. (Donald Iain Smith/Getty Images)
São Paulo - Imagine um cenário em que um membro do corpo perdido em um acidente possa ser prontamente substituído por outro, impresso em 3D na mesma hora, ou um câncer cujas células afetadas possam ser retiradas, dando espaço para a recomposição da região afetada por células saudáveis. Pense no dia em que não será mais necessário usar cobaias humanas ou animais para testar medicamentos e cosméticos, porque tecidos e órgãos idênticos aos nossos poderão ser igualmente impressos e apresentam a mesma resposta do nosso organismo.
Parece uma realidade distante? Infelizmente, sim. De acordo com Ray Kurzweil, diretor de engenharia do Google e futurista, os primeiros híbridos de homens e máquinas aparecerão em 2030, um ano depois de um computador ter passado com sucesso por um teste de Turing, no qual um humano não pode distinguir uma máquina de um ser humano. Os avanços alcançados neste início de século já projetam uma realidade bastante animadora para a ciência. Desafios não faltam e são de toda ordem. Compreensão limitada do funcionamento do organismo, investimento adequado para pesquisas e dificuldade de aprovar patentes com agências reguladoras são alguns dos principais.
O corpo humano é um inimigo desse avanço tecnológico. Fazer o organismo aceitar um elemento externo e passar a integrar algo produzido por uma máquina ao funcionamento de todo o seu complexo sistema é uma das maiores barreiras da ciência. O campo da bioimpressão, por exemplo, esbarra em dificuldades de nível celular. Segundo Janaina Dernowse, bióloga geneticista e pesquisadora de biofabricação e bioimpressão de tecidos, já estamos perto de conseguir desenvolver tecido ósseo e cartilaginoso, como a pele humana e as membranas da córnea.
Para isso, porém, a ciência ainda precisa viabilizar a vascularização em tecidos bioimpressos (tecidos artificiais produzidos por impressoras 3D) e entender como as células se comunicam, recebendo e enviando sinais pelo organismo.
“Temos o desafio de trabalhar melhor a interface dos materiais com as células do nosso corpo. A interface de um material sintético ou um dispositivo robótico com o organismo é algo muito complexo. Precisamos conseguir colocar sensores adequadamente e captar as mensagens que um músculo libera para levá-las outras regiões, como o cérebro, por exemplo”, explicou Dernowse a EXAME.
Decifrar e interpretar os sinais emitidos pelo cérebro, interferindo ativamentes em suas ações é uma das mais relevantes linhas de estudo da neurociência. A prática é muitas vezes definida como “hackeamento do cérebro”, e é alvo de estudo de diversas frentes pelo mundo, desde gadgets para o Facebook até a cura da paralisia.
O conceito de hacking das atividades humanas pode ser expandido para diversas ações do dia a dia, o que inevitavelmente gera polêmicas. O monitoramento das ações do corpo feito por aplicativos e câmeras, por exemplo, já é alvo de discussões. Casos recentes envolvendo reconhecimento facial mostram como a leitura de biossinais pode ser problemática. E as empresas de tecnologia não param por aí. Logo, a Apple vai permitir que o seu relógio inteligente realize eletrocardiograma por meio de seu relógio inteligente mais novo, o Apple Série 4, que já tem aprovação da FDA (uma espécie de Anvisa dos Estados Unidos). O número dispositivos que podem se conectar ao iPhone só crescem e essa tendência de digitalizar a saúde humana e de estarmos cada vez mais integrados a eletrônicos não dá sinais de retração. Apesar dos benefícios da integração do corpo com as máquinas, a tecnologia também traz seus riscos.
Como toda tecnologia, o hackeamento pode ser usado para fins mal intencionados ou até criminosos. “Quando olhamos para esse cenário de seres biônicos, precisaríamos ter uma regulamentação, um código de ética, uma normalização de tudo isso. Porque imagina uma pessoa ser hackeada, no mau sentido da palavra, e a outra pessoa conseguir controlar um seu braço biônico, por exemplo. Ela poderia fazê-lo puxar uma arma e atirar sem que o verdadeiro dono quisesse”, afirma Wagner Sanchez, especialista em redes neurais artificiais e diretor acadêmico da FIAP.
Outro desafio ligado à falta de leis adequadas ao esse campo diz respeito à realidade brasileira. Empresas que desenvolvem soluções de mobilidade para pessoas com deficiência física, geralmente criadas fora do país, costumam encontrar dificuldade para se inserir no mercado nacional, como é o caso da israelense ReWalk, que cria exoesqueletos para ajudar deficientes físicos a andar. O país possui 45,6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, segundo o último censo do IBGE.
“Existem empresas brasileiras mesmo, mas de próteses simples, que já estão prontas para entrar no mercado, mas não conseguem a liberação”, afirma Dernowse. Procurada, a Anvisa não informou o tempo necessário para a aprovação e liberação de próteses biônicas no mercado, destacando o grau de risco que envolve o produto. “Estes produtos são enquadrados como classe de Risco I e que devem ser devidamente cadastrados na Anvisa para obter autorização para sua importação, fabricação e comercialização no país”, disse a assessoria do órgão regulatório.
“O Brasil é um dos maiores mercados da América do Sul. Preocupações regulatórias são um pouco desafiadoras e estamos tentando nos familiarizar com elas”, afirma Rahul Kaliki, CEO da startup Infinite Biomedical Thecnologies (IBT), em entrevista a EXAME. Com 14 funcionários, a empresa que já vislumbra o mercado brasileiro desenvolveu o Sense, um sistema de reconhecimento de padrões musculares para aprimorar a movimentação de próteses de braço para pessoas amputadas. “O sistema é muito semelhante ao modo como as pessoas usam o reconhecimento de voz em seus telefones. O telefone reconhece as vozes das pessoas e cria comandos. Usamos algoritmos semelhantes para detectar os músculos do corpo e fazê-los realizar o que o dono da prótese desejar”, explica.
Quando puder expandir sua área de atuação, a IBT pretende solucionar deficiências de outra natureza, como auxílio para pessoas que sofrem de artrose ou que tiveram um derrame, obrigando-as a conviver com limitação de movimentos. Por enquanto, o nicho de próteses parece promissor para empresas pequenas que mantêm seu foco em desafios específicos ligados à compreensão do funcionamento do cérebro e dos músculos.
É o caso da Coapt, startup de Chicago que também desenvolve próteses biônicas. “Somos um grupo que é muito bom no desenvolvimento de algoritmos avançados que são específicos para decodificar os sinais elétricos que um corpo humano pode produzir. Também atuamos na criação do tipo de eletrônica que é ajustada para esses algoritmos de decodificação em um dispositivo vestível”, explica Blair Lock, CEO da empresa, em entrevista a EXAME.
Em um futuro próximo, a empresa quer alcançar outros mercados no campo da reabilitação, desenvolvendo próteses para membros inferiores e suportes motorizados, além de adotar o uso de realidade virtual e aumentada para melhorar a experiência dos pacientes. “Por enquanto, nosso mercado atual suporta nossos objetivos de negócios e lucro. No entanto, expandir o alcance do benefício de nossa tecnologia requer uma equipe e um conjunto de recursos maiores do que os que temos atualmente”, afirma.
Empresas de todos os tamanhos miram no potencial mercado consumidor para quando essa tecnologia estiver dominada. Até lá, mais alguns obstáculos precisam ser superados. “O grande desafio é fazer com que a tecnologia seja totalmente absorvida pelo organismo, que ela se torne ubíqua mesmo, que ela se torne natural”, diz. Segundo ele, para haver um cenário em que sistemas possam agir tanto externa quanto internamente, não pode haver rejeição por parte do organismo. Daí a importância dos biomateriais, na visão do professor. “Quando a ciência conseguir os biomateriais, materiais que sejam desenvolvidos a partir do meu DNA, que eu sei que para mim não vai existir rejeição, vai ser perfeito”, explica Sanchez.
Os próximos anos serão decisivos na integração entre homem e máquina, não só para resolver problemas de mobilidade e monitorar a saúde, mas também para amplificar habilidades.