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Lucas Agrela
Publicado em 1 de março de 2018 às 15h09.
A trajetória evolutiva dos cachorros é mais ou menos bem resolvida: os antepassados dos lobos começaram a andar por perto de onde viviam os homens nômades, para se alimentar com facilidade dos restos que deixávamos para trás. Os que eram menos medrosos se aproximavam mais, comiam melhor, vivIam melhor e deixavam mais descendentes. Ao longo de 13 mil anos, nós domesticamos os bichos, trocando segurança e comida por… Pelo quê mesmo?
A versão oficial dessa história afirma que, para os seres humanos de 14 mil anos atrás, os cães eram uma ferramenta importantíssima: percebem sinais que passam batido pelos nossos sentidos, protegendo os bandos humanos e auxiliando a caça.
Ainda segundo essa narrativa, a “função” do cachorro teria sido deformada pela modernidade aos poucos. Com a nossa mania atual de humanizar tudo, o bichos teriam ganhado roupa, creche, participação nas fotos de família – em resumo, um investimento emocional (e muitas vezes financeiro) altíssimo.
Uma nova descoberta vem mudar essa história – e argumentar que, em vez de uma ferramenta, os bichos já eram tratados como filhos e cuidados carinhosa e intensamente pelos humanos desde o início da domesticação, há 14 mil anos.
Uma tumba do Paleolítico descoberta há mais de um século em Bonn, na Alemanha, continha um par de humanos e um par de cães enterrados juntos. Isso a gente já sabia – e era bonitinho e quem sabe simbólico que eles tenham dividido a “morada final” com os pets. Mas só isso não explica muita coisa.
A novidade é que foi possível extrair e analisar um dente do cadáver do cachorro mais novinho, com a idade estimada em 7 meses. E a forma como ele morreu diz muito sobre a relação humano-cão da Idade da Pedra.
Isso porque, segundo as evidências biológicas encontradas no dente, aquele cão tinha um caso gravíssimo de cinomose. A exposição ao vírus é extremamente comum entre cachorros até hoje – mas as versões agressivas da doença atacam o organismo muito rapidamente e têm poucas chances de cura.
O filhote da Idade da Pedra teria contraído a doença com 3 ou 4 meses de idade – e em casos graves assim, a doença pode matar menos de 3 semanas.
A cinomose costuma progredir em três fases: na primeira semana, o cachorro tem febre alta, vômito e diarreia, não come, fica letárgico. Na segunda fase, chega a congestão nasal e, com o sistema imunológico debilitado, muitos cachorros desenvolvem pneumonia. É nessa fase que 90% dos animais morre. Na terceira e última etapa, a doença começa a causar convulsões.
Como sabemos pelas provas arqueológicas, o cão só morreu 4 meses depois de pegar cinomose. Ou seja: viveu cinco vezes mais do que seria esperado para o quadro.
Segundo os pesquisadores que fizeram a análise do dente, a única explicação possível para uma sobrevida desse tamanho seriam cuidados intensivos dos donos – que envolveriam não só limpar diarreia e vômito, mas dar comida e água na boca (para um cão com diarréia) e manter o animal suficientemente aquecido (ainda que ele pudesse vomitar a qualquer momento).
São os mesmos cuidados que exige um bebê doente – e não são tão estranhos para a nossa relação moderna com os peludos. Mas, se a relação entre humanos e cães tivesse começado tão pragmática quanto dizem, e o valor dos bichos estivesse associado exclusivamente à sua capacidade de guardar e caçar, simplesmente não faria sentido desperdiçar os escassos recursos da Idade da Pedra em um bicho doente.
“Enquanto estava doente, o cachorro não teria nenhum uso prático como animal de trabalho. Isso, somado ao fato de que ele foi enterrado com seus supostos donos, sugere que existia uma relação de cuidado especial entre humanos e cães há, pelos menos 14 mil anos”, resumem os autores da pesquisa.
Não temos como saber se essa era a regra, ou se esses donos eram especialmente apegados ao seu cachorro – e o resto dos humanos, não. Se esse for o caso, será que a discussão “Pais de pet são pais?” começou há 140 séculos?
•Este conteúdo foi originalmente publicado na Superinteressante