Ciência

Descoberta da USP apresenta potencial para tratar câncer

Peptídeo possui potencial para inibir o crescimento patológico de novos vasos sanguíneos, processo que ocorre em doenças como retinopatia e câncer

Tratamento de quimioterapia: descoberta de pesquisadores pode ajudar no tratamento do câncer (Justin Sullivan/Getty Images)

Tratamento de quimioterapia: descoberta de pesquisadores pode ajudar no tratamento do câncer (Justin Sullivan/Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 10 de janeiro de 2017 às 11h33.

Um pequeno peptídeo sintético identificado por pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) apresentou em testes pré-clínicos potencial para inibir o crescimento patológico de novos vasos sanguíneos, processo que ocorre em doenças como retinopatia e câncer.

A pesquisa foi conduzida durante o pós-doutorado de Jussara Michaloski Souza, sob a coordenação do professor Ricardo Jose Giordano. O projeto teve apoio da FAPESP e seus resultados foram divulgados recentemente na revista Science Advances.

“O peptídeo ainda não é um fármaco, mas pode servir de modelo para o desenvolvimento de um novo inibidor de angiogênese”, disse Giordano em entrevista à Agência FAPESP.

Como explicou o pesquisador, angiogênese é o processo de formação de novos vasos sanguíneos a partir de outros já existentes.

Ele pode ocorrer de maneira fisiológica, durante um processo de cicatrização ou quando há aumento na demanda de oxigênio e nutrientes em um determinado tecido.

Mas no caso da retinopatia diabética, por exemplo, o excesso de glicose no sangue induz um desenvolvimento excessivo e desorganizado dos vasos da retina – causando lesões no tecido e podendo comprometer a visão.

Já em alguns tipos de câncer, o tumor libera mediadores que induzem uma intensa angiogênese para aumentar o aporte de oxigênio e nutrientes para as células malignas continuarem a se proliferar descontroladamente.

Os principais mediadores envolvidos no processo de angiogênese são quatro proteínas da família VEGF (fator de crescimento endotelial vascular, na sigla em inglês): VEGFA, B, C e D.

Elas precisam se ligar a receptores específicos existentes na superfície das células – as proteínas VEGFR-1, 2 e 3 – para que seja disparada uma cascata de sinalização intracelular e o processo de formação dos novos vasos tenha início.

“O peptídeo que descrevemos no estudo, cuja sequência de aminoácidos é PCAIWF, mostrou-se capaz de se ligar aos três receptores de VEGF na superfície da célula, bloqueando a ação de toda a família de proteínas”, contou o pesquisador.

Descoberta

Para encontrar a molécula que melhor interagia com a porção extracelular dos receptores, o grupo coordenado por Giordano desenvolveu e triou uma biblioteca com quase 10 bilhões de peptídeos diferentes. Para isso, foi usada uma técnica conhecida como Phage Display.

O método consiste em manipular o genoma de bacteriófagos (vírus que infectam bactérias) para fazer com que cada partícula viral sintetize um diferente peptídeo – que fica aderido à sua proteína de superfície.

“Usamos bacteriófagos porque são vírus muito resistentes a variações na temperatura e no pH. Dessa forma, as bibliotecas de peptídeos geradas permanecem viáveis para a pesquisa durante anos”, contou Giordano.

O passo seguinte foi incubar toda a biblioteca com um receptor de VEGFR para ver quais partículas virais ficariam aderidas a essa proteína.

“A princípio, focamos apenas no VEGFR-3, que era o menos estudado até então em relação à angiogênese. A ideia era identificar um peptídeo que se ligasse a esse receptor para descobrir o que aconteceria se ele fosse bloqueado”, contou Giordano.

Os primeiros ensaios indicaram o peptídeo PCAIWF como o mais promissor. Ao realizar novos testes in vitro com a molécula purificada (não mais acoplada ao bacteriófago), os pesquisadores descobriram que ela também se ligava ao VEGFR-1 e 2, bloqueando a ação de toda a família VEGF.

“Cada uma das proteínas se liga a receptores diferentes. O VEGFA, por exemplo, se liga ao VEGFR-1 e 2, mas não se liga ao VEGFR-3. Já o VEGFC se liga ao VEGFR-2 e 3, mas não ao VEGFR-1. Ao bloquear os três receptores, portanto, inibimos a ação de todas as proteínas dessa classe, o que sugere uma ação mais eficaz”, explicou Giordano.

Testes in vivo

Para testar o efeito in vivo, os pesquisadores usaram um modelo de camundongo que simula a retinopatia da prematuridade. Em bebês humanos, essa condição é causada pela exposição excessiva ao oxigênio em incubadoras neonatais.

O gás inibe a formação dos vasos da retina, que normalmente ocorre nas últimas semanas de gestação. Quando o bebê sai da incubadora, o tecido ocular passa a sofrer de hipóxia (falta de oxigênio) e ocorre uma angiogênese patológica.

“O bebê camundongo nasce com os olhos fechados e eles só abrem por volta do 14º dia de vida. O processo de formação dos vasos da retina ocorre, portanto, após o nascimento nesses roedores e podemos simular o processo que acomete bebês prematuros”, explicou Giordano.

Os camundongos foram colocados aos sete dias de vida em uma câmara de oxigênio e permaneceram lá até o 12 º dia.

No 15º dia, parte dos animais recebeu uma injeção intraocular com o peptídeo PCAIWF e, dois dias depois, quando deveria ocorrer o ápice do processo de angiogênese, os camundongos foram analisados.

Enquanto nos animais que receberam apenas placebo os sinais de retinopatia eram evidentes, no grupo tratado com o peptídeo a área vascular e a profundidade da vasculatura estavam semelhantes às dos roedores que não passaram pela câmara de oxigênio e, portanto, apresentavam o desenvolvimento normal da retina.

Novos passos

Segundo Giordano, os resultados obtidos durante o pós-doutorado de Souza abriram novas frentes de pesquisa. Uma delas, que já teve início, é o estudo aprofundado da estrutura do peptídeo, por meio de métodos como ressonância magnética nuclear, para entender como ele interage com os receptores.

“Esse conhecimento abre caminho para o desenho racional de novos inibidores de angiogênese – que possam, talvez, ser administrados por via oral. Mas, apesar de o peptídeo não ser a droga ideal por precisar ser injetado diretamente no olho, o que não é agradável, talvez seja possível desenvolver nanoformulações para tornar sua liberação mais lenta. Desse modo, seria possível espaçar as injeções”, disse Giordano.

Atualmente, há no mercado o biofármaco injetável bevacizumab, que age neutralizando a ação do VEGFA.

“Trata-se de um anticorpo monoclonal que neutraliza a ação da proteína mais importante para o processo de angiogênese e tem sido usado para tumores de cólon, rim, gliomas e também no tratamento da retinopatia. Mas é um medicamento caro. Custa cerca de R$ 5 mil a dose e são necessárias injeções mensais”, contou Giordano.

Outra opção é o fármaco sunitinibe que, embora tenha a vantagem de ser administrado via oral, apresenta mais efeitos colaterais por ter ação sistêmica.

“Ele age na porção intracelular dos receptores de VEGF e acaba afetando também outras proteínas parecidas, como o receptor da proteína PDGF [fator de crescimento derivado de plaquetas, na sigla em inglês]. Sem a ação da PDGF, o vaso fica mais frágil e hemorrágico, o que pode afetar principalmente o coração”, explicou o pesquisador.

Já o peptídeo PCAIWF, explicou Giordano, age na porção extracelular dos receptores de VEGF – parte em que essas proteínas são mais diferentes de outras da mesma classe (tirosinas quinases).

Ainda assim, na avaliação do pesquisador, os riscos de efeitos adversos não são desprezíveis se a administração for por via oral, pois a droga pode afetar o processo fisiológico de angiogênese em outros tecidos.

“Estamos agora tentando identificar em modelos animais genes que são expressos apenas na angiogênese patológica, o que pode abrir caminho para o desenvolvimento de fármacos ainda mais seletivos”, comentou Giordano.

O artigo “Discovery of pan-VEGF inhibitory peptides directed to the extracellular ligand-binding domains of the VEGF receptors” (DOI: 10.1126/sciadv.1600611) pode ser lido aqui.

Essa matéria foi originalmente publicada no site da Agência Fapesp.

Acompanhe tudo sobre:CâncerDoençasPesquisas científicasUSP

Mais de Ciência

Cientistas criam "espaguete" 200 vezes mais fino que um fio de cabelo humano

Cientistas conseguem reverter problemas de visão usando células-tronco pela primeira vez

Meteorito sugere que existia água em Marte há 742 milhões de anos

Como esta cientista curou o próprio câncer de mama — e por que isso não deve ser repetido