Ciência

Hidroxicloroquina: efeito colateral não pode ser mais danoso que o remédio

A abordagem política da hidroxicloroquina é perigosa. Normalmente, testes de remédios não têm resultados abertos para debate fora do contexto científico

Cloroquina: medicamento é estudado para tratar covid-19 (Brasil2/Getty Images)

Cloroquina: medicamento é estudado para tratar covid-19 (Brasil2/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 8 de junho de 2020 às 08h50.

Última atualização em 8 de junho de 2020 às 21h19.

Para prejuízo da sociedade, que já está cambaleando por conta da pandemia da COVID-19, o uso de medicamentos com o potencial de tratar a doença causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) virou um debate político. De um lado, cidadãos e governantes escutam instruções de grandes órgãos médicos e instituições científicas.

De outro, o "achismo" toma conta de forma perigosa, sendo reverberado pela maior liderança executiva do país, sem qualquer embasamento técnico. Para entender o porquê de especialistas serem cautelosos ao afirmar a eficácia da hidroxicloroquina e outros medicamentos sendo testados para a covid-19, é crucial que se conheça o processo de aprovação de medicamentos por entidades regulatórias ao redor do mundo.

O processo de desenvolvimento de um medicamento é longo, complexo e a burocracia em torno de sua aprovação é onerosa. Burocracia essa que é em grande parte necessária, pois foi instalada para proteger a população de efeitos danosos e até fatais que algumas substâncias em investigação podem causar ao ser humano.

Quem controla esse processo são as entidades regulatórias de cada país, como a Anvisa, no Brasil, a FDA (Food and Drug Administration), nos Estados Unidos, e a EMA (European Medicines Agency), na Europa. O processo da FDA leva em média 12 anos e custa ao menos 2 bilhões de dólares. Dos medicamentos que obtém resultados positivos em laboratório e passam para testes humanos, apenas 14% são aprovados.

No sistema americano, o processo regulatório tem quatro principais estágios de testes: pré-clínico (in vitro, em células, e in vivo, em animais) e clínicos de fase I, II e III (em humanos). Os medicamentos podem ser novas substâncias desenvolvidas para o tratamento de uma determinada doença, ou substâncias redirecionadas para testes em aplicações diferentes de suas originais. Cada etapa deve demonstrar resultados positivos para que o medicamento possa avançar até a aprovação final, após a qual ainda há monitoramento regulatório.

Cloroquina

(Reprodução/Reprodução)

Estágios do processo regulatório da FDA para novos medicamentos. O estudo da hidroxicloroquina para tratamento da covid-19 já está em fase II após somente alguns meses. *Taxa de aprovação com base no número total de medicamentos que entram na fase clínica de testes.

Mesmo as substâncias já aprovadas para determinadas doenças e que têm livre comercialização devem passar por esse rigoroso processo regulatório. Assim, pode ser feita uma importante análise dos danos e reais benefícios em cada contexto, já que estes variam de acordo com os quadros clínicos de cada doença.

A duração desse processo pode ser mais curta, levando de 3 a 12 anos, e mais barata, custando, em média, 300 milhões de dólares. A maioria dos medicamentos redirecionados que são testados em humanos ainda é rejeitada, com uma taxa média de sucesso de apenas 30%.

Um dos casos mais famosos de redirecionamento terapêutico é o do sildenafil, também conhecido como Viagra, que foi um medicamento desenvolvido pela Pfizer para tratar a angina, o sintoma de dor no peito. Posteriormente, teve eficácia comprovada e, portanto, uso aprovado para tratar disfunção erétil.

A aspirina é outro exemplo que foi e continua sendo redirecionado para outras condições, sendo usada em centenas de ensaios clínicos para aplicações novas todos os anos. Mesmo tendo comercialização livre, ainda passa por um rigoroso processo para que possa ser prescrita para condições que ainda não tiveram eficácia comprovada, pois, como outros medicamentos, tem efeitos colaterais que podem ser maiores do que os benefícios por ela trazidos em um quadro clínico não testado.

A hidroxicloroquina é um medicamento aprovado para uso contra a malária e doenças autoimunes como lúpus e artrite reumatoide. Em uma situação normal, os testes de redirecionamento desta substância para tratamento da covid-19 levariam ao menos 2 anos até terem início em humanos, sendo antes necessário obter amplos resultados positivos em experimentos com células e animais. Ainda assim, o uso inicial em humanos seria em um cenário de ensaio clínico, com criteriosa seleção  de candidatos e rigoroso monitoramento médico a fim de verificar possíveis efeitos colaterais.

Porém, não estamos em uma situação normal. Estamos meio à uma pandemia, perdendo milhares de vidas diariamente. Por isso, as agências regulatórias têm um papel crucial nessa crise ao poder acelerar os estágios do processo regulatório. São riscos tomados cautelosamente, com a análise de potenciais efeitos colaterais, para aumentar as chances de sobrevivência de pacientes. Por já ter tido um processo 20 vezes mais rápido do que o normal, o uso hidroxicloroquina deve ser tratado com escrutínio.

O caso do medicamento Atabecestat, que havia passado por várias fases de testes com resultados positivos no potencial tratamento de Alzheimer, é um exemplo de como devemos aprender com a história. Esse medicamento estava no mesmo estágio no qual a hidroxicloroquina se encontra hoje quando foi descontinuado em 2018.

Em um teste mais amplo e controlado, foi possível associar o uso da substância a uma séria elevação de enzimas hepáticas, indicativa de um quadro de intoxicação, que não havia sido identificada previamente. A mesma associação a algum efeito colateral grave poderia acontecer com a hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. Por isso é tão importante fazer o uso do medicamento apenas em ensaios clínicos registrados.

A abordagem política da hidroxicloroquina é curiosa e perigosa. Vários medicamentos são testados em ensaios clínicos anualmente, porém, seus resultados não são abertos para debate fora de um contexto científico. É evidente que o tratamento da covid-19 está em pauta pela desesperada e urgente necessidade de encontrar uma vacina ou cura para a doença.

No entanto, essa urgência não justifica a negação do governo em seguir orientações técnicas. O que parece justificá-la é, na verdade, o medo que o governo federal tem das consequências políticas provenientes de sua escolha prematura em investir na ampla manufatura da hidroxicloroquina, antes mesmo de ter comprovação suficiente de sua eficácia.

É completamente aceitável que as pessoas mentalizem, rezem, orem ou torçam, de acordo com suas crenças, para que testes funcionem. Para encontrarmos um medicamento. Para que essa pandemia acabe. O que não é aceitável é que governantes, por razões políticas, continuem tomando medidas que ignoram análises científicas.

A frase irresponsavelmente dita por Bolsonaro para argumentar contra o necessário distanciamento social, deveria, na verdade, ser utilizada no contexto do processo de aprovação de medicamentos como a hidroxicloroquina. Seu efeito colateral não pode ser mais danoso que o próprio remédio. Não é hora de ignorar a ciência, mas sim de apoiar e respeitar o trabalho venerável que cientistas e médicos têm conduzido para ajudar a todos nós.

*Taciana Leticia W. D. Pereira* é formada em bioengenharia pela Universidade de Harvard e, atualmente, é vice-presidente de Life Sciences na empresa de biotecnologia americana Allevi

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