(Reuters/Reuters)
Filipe Serrano
Publicado em 8 de abril de 2021 às 07h00.
Última atualização em 8 de abril de 2021 às 07h52.
Não é todo dia que um chefe de governo vai ao aeroporto para receber um carregamento de produtos, mas a pandemia mudou muitas coisas. Em 10 de janeiro, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu foi de carro para o Aeroporto Internacional Ben Gurion, a sudeste de Tel Aviv, para assistir a um carregamento de 700.000 doses de vacina da Pfizer emergir de um Boeing 787-9. “Este é um grande dia para o Estado de Israel, por conta desse enorme carregamento que acaba de chegar”, disse Netanyahu, exalando uma confiança que poucos líderes mundiais tiveram desde o início da crise. “Entrei em acordo com meu amigo, presidente e CEO da Pfizer, Albert Bourla, que traríamos remessa após remessa e completaríamos a vacinação da população de Israel com mais de 16 anos, durante o mês de março.”
Bourla deu a Netanyahu uma tábua de salvação política. Diante do aumento de casos de covid-19 e de uma eleição em março, o primeiro-ministro se agarrou à vacina da Pfizer como sua melhor oportunidade de permanecer no cargo. De pé na pista, ele se vangloriou de que na época 72% dos israelenses com mais de 60 anos já haviam sido vacinados, graças aos lotes que começaram a chegar no início de dezembro, e que mais doses chegariam em breve. Isso porque ele fechou um acordo com Bourla para usar seu país como teste para a vacina da Pfizer. Hoje o país é o mais avançado na campanha de vacinação. Até 6 de abril, pouco mais de 60% da população já havia sido imunizada, seguido do Reino Unido (47%) e do Chile (37%).
A distribuição de vacinas contra o coronavírus ainda promove a sensação de um jogo de soma zero. Cinco dias após a chegada do carregamento em Israel, a Pfizer disse a outros clientes fora dos Estados Unidos que cortaria os suprimentos de curto prazo enquanto fechava brevemente sua fábrica de vacinas na Bélgica para aumento de sua capacidade de produção. Pânico e descontentamento percorreram as capitais mundiais, especialmente Roma. A Itália, que sofreu uma das maiores taxas de mortalidade pela covid-19 e que estabeleceu com sucesso um programa de vacinação em massa e inoculou mais pessoas do que qualquer outro país da União Europeia, estava esperando por novas doses quando a Pfizer anunciou os cortes.
Isso não foi obra de nenhum algoritmo. A logística de distribuição da vacina foi resultado de uma empresa lutando para gerenciar a entrega das doses enquanto a demanda excedia em muito a oferta, usando um processo opaco que parece ter envolvido uma mistura de tamanho do pedido, posição na fila, previsões de produção, pedidos de líderes mundiais, o potencial para o avanço da ciência conforme o cliente e, claro, o desejo de obter lucro.
“Todos queriam [entregas] no primeiro trimestre e tentamos permitir que as discussões e negociações divulgassem as coisas para que todos tivessem uma base justa”, diz Bourla. Os países que não haviam feito pedidos queriam um lugar na fila, e aqueles que haviam feito pedidos antecipados queriam comprar mais. “Foi uma negociação constante”, afirma. “Todo mundo queria, claro, receber mais cedo.” A Pfizer diz que o acordo com Israel não afetou as doses para outros lugares.
Israel tinha duas coisas a seu favor: Netanyahu se ofereceu para pagar cerca de US$ 30 por dose, cerca de 50% a mais do que o governo dos Estados Unidos, segundo pessoas familiarizadas com o acordo. Ele também concordou em compartilhar dados nacionais sobre a vacina baseada em RNA mensageiro, ou mRNA. E o país optou por usar quase que exclusivamente a vacina da Pfizer, no que equivale a um estudo de eficácia em grande escala. (A Pfizer considerou oferecer o mesmo acordo para a Islândia, mas o país não tinha casos de covid-19 em quantidade suficiente para que o estudo fosse significativo.)
Bourla diz que o acordo com Israel fornecerá dados que transformarão o entendimento do mundo mundial de como acabar com a pandemia. “Eles estão tentando extrair as informações científicas que o mundo inteiro está esperando agora”, diz ele. “Obteremos dados sobre transmissão sintomática e assintomática muito rapidamente.” De fato, a notícia de Israel em 24 de fevereiro foi notável: a vacina evitou 94% dos casos de Covid em quase 600.000 pessoas vacinadas.
Como a primeira empresa a desenvolver uma vacina autorizada contra a covid-19, o que fez em parceria com a BioNTech da Alemanha, a Pfizer tem muita influência. Bourla tornou-se CEO da Pfizer há um ano quando a pandemia começou e quase imediatamente enfrentou escolhas que nenhum executivo da indústria farmacêutica enfrentaria normalmente. A política governamental é importante, assim como o comportamento dos indivíduos, mas até certo ponto os fabricantes de vacinas determinam onde as infecções diminuirão e quais economias serão reabertas primeiro. Seus clientes são líderes nacionais eleitos que criaram complexos programas de vacinação com funcionários da saúde pública, mas esses líderes estão aprendendo que estão à mercê do que fabricantes como a Pfizer oferecem.
Nos últimos meses, Bourla assumiu um papel quase de estadista, fazendo ligações para chefes de Estado, incluindo o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau. Netanyahu se gabou em janeiro de ter falado com Bourla 17 vezes. O CEO até mesmo atendeu suas ligações às 2 da manhã. Bourla diz que depois disso, conversou "ainda mais" com Netanyahu.
O status da Pfizer de primeira do mercado a sair na corrida, também ofereceu a Bourla uma oportunidade de vendas sem igual. A empresa recebeu pedidos de mais de 60 países em termos comerciais não divulgados. A Pfizer forneceu 95 milhões de doses em nível global. Esse plano está sendo executado em uma das escalas mais ambiciosas da história da indústria farmacêutica para atender à implacável demanda, aumentando a produção para 2 bilhões de doses em 2021 – mais do que a quantidade de pedidos para atender nesse estágio. A empresa espera que a vacina gere pelo menos US$ 15 bilhões em receita em 2021, colocando-a -- sob a marca Comirnaty, uma estranha mistura das palavras "covid", "mRNA" e "imunidade" – a caminho de se tornar uma das maiores vendas de fármacos do mundo.
Não há manual sobre como uma empresa global deveria se comportar durante uma pandemia. A Pfizer realizou algo extraordinário, excedendo as esperanças de quase todos, e agora está fazendo o que a indústria farmacêutica faz: marketing em massa de produtos que salvam vidas a preços que o mercado está disposto a pagar. Não está obrigada a atender uma agenda global de saúde pública. Dito isso, um dia haverá uma autópsia da pandemia, e uma questão central poderia ser como uma única empresa passou a exercer tanto poder sobre tantas outras.
Em maio de 2020, o governo Trump anunciou o lançamento da Operação Warp Speed (OWS), parceria público-privada para acelerar o desenvolvimento, fabricação e distribuição de vacinas contra a covid-19. Moncef Slaoui, ex-executivo da GlaxoSmithKline, juntou-se como conselheiro-chefe da OWS para descobrir quais vacinas apoiar. Ele tinha enorme conhecimento sobre a tecnologia de mRNA por atuar no conselho da Moderna, que passou anos pesquisando a plataforma. Nenhuma droga usando tecnologia de mRNA tinha sido aprovada.
Slaoui sabia que a Pfizer poderia ser uma concorrente depois que anunciou sua decisão de colaborar com a BioNTech, outra pioneira em mRNA, mas ele não conhecia Bourla. Quando conversaram pela primeira vez, em junho de 2020, Bourla deixou claro que não estava interessado em receber dinheiro para pesquisa e desenvolvimento como as outras empresas que a OWS estava avaliando. Em vez disso, ele queria um pedido de compra antecipado da OWS para garantir um comprador se a Pfizer tivesse sucesso. A receita anual de US$ 50 bilhões da empresa significava que ela poderia pagar essa aposta. Bourla disse que não foi uma decisão fácil, mas sentiu que libertou os cientistas da burocracia para obter resultados mais rápidos. “Albert deixou bem claro que eles tinham o que necessitavam para fazer acontecer”, diz Slaoui.
A confiança da Pfizer mostrou-se desde o início. A empresa começou a comercializar a vacina globalmente em maio do ano passado, logo após o início dos testes de segurança. “O processo começou bem no início, quando chegamos a todos os países”, diz Bourla. “Iniciamos discussões em todos os continentes do mundo.” O Reino Unido foi o primeiro país a fazer um acordo, concordando em 20 de julho em comprar 30 milhões de doses (posteriormente aumentadas para 40 milhões) a serem entregues em 2020 e 2021. Como acontece com a maioria dos negócios da Pfizer com cada país, os termos não foram divulgados.
Dois dias depois, a Pfizer anunciou a compra no valor de US$ 1,95 bilhão pela Operação Warp Speed de 100 milhões de doses, dependendo da aprovação de sua vacina pelo FDA (Food and Drug Administration). O pedido direto de compra antecipada diferenciava a Pfizer de todos os outros concorrentes da OWS. A Moderna, por exemplo, recebeu US$ 2,48 bilhões do governo dos Estados Unidos, incluindo US$ 955 milhões para o desenvolvimento clínico e fabricação, e 100 milhões para o pagamento das doses. Em contrapartida, a Pfizer gastou US$ 2 bilhões de seu próprio dinheiro no desenvolvimento da vacina. Os executivos da empresa queriam um preço maior por dose do que os US$ 19,50 com os quais acabaram concordando, de acordo com ex-funcionários da alta administração que não quiseram ser identificados porque as discussões foram todas confidenciais.
Preços mais altos também flutuaram na Europa. No meio do ano passado, a Pfizer e a BioNTech começaram a pedir €54 (US$ 65) por cada dose nas negociações com a UE, disse uma pessoa familiarizada com as negociações, confirmando relatos da mídia alemã. O cofundador da BioNTech, Ugur Sahin, disse ao jornal alemão, Bild, que os números iniciais foram baseados em cálculos aproximados dos custos de produção antes de descobrirem como funcionaria a fabricação. Posteriormente, foi estabelecida uma faixa de € 15 a € 30 a dose para “países industrializados”, dependendo do tamanho do pedido.
Livre das amarras de subsídios governamentais, a Pfizer poderia se movimentar mais rápido. “Tomamos a decisão inicial de começar o trabalho clínico e a fabricação em grande escala por nossa própria conta e risco para garantir que o produto estaria disponível imediatamente se nossos testes clínicos tivessem sucesso”, disse Bourla ao anunciar o acordo com os EUA. Menos de uma semana depois de garantir o contrato com os EUA, a Pfizer iniciou seu teste de estágio final, afirmando que pretendia buscar uma revisão regulatória pelo FDA já em outubro. A Moderna começou seu teste final no mesmo dia, mas um intervalo mais longo entre as doses – de 28 dias contra os 21 da Pfizer – significando que, se todas as outras fossem iguais, a Pfizer estaria em posição de divulgar os resultados em primeiro lugar.
Os pedidos continuaram chegando. Poucos dias após o início do teste, o Japão solicitou que 120 milhões de doses fossem entregues no primeiro semestre de 2021. No início de agosto, o Canadá assinou um contrato.
No final de agosto, a Pfizer compartilhou dados iniciais mostrando que os participantes dos testes geraram uma forte resposta imunológica à vacina, e ainda mais países entraram na fila. No início de setembro, a empresa concordou em “potencialmente fornecer” à UE até 300 milhões de doses, mas o bloco demorou a finalizar o negócio. O Catar, estado do Golfo Pérsico, fez um pedido algumas semanas depois.
Bourla vinha dizendo consistentemente que a empresa esperava divulgar os resultados da avaliação da fase final até o final de outubro, fato que Trump aproveitou ao despencar nas pesquisas na reta final de sua campanha de reeleição. “Em breve teremos uma vacina. Talvez até antes de uma data muito especial”, disse Trump no início de setembro. A preocupação era de que a Pfizer pudesse estar apressando os testes às custas das verificações de segurança preestabelecidas. Rejeitando a percepção de que o governo Trump estava pressionando a empresa, Bourla prometeu priorizar os aspectos da segurança. “Eu queria falar diretamente para bilhões de pessoas, milhões de empresas e centenas de governos em todo o mundo que estão investindo suas esperanças em uma vacina contra o Covid-19 segura e eficaz”, disse ele em uma carta aberta. “A vacina deve ser comprovadamente segura.”
A Pfizer não gostou muito da atuação da Operation Warp Speed. A empresa vinha pressionando para que o governo dos EUA fizesse um pedido adicional de 100 milhões de doses, mas os funcionários da OWS estavam cautelosos. A empresa já não estava cumprindo suas metas de produção para novembro, por motivos que não eram claros, de acordo com ex-funcionários do alto escalão. A Pfizer diz que manteve o governo informado sobre a produção.
Quando a Pfizer anunciou os resultados de seu teste de estágio final seis dias após as eleições nos EUA, a notícia foi estrondosa: a vacina tinha sido mais de 90% eficaz na prevenção dos sintomas da covid-19. Slaoui diz que Bourla ligou para ele antes que a Pfizer fizesse um comunicado à imprensa às 6h45 do dia 9 de novembro, e ele ficou tão animado que precisou se conter para não gritar receoso de acordar outros hóspedes em seu hotel em Washington. Mesmo assim, em meio à euforia, vieram algumas más notícias: a Pfizer avisou que seria capaz de produzir apenas 50 milhões de doses em todo o mundo até o final do ano, em vez dos 100 milhões que havia projetado.
A Pfizer estava enfrentando grandes problemas de produção em sua fábrica de cerca de 527 mil hectares em Kalamazoo, Michigan, onde a empresa montou uma fazenda-freezer do tamanho de um campo de futebol para armazenar as doses às temperaturas exigidas de -75C. Aumentar a escala da fabricação de um novo produto com uma nova tecnologia exigia um fluxo constante de matérias-primas.
Afinal, a Pfizer precisava da ajuda do governo. Para corrigir os atrasos na cadeia de suprimentos, os executivos da empresa pressionavam a OWS para um pedido sob a Lei de Defesa da Produção, que daria acesso prioritário aos fornecedores. Outros candidatos do OWS estavam se beneficiando dessa lei há meses. A OWS hesitou. Os funcionários do governo disseram estar preocupados que a Pfizer usaria seu tamanho e influência no mercado para prejudicar a Moderna na cadeia de suprimentos se ela obtivesse status equivalente sob a Lei de Defesa da Produção.
Os atrasos na produção da Pfizer exerceram um grande impacto no lançamento da vacina nos EUA. Antes do anúncio dos resultados do ensaio, a OWS esperava 20 milhões de doses em novembro e 20 milhões em dezembro. Em vez disso, não recebeu nada em novembro e 20 milhões de doses em dezembro, algumas delas vindas da unidade de produção da Pfizer na Bélgica, para compensar as falhas de Kalamazoo.
O Reino Unido, que foi o primeiro país a autorizar a vacina, em 2 de dezembro, esperava 10 milhões de doses até o final do ano, mas recebeu cerca de metade disso. Apesar dos desafios de fornecimento, a Pfizer anunciou pouco antes do Natal que havia concordado em fornecer aos EUA mais 100 milhões de doses. Ao mesmo tempo, funcionários do governo finalmente concordaram em dar prioridade à empresa de acordo com a Lei de Defesa da Produção.
No final de dezembro, uma enxurrada de notícias do Oriente Médio revelou que a Pfizer havia contratado a venda de milhões de doses em negócios não divulgados anteriormente para países da região. Dubai recebeu suas primeiras doses por avião proveniente da Bélgica e anunciou que teria como objetivo inocular 70% de seus 3,3 milhões de habitantes com a vacina da Pfizer. Autoridades da Arábia Saudita disseram à emissora de TV Al Arabiya que esperavam 3 milhões de doses da Pfizer, sendo um terço delas a ser entregue até o final de fevereiro. Omã encomendou 370 mil, pagando US$ 30 a dose pelos suprimentos antecipados chegando em dezembro e US$ 24 a dose pelos carregamentos posteriores, disse o ministro da saúde a uma agência de notícias do governo. Este parecia ser um dos preços mais altos fora de Israel, embora a falta de divulgação torne impossível afirmar com certeza.
Os executivos da Pfizer encontraram uma solução parcial para seu problema de abastecimento nos próprios frascos de vacina. Eles só precisavam de autorização para mudar os rótulos para dizer que os frascos continham seis doses em vez de cinco. É prática padrão na indústria farmacêutica encher os frascos quase até o fim para evitar o risco de conteúdo insuficiente e violar as leis de rotulagem do FDA. A Pfizer estava enchendo demais cada frasco apenas o suficiente para uma dose extra se os vacinadores usassem as chamadas seringas de baixo volume morto.
Mas nem todos os locais de vacinação tinham as seringas. Além disso, o pedido da empresa ao FDA e outros órgãos reguladores especificava frascos de cinco doses. A Pfizer precisava gerar dados mostrando que a dose extra poderia ser extraída com segurança.
A empresa fez isso e então começou a pressionar os funcionários do FDA para alterar a autorização e reconhecer a sexta dose. Funcionários do OWS foram contra a mudança, antecipando tenebrosas implicações logísticas exatamente quando estavam começando a maior campanha de vacinação em massa da história dos Estados Unidos, dizem os ex-funcionários do governo. A vacina da Pfizer precisaria ser mantida em temperaturas subárticas – já era difícil o suficiente para distribuir sem acertos de última hora. (Recentemente, o FDA anunciou que a vacina pode ser mantida em temperaturas normais de congelador por até duas semanas.)
As ações de lobby da empresa foram bem-sucedidas. Em 6 de janeiro, o FDA revisou a ficha técnica, permitindo a sexta dose e efetivamente aumentando a produtividade da embalagem da Pfizer em 20%. Reguladores na Europa, no Reino Unido e em outros lugares seguiram o exemplo. Os EUA e o Reino Unido conseguiram adquirir as seringas, mas outros países tiveram dificuldades. Suécia e Japão reclamaram que não havia seringas especiais suficientes para extrair a sexta dose e avisaram que provavelmente milhões de doses seriam descartadas. A Áustria também estava com falta de suprimentos.
Bourla defendeu a mudança de política dizendo que a empresa havia validado 36 combinações de seringa-agulha que poderiam aproveitar a dose extra. “Seria um crime se pudéssemos usar seis doses, e estivéssemos jogando fora uma dose vacina que pode salvar vidas imediatamente”, disse ele à Bloomberg no final de janeiro.
A alteração foi uma grande vitória para a Pfizer. A empresa havia prometido fornecer aos EUA 100 milhões de doses até o final do primeiro trimestre e poderia conseguir fornecer 120 milhões. Como as nações pagam por dose, a mudança também gerou um aumento imediato de 20% no preço, por frasco.
Quando Bourla assumiu o comando da Pfizer em janeiro de 2019, sua missão era fazer com que a empresa se concentrasse em medicamentos de grande sucesso e se defendesse de uma batalha potencial com o governo Trump sobre o preço dos medicamentos. O coronavírus imediatamente deu a ele um novo foco. A parceria pouco conhecida da Pfizer com uma empresa alemã de biotecnologia transformou-a em heroína da pandemia. Havia uma dúvida razoável se as vacinas de mRNA funcionariam, e a disposição de Bourla de apostar na nova tecnologia valeu a pena.
Enquanto Israel estava nadando em vacinas da Pfizer no final de janeiro, outros países lutavam para descobrir quando suas entregas seriam retomadas. Em 8 de janeiro, a UE dobrou o pedido ao garantir a compra de mais 300 milhões de doses. Uma semana depois, a Pfizer anunciou o corte no fornecimento e a paralisação na Bélgica. Em poucos dias, informou às autoridades canadenses – que recentemente havia dobrado seu pedido para 40 milhões de doses – que o país não receberia nenhuma dose na semana seguinte. O primeiro-ministro Trudeau falou com Bourla em 21 de janeiro, mas a ligação não desbloqueou suprimentos adicionais. Desesperado por doses, ele concordou em aceitar as vacinas da Covax, laboratório apoiado pela Organização Mundial da Saúde para fornecer 2 bilhões de doses a países de baixa renda. O Canadá foi o único país do Grupo dos Sete a fazê-lo. Os políticos da oposição o acusaram de se apoderar das doses destinadas a países que não tinham condições de fazer acordos bilaterais.
Bahrein, Dubai e Arábia Saudita também relataram atrasos nas entregas. “O fornecimento da Pfizer tem sido um desafio global”, disse Amer Sharif, chefe do Centro de Controle e Comando do Covid-19 de Dubai, à Bloomberg TV. “Temos tido muitas discussões com representantes da Pfizer na região.” Omã também foi cortado. “Não entrem em pânico”, pediu Ahmed bin Mohammed al-Saidi, ministro da Saúde de Omã, em uma entrevista coletiva em 1º de fevereiro. “Nos garantiram que a próxima remessa estará aqui antes da metade deste mês.”
Os estados do Golfo resistiram aos atrasos sem maiores consequências, porque suas taxas de infecção são relativamente baixas. O México, com casos crescentes e o terceiro maior número de mortes do mundo, sentiu mais profundamente o corte do fornecimento da Pfizer. Tendo concordado no início de dezembro em comprar 34 milhões de doses da Pfizer, o país começou a vacinar no final de dezembro, o primeiro país a fazê-lo na América Latina. Então, os entregas da Pfizer pararam por três semanas, até que cerca de 500.000 doses para profissionais de saúde chegaram em meados de fevereiro. Ainda não haviam começado a vacinar os idosos. Em 2 de fevereiro, o ministro das Relações Exteriores do México, Marcelo Ebrard, criticou a Pfizer por segurar doses “que já tinham sido pedidas e pagas”.
O mundo esperava que a Pfizer reconstruísse suas amplas instalações, do tamanho de vários estádios esportivos, nos arredores da minúscula cidade belga de Puurs. No ano passado, a Pfizer contratou várias centenas de funcionários, elevando o total para mais de 3.000, ao se preparar para a produção. Isso não foi suficiente para acompanhar o volume de pedidos. O fechamento parcial da fábrica durou quase duas semanas.
“Quando a questão é de vida ou morte, quando a questão é de economia global, a demanda será sempre maior”, diz Bourla. "Reclamações acontecem." A Pfizer não estava sozinha no corte de suprimentos para a Europa – a AstraZeneca mais tarde também não conseguiu entregar o que havia prometido a UE – mas a Europa contava com a empresa americana para iniciar sua implementação. “Não tenho dúvidas de que existe ansiedade, estresse, pressão”, diz Bourla. “As vozes se alteram e as pessoas tentam encontrar os bodes expiatórios.” Na região de Roma, os cortes da Pfizer atrasaram em uma semana a campanha de vacinação para pessoas com mais de 80 anos, sendo que as primeiras injeções foram administradas em 8 de fevereiro.
A UE desenvolveu uma estratégia de agrupar a aquisição de vacinas entre os 27 estados membros. Assinou acordos de fornecimento com seis desenvolvedores de vacinas. Com a Pfizer, a Comissão Europeia concordou com uma estrutura para fornecimentos trimestrais aos países, deixando as decisões semanais para a empresa e cada país, disse Stefan de Keersmaecker, porta-voz da comissão. Quando a Pfizer fez os cortes em janeiro, esse acordo levou a uma colcha de retalhos de lacunas no fornecimento em todo o continente, o que fez com que a raiva aumentasse contra a indústria farmacêutica. Uma porta-voz da Pfizer disse que os cortes foram feitos com o entendimento de que a reforma da fábrica belga levaria a "volumes significativamente maiores" antes do final de março.
Os estados membros da UE também concordaram em não negociar acordos bilaterais com empresas farmacêuticas. Isso não impediu a Alemanha de fechar um acordo preliminar separado com a BioNTech para 30 milhões de doses, depois de conceder à empresa uma concessão de €375 milhões em setembro. (A Pfizer não faz parte desse acordo.) A CE diz que não viu o acordo com a Alemanha, que não foi finalizado. “Negociações paralelas não são permitidas em nossa estratégia de vacina”, diz De Keersmaecker. “Legalmente, não é permitido.”
A chanceler alemã, Angela Merkel, tentou acalmar a crise das vacinas na Europa realizando uma videoconferência com funcionários da comissão e fabricantes farmacêuticos, incluindo executivos da Pfizer, em 1º de fevereiro. A Pfizer diz que voltou ao cronograma com a UE no final de janeiro. Bourla diz que os países começaram a receber mais doses no final de fevereiro.
Fechar acordos e produzir em massa uma nova vacina no meio de uma pandemia jamais seria algo simples. “Esta é a vacina mais rápida que já foi aprovada e lançada, mais rápida que qualquer vacina já administrada em massa às pessoas, a resposta mais rápida a uma pandemia e provavelmente o aumento de produção mais rápido de todos os tempos”, diz Jonathan Miller, analista da Consultoria Evercore. “Não acho que isso poderia ter acontecido muito mais rápido do que isso.”
Autoridades em saúde pública alertaram que os países ricos que fazem acordos com empresas como a Pfizer irão restringir o acesso à vacina para aqueles que não podem arcar com acordos de preços fora de questão. Em janeiro, o Diretor-Geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, criticou acordos bilaterais e implorou aos países de renda alta que compartilhassem as doses, alertando que “o mundo está à beira de um catastrófico fracasso moral”. Só no final daquele mês Bourla anunciou um acordo com a Covax. O acordo, por 40 milhões de doses, representou menos de 2% da produção projetada da Pfizer para 2021. Outros desenvolvedores de vacinas são maiores. A AstraZeneca comprometeu 170 milhões de doses de sua vacina, enquanto o Serum Institute da India concordou em fornecer 1.1 bilhão de doses de suas versões da vacina AstraZeneca e outra desenvolvida pela empresa americana Novavax, aguardando autorização. A Covax também está finalizando compromissos para centenas de milhões de doses adicionais da Johnson & Johnson e Novavax.
Ninguém na saúde pública diz que a atual distribuição global das vacinas contra a covid-19 é a melhor maneira de combater a pandemia. “Em um mundo ideal, o que teríamos seria um mecanismo global em que os fabricantes diriam: 'Todos nós vamos fornecer a uma única entidade', e os governos diriam: 'Vamos todos comprar por meio de uma única entidade', diz Katherine O'Brien, líder técnica da OMS sobre a Covax. “Faria muito mais sentido.”
Bourla, é claro, não dirige uma agência de saúde pública. Ele responde a seus acionistas. Fechar os pedidos antecipadamente, às vezes a um preço mais alto para aqueles que podem pagar mais, é o que o CEO faz. A Pfizer disse que espera margens de lucro iniciais na faixa superior de 20%, o que é alto para uma vacina. A Moderna cobrou mais por sua vacina fora dos EUA, mas sua limitada capacidade de fabricação significa que fez uma fração dos negócios que a Pfizer fez, com a maioria das entregas esperadas apenas para a primavera. A AstraZeneca fechou dezenas de acordos bilaterais, mas prometeu não ter lucro durante a pandemia; está vendendo sua vacina por alguns dólares a dose. Se houvesse um desafio à primazia da Pfizer, poderia ser a vacina recentemente autorizada da Johnson & Johnson, que é altamente eficaz, requer refrigeração simples e é administrada em uma única dose.
Por enquanto, porém, a Pfizer tem um reconhecimento de marca incomparável, mesmo que "Comirnaty" seja difícil de pronunciar. (O nome pode nem mesmo ser usado nos EUA; nomes de marcas são estabelecidos somente após a aprovação total do FDA). No final de fevereiro, o presidente, Joe Biden, visitou a fábrica da Pfizer em Michigan e garantiu ao público que o governo está trabalhando dobrado para vacinar todos. Para enfrentar o desafio, a Pfizer continua aumentando a produção.
Em conversa com investidores e analistas após divulgar os resultados dos lucros em janeiro, Bourla e outros executivos da Pfizer falaram descontraidamente sobre um mundo pós-pandemia no qual a empresa poderia cobrar mais pela vacina. Os preços das vacinas são normalmente de US$ 150 a US$ 175, disse o diretor financeiro Frank D’Amelio. “Estamos em um ambiente de preços pandêmicos”, disse ele. “Obviamente vamos conseguir melhorar o preço.”
Com as novas variantes da propagação do coronavírus, a necessidade de doses regulares de reforço será altamente provável. A Pfizer está trabalhando em uma nova vacina que pode ter como alvo a mutação sul-africana do vírus, que pode infectar pessoas que já foram vacinadas. A perspectiva da população mundial de quase 8 bilhões que precisa de reforços coloca as vacinas contra a covid-19 em um circuito inteiramente novo. A Pfizer espera tornar sua vacina mais fácil de armazenar e distribuir – e está trabalhando em uma versão liofilizada. A empresa está se preparando para o que Bourla chama de “mercado aberto”, no qual os suprimentos são abundantes e as pessoas podem escolher a vacina que desejam.
“Eu me sentiria muito confortável de que teremos a maior parte do mercado, porque somos os primeiros e somos os melhores”, disse Bourla em sua teleconferência sobre vendas. “Em cenários em que o Covid-19 passará de uma pandemia para um tipo de vacinação habitual, é muito claro que a Pfizer terá uma importante vantagem, não apenas por causa da força dos números, mas também porque desenvolvemos significativo valor de marca e confiança das pessoas”.
Por fim, a escassez irá terminar. Até então, Bourla ocupa uma estranha posição. Ele é um salvador, o líder ousado de uma empresa que se posicionou à frente. Mas ele prometeu aos governos desesperados doses que não conseguiu entregar a tempo. À medida que os suprimentos aumentam, os ressentimentos tendem a desaparecer, mas as decisões de Bourla durante o auge da pandemia serão objeto de estudo. Havia uma lacuna na liderança global que ele e sua empresa preencheram. O mundo precisa de soluções melhores antes de chegar a próxima crise de saúde pública.
* Com a colaboração de Ivan Levingston, Sylvia Westall e Naomi Kresge
Tradução por Anna Maria Della Luche