.
“Indivíduos com febre, tosse e desconforto respiratório têm maior probabilidade de irem ao hospital e serem testados. Os assintomáticos, por outro lado, não vão ao médico e, mesmo sem saber, podem transmitir o vírus para familiares, amigos e colegas de trabalho. Para descobrir quantas pessoas estão nessa condição seria necessário testar todo mundo – algo impossível neste momento, pois é preciso poupar recursos para o atendimento de quem está realmente doente”, disse a matemática Sara Del Valle, especialista em modelagem de doenças infecciosas do Laboratório Nacional de Los Alamos, nos Estados Unidos.
Na avaliação de Marcelo Gomes, pesquisador do Programa de Computação Científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), além do percentual de assintomáticos também é crucial determinar a taxa de infectividade desses casos, ou seja, o quanto indivíduos sem sintomas são capazes de transmitir o vírus. “Isso pode alterar drasticamente a capacidade de controlar a propagação da Covid-19. Se a transmissão ocorrer majoritariamente a partir de pessoas com sintomas, o cenário é mais favorável. Porém, em uma situação inversa, seriam necessárias medidas para reduzir o contato entre as pessoas que alcancem toda a população, como o fechamento de escolas, por exemplo”, disse.
Outro fator importante e que ainda não está claro é por quanto tempo pacientes curados permanecem imunes ao vírus. “Há relatos de pessoas que tiveram alta e, após alguns dias, voltaram a manifestar sintomas, foram testadas e tiveram resultado positivo para Covid-19 novamente.
Pode ter sido uma recaída como também pode ser uma nova infecção. Neste segundo caso, a dinâmica da epidemia muda completamente, pois a imunidade temporária – se de fato existir – é muito curta, o que impede a ocorrência de um fenômeno epidemiológico conhecido como imunidade de rebanho, uma espécie de barreira de transmissão formada por indivíduos previamente infectados”, disse Gomes.
Del Valle e Gomes participaram, no dia 3 de março, de uma sessão especial sobre Covid-19 realizada durante o Workshop on Modelling of Infectious Diseases Dynamics, organizado pelo Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR) – um centro de pesquisa apoiado pela FAPESP e sediado no Instituto de Física Teórica (IFT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São Paulo. A mesa de discussão contou com a pesquisadora Carrie Manore, também de Los Alamos.
Durante o evento, a frase “estamos apenas no começo” foi repetida inúmeras vezes pelos especialistas quando se referiam ao número de casos confirmados de Covid-19 no mundo.
No Brasil, segundo Gomes, torna-se mais difícil conter a disseminação à medida que o vírus invade a Europa e os Estados Unidos, locais com o qual o país mantém maior intercâmbio de turistas e viajantes a trabalho. Invasão nesse caso, ressalta o pesquisador, significa a existência de transmissão interna da doença e não apenas o registro de casos importados.
Com base em dados de tráfego aéreo, Gomes avalia que São Paulo é a cidade com maior risco de apresentar novas infecções no curto prazo, pois é onde desembarca a maior parte dos passageiros internacionais. As cidades que mais recebem voos oriundos da capital paulista são, na ordem, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Brasília, Curitiba, Belo Horizonte, Salvador e Recife.
“Ainda é cedo para afirmar com precisão qual é a taxa de letalidade da Covid-19 e se a doença representa um problema de saúde pública maior do que a gripe sazonal ou as enfermidades causadas pelos coronavírus que já circulavam entre os humanos”, disse Gomes.
Ele arrisca prever, contudo, que caso o surto atual não seja adequadamente controlado, o SARS-CoV-2 pode se tornar um patógeno endêmico no país, que reaparece sazonalmente como o H1N1, um dos causadores da gripe.
“Não conseguimos conter o surto de H1N1 em 2009 e, agora, todo ano ele volta com pequenas modificações”, disse. "Por outro lado, essa experiência trouxe muitos ensinamentos para os profissionais em saúde pública e a comunidade científica internacional. Hoje estamos melhor preparados para lidar com pandêmias. No Brasil, o Ministério da Saúde implementou a rede de vigilância de casos de síndrome respiratória aguda grave [SRAG], que estabeleceu a notificação obrigatória dos casos em território nacional. O desenvolvimento do InfoGripe [ferramenta de análise e monitoramento de casos de SRAG no Brasil e gera alertas semanais] não seria possível sem a rede de vigilância estabelecida em 2009."
Se por um lado as mídias sociais contribuem para a propagação de notícias falsas sobre os mais variados temas – saúde entre eles –, por outro representam uma fonte valiosa de dados para pesquisadores dedicados a rastrear surtos de doenças infecciosas, como é o caso de Del Valle. Seu grupo em Los Alamos tem usado plataformas como Twitter, Google e Wikipedia para monitorar malária, dengue, gripe e outras doenças sazonais.
“Durante a temporada de dengue no Brasil, por exemplo, podemos notar um aumento nas buscas por informações relacionadas à doença. À medida que os casos começam a diminuir, também caem as buscas on-line e as postagens em rede social. Assim, conseguimos saber quando está ocorrendo um surto na região”, contou a pesquisadora à Agência FAPESP.
A estratégia, porém, ainda não pode ser usada para a Covid-19. “Todo mundo está fazendo buscas e falando sobre o novo coronavírus neste momento e isso diminui a nossa capacidade de estudar a disseminação por esse método. Podemos, no entanto, usas as mídias sociais para monitorar comportamentos emergentes, como uso de máscaras, cancelamento de viagens e lavagem frequente das mãos. São fatores que impactam a expansão da epidemia”, disse.
De acordo com Gomes, justamente porque a população tende a alterar seus hábitos comportamentais diante de uma ameaça como a Covid-19, prever o número de infectados no longo prazo é muito difícil, mesmo com modelos robustos.
“A adoção de medidas como evitar aglomerações e ficar em casa quando tiver sintomas pode ter um impacto significativo nos números”, afirmou.
A importância de vacinar a população contra a gripe foi ressaltada por todos os especialistas que participaram do evento. Segundo eles, com menos infecções pelo influenza, torna-se mais fácil identificar os casos de Covid-19 e a sobrecarga no sistema de saúde é reduzida. No Brasil, o início da campanha de vacinação foi antecipado 23 dias, e terá início em 23 de março. O Instituto Butantan se mobilizou para produzir 75 milhões de dose – 13% a mais que no ano anterior.
Tanto na avaliação de Del Valle quanto de Gomes, a existência de um sistema público e universal de saúde coloca o Brasil em uma posição de vantagem no que diz respeito à identificação de casos do novo coronavírus – algo essencial para a contenção da epidemia.
“Nos Estados Unidos, muitos cidadãos não têm nenhum tipo de seguro de saúde. O acesso a hospitais e clínicas, portanto, é mais limitado e isso deve contribuir para aumentar os casos por lá”, afirmou Del Valle.
Gomes ressalta que mesmo os norte-americanos cobertos por seguro podem não ter acesso ao teste molecular capaz de diagnosticar o novo coronavírus. “Recentemente foi divulgado o relato de um paciente que se encaixava nos critérios de caso suspeito. Ele foi encaminhado para o exame laboratorial, mas o plano negou a cobertura. O teste custa cerca de US$ 3 mil [R$ 13,5 mil], algo inacessível para muitas pessoas”, disse.
No Brasil, contou Gomes, todos os hospitais públicos estão aptos a identificar casos suspeitos, que são encaminhados para os Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens) e, posteriormente, para os laboratórios de referência para a contraprova, como o Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo.
“Esses serviços de vigilância epidemiológica representam um lado ainda pouco conhecido do SUS que nos permite lidar melhor com diversos problemas de saúde pública. Os laboratórios têm qualidade e capacidade para lidar com o coronavírus, mas o tamanho reduzido das equipes e eventuais faltas de insumos podem ser um gargalo. À medida que se reduz o financiamento do SUS, tudo isso é impactado”, afirmou Gomes.
Um editorial sobre o papel do sistema de vigilância nacional no enfrentamento do novo coronavírus foi publicado nesta quarta-feira (04/03) no periódico Cadernos de Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Gomes é um dos autores.