Ciência

Estudo pode ajudar a prever recaída em dependentes de cocaína

Pesquisa da Faculdade de Medicina da USP analisou déficits cognitivos e do padrão de uso da droga para identificar os pacientes com maior risco de recaída

A pesquisa acompanhou 68 pacientes do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas durante 30 dias (FAPESP/Divulgação)

A pesquisa acompanhou 68 pacientes do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas durante 30 dias (FAPESP/Divulgação)

Isabela Rovaroto

Isabela Rovaroto

Publicado em 14 de maio de 2019 às 11h20.

Um estudo feito na Universidade de São Paulo (USP) e publicado na revista Drug and Alcohol Dependence pode ajudar profissionais de saúde a identificar pacientes que, após passarem por um tratamento para dependência de cocaína, apresentam risco aumentado de recair no uso da droga.

Segundo os autores, os achados reforçam a necessidade de uma atenção diferenciada para esses casos considerados mais graves.

A pesquisa foi coordenada pelo professor da Faculdade de Medicina (FM) da USP Paulo Jannuzzi Cunhabolsista de pós-doutorado da FAPESP. Também teve apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Os pesquisadores acompanharam 68 pacientes internados para tratamento da dependência de cocaína no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC-FM-USP) durante 30 dias. O monitoramento dos voluntários continuou por três meses após a alta hospitalar, visando o registro de eventuais recaídas. Apenas 14 pessoas permaneceram abstinentes durante todo o período de seguimento.

Um dos objetivos da pesquisa foi avaliar se os 11 critérios para diagnóstico da dependência química estabelecidos na quinta e mais recente edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM5) – publicação elaborada pela Associação Americana de Psiquiatria e considerada principal referência na área – eram eficazes também para predizer resposta ao tratamento.

“Nossa hipótese era de que esses critérios não seriam relevantes para a predição de recaídas. Após as análises, contudo, reconhecemos que eles podem sim ser úteis nesse sentido”, disse Cunha à Agência FAPESP.

Para diagnosticar a dependência de cocaína e a gravidade do caso, o DSM5 avalia critérios como: uso da substância em quantidades maiores ou por mais tempo que o planejado; desejo persistente e incontrolável; abandono de atividades sociais, ocupacionais ou familiares devido ao uso; manutenção do uso apesar de problemas sociais ou interpessoais; tolerância e abstinência, entre outros.

Pacientes com dependência leve são aqueles que apresentam dois ou três dos 11 critérios por um período de um ano. A presença de quatro ou cinco itens pelo mesmo período indica dependência moderada. Já a dependência grave é caracterizada por seis ou mais critérios.

“Em nossa amostra foram incluídos apenas casos classificados como graves. E conseguimos observar que existe uma grande diferença entre os pacientes que apresentam de seis a oito critérios e os que somam de nove a 11. O índice de recaída neste segundo grupo foi significativamente mais elevado”, disse Danielle Ruiz Lima, primeira autora do artigo.

Na avaliação dos pesquisadores, os dados sugerem que a divisão em três categorias proposta pelo DSM5 poderia ser revista. “Parece haver o grupo grave e o ultragrave”, disseram.

Refinando a análise

Outra hipótese investigada na pesquisa é a de que o padrão de uso de cocaína (o escore no DSM-5 somado a fatores adicionais, como a idade de início do consumo e a intensidade do uso no mês anterior à internação) e o déficit cognitivo causado pela droga seriam variáveis relacionadas, que poderiam ajudar a predizer recaída após o tratamento.

Os testes aplicados no estudo tinham o objetivo de avaliar o desempenho dos participantes nas chamadas funções executivas, que incluem memória de trabalho (necessária para o cumprimento de ações específicas, como a de um garçom que precisa gravar o pedido de cada uma das mesas até o momento de entregar o prato corretamente), atenção sustentada (requerida para a realização de tarefas longas, como o preenchimento de um questionário) e controle inibitório (a capacidade de refrear impulsos).

Os pesquisadores aguardaram em média uma semana após a internação para aplicar os testes, tempo necessário para que os exames toxicológicos ficassem negativos. Tal procedimento foi realizado para evitar qualquer tipo de efeito agudo da droga no organismo.

Um dos testes para medir atenção consistia em repetir uma sequência crescente de números apresentada pelos pesquisadores. Pacientes que tinham feito uso intenso de cocaína antes da internação (nos 30 dias anteriores) apresentaram maior déficit nessa habilidade.

Outra tarefa para avaliação da memória consistia em repetir uma série de cores na ordem em que eram apresentadas. Em outro desafio ainda mais difícil, cujo objetivo foi avaliar o controle inibitório, o nome de uma cor era escrito em outra cor diferente (a palavra “amarelo” escrita em azul, por exemplo).

“A resposta automática é ler o que está escrito em vez de falar a cor pintada, que era o objetivo. Para cumprir a tarefa, é preciso usar o controle inibitório, função extremamente importante nas fases mais iniciais da recuperação da dependência, quando o paciente tem de lidar com a fissura e com situações que vão estimular o desejo de usar a droga”, disse Cunha.

As análises mostraram correlação entre o resultado no teste de controle inibitório e a idade em que o paciente começou a usar a droga. “Quanto mais precoce o uso, mais erros foram cometidos – o que pode significar um risco aumentado de recaída. A ideia é identificar essas pessoas que têm mais dificuldade para podermos pensar em propostas individualizadas de tratamento”, disse Lima.

O uso intenso de cocaína nos 30 dias que antecederam a internação também foi correlacionado a pior desempenho no teste de controle inibitório e no de memória de trabalho (que consistia em falar a sequência numérica do teste anterior na ordem invertida) – habilidade importante para manipular informações e, a partir disso, tomar decisões.

Segundo os pesquisadores, há estudos mostrando ser possível recuperar as funções executivas com a abstinência, mas ainda não se sabe até que ponto o dano pode ser revertido ou quanto tempo demora para isso ocorrer.

O grupo da FM-USP defende a importância de se adotar um programa de reabilitação cognitiva para ajudar no processo de recuperação.

“Nós temos uma proposta de xadrez motivacional, que ainda está sendo estudada. Os terapeutas jogam com o paciente e, após a partida, é feita uma espécie de terapia. Discutem-se as jogadas, fazendo analogias com situações da vida real. A ideia é transportar o conhecimento adquirido no jogo de xadrez para o dia a dia e treinar controle inibitório, planejamento e tomada de decisões saudáveis na vida real”, contou Cunha.

Para o coordenador da pesquisa, a avaliação de déficits cognitivos é importante tanto para o diagnóstico da dependência como para a predição de recaída. “A dependência química é uma doença do cérebro e, com esses testes neuropsicológicos, podemos ter uma régua capaz de medir objetivamente se o dano é leve, moderado ou severo. Do mesmo modo que é feito no caso das demências.”

Os pesquisadores afirmam que, apesar da relevância clínica, os resultados dos testes neuropsicológicos ainda não fazem parte do DSM, cujos critérios são baseados no autorrelato e na observação clínica.

“Esperamos que a sexta edição do DSM apresente essa evolução a partir de nossos estudos e de outros grupos no mundo”, disse Cunha.

O artigo The role of neurocognitive functioning, substance use variables and the DSM-5 severity scale in cocaine relapse: A prospective study, de Danielle Ruiz Lima et al, pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0376871618306276.

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