Fábrica da BioNTech, na Alemanha (Boris Roessler/picture alliance/Getty Images)
Filipe Serrano
Publicado em 2 de março de 2021 às 07h30.
Última atualização em 2 de março de 2021 às 19h30.
Nos arredores de Marburgo, pequena cidade universitária da Alemanha, um pequeno grupo de funcionários com trajes antirradiação da BioNTech, fabricante de vacinas do coronavírus, se amontoava ansiosamente em torno do banco desinfetado de um laboratório em 9 de fevereiro, à medida que uma cadeia de reações químicas acontecia silenciosamente dentro de uma sacola gigante de plástico biorreator. Era a prova de fogo da nova fábrica da empresa, reformada às pressas para produzir 750 milhões de doses por ano de um dos produtos mais procurados do mundo: o ingrediente farmacêutico ativo da vacina de RNA mensageiro vendida pela BioNTech e sua parceira, a Pfizer.
A procura pela vacina contra o coronavírus, fabricada inicialmente pela BioNTech, tem sido tão grande que os locais de produção da empresa – uma fábrica de mRNA da BioNTech em Mainz (Alemanha), três fábricas da Pfizer nos Estados Unidos e unidades de diversos outros parceiros de produção em toda a Europa, além da operação de formulação e envasamento da Pfizer na Bélgica – não conseguem dar conta dos pedidos. Por isso, a empresa alemã passou cinco meses acelerando a burocracia, reciclando funcionários e reformando a fábrica de Marburgo para deixá-la pronta para produzir mais mRNA.
Sucesso significaria a possibilidade de vacinar cerca de mais de 375 milhões de pessoas por ano e ajudaria a colocar a pandemia sob controle. Mas um revés poderia forçar os parceiros a revisar a meta de produzir 2 bilhões de doses neste ano, deixando muitos países sem o medicamento tão desejado.
A escassez de vacinas tornou-se questão política na sede europeia da BioNTech. “Muitos cidadãos terão de ter paciência nesta fase difícil da pandemia”, diz o ministro alemão da saúde, Jens Spahn. “As doses de vacinas são muito, muito restritas.” Alguns colegas de Spahn no Parlamento têm sugerido que os fabricantes de medicamentos talvez devessem converter outras linhas de produção para aumentar a oferta de vacinas, mas o longo trajeto do plano à fabricação em Marburgo é evidência de por que essa não é uma solução tão simples.
Meses antes de a BioNTech começar a derrubar paredes de fábricas no outono passado, a empresa teve de alinhar alguns componentes-chave que não estão na lista de entregas tradicional dos fabricantes de medicamentos. Entre eles, uma bomba de alta pressão usada para misturar o mRNA com lipídios gordurosos, que pode levar até seis meses para se conseguir, já que só é produzida por encomenda.
Os próprios lípidos são outro material que a indústria raramente utiliza e um desafio em um caso de produção súbita em larga escala. No entanto, estas partículas são essenciais para o processo: Elas encapsulam o RNA mensageiro (mRNA), garantindo que ele não se decomponha no corpo. Sierk Poetting, diretor financeiro e de operações da BioNTech, diz que encomendou o máximo que conseguiu de lipídios em março do ano passado, mais ou menos no mesmo período em que BioNTech e Pfizer assinaram o acordo de desenvolvimento.
Quando a BioNTech começou a trabalhar no novo coronavírus há pouco mais de um ano, as vacinas de mRNA tinham sido fabricadas para um pequeno grupo de pessoas em estudos médicos. Ao contrário das imunizações convencionais, que introduzem um vírus morto ou enfraquecido no corpo, as vacinas de mRNA codificam instruções para que o próprio corpo produza uma cópia inofensiva de uma porção-chave do vírus – transformando, essencialmente, o corpo em sua própria fábrica de vacinas.
Poetting começou a pensar onde fabricar a vacina em abril, enquanto os pesquisadores da BioNTech e da Pfizer trabalhavam no desenvolvimento. Ele começou ampliando a linha de produção existente na sede da BioNTech em Mainz, mas sabia que seria necessário mais espaço caso a vacina se mostrasse eficaz.
No meio do ano passado, à medida que a Europa saía de sua primeira onda de pandemia, Poetting ouviu que seu antigo empregador Novartis poderia estar pronto para vender a fábrica da empresa em Marburgo. Poetting então fez um pouco de pesquisa de campo e descobriu que tinha tirado a sorte grande. Usado até então para produzir vacinas contra a raiva, gripe suína e tétano, o local, que veio com 300 trabalhadores treinados, estava produzindo medicamentos biológicos complexos. O mais crucial: também tinha dois biorreatores – panelas de tamanho industrial para produzir materiais medicinais. O lugar ainda precisaria de adaptações, mas isso seria muito mais fácil do que começar do zero.
Em setembro, apoiada com um subsídio de 375 milhões de euros do governo alemão, a BioNTech anunciou o acordo com a fábrica. Embora a vacina ainda não tivesse a eficácia comprovada, a equipe de Poetting começou a medir, fazer planos e ensinar aos trabalhadores como fabricá-la. Em novembro, BioNTech e Pfizer tiveram que reduzir pela metade a estimativa de quantas doses conseguiriam produzir em 2020, para 50 milhões. E, para atingir a meta de 2021, as empresas sabiam que tinham de botar Marburgo para funcionar depressa.
Outros fabricantes de medicamentos que se alistaram nas últimas semanas para botar seu peso por trás da fabricação de vacinas de mRNA também parecem prever desafios. A gigante francesa dos remédios Sanofi concordou, no fim de janeiro, em cuidar da última etapa de produção de frascos para a BioNTech – preencher frascos com a vacina –, mas disse que não teria doses prontas para entrega até junho. Um acordo de produção semelhante firmado entre BioNTech e Novartis também não começa a produzir antes de julho, no melhor cenário. O problema não é exclusivo da BioNTech. Quando a Bayer uniu forças com a CureVac (rival da BioNTech) para fabricar outra vacina de mRNA neste mês, estabeleceu que as entregas só começaram no final do ano.
Esses prazos de entrega podem parecer longos, mas, para os padrões do setor, as empresas estão se movendo na velocidade da luz. Definir um parceiro de produção externo em geral leva de 12 a 18 meses, afirma Florian Von Der Mülbe, diretor de produção da CureVac, mas “nós (a empresa) estamos perto de fechar com um...dentro de quatro a cinco meses”.
A BioNTech bateu o martelo quanto à fábrica de Marburgo em novembro. Naquele mesmo mês, os resultados dos estudos clínicos mostraram que a vacina da empresa era 95% eficaz contra o covid-19, chocando o mundo e levando os clientes a cobrar ainda mais doses.
Embora a tecnologia seja nova, fabricar a vacina é mais simples do que alguns outros medicamentos, já que não há necessidade de cultivar ou alimentar células vivas, diz Poetting, físico de formação que trabalhou anteriormente no setor de medicamentos genéricos da Novartis. “É algo que se resume a ‘por favor adicione o plasmídeo, agora o tampão, por gentileza, agora mexa por X minutos a X graus, agora baixe a temperatura e adicione algumas enzimas’”, diz ele. “Levou 20 anos para melhorar a receita e achar os ingredientes, mas agora está cozinhando de verdade.”
Aumentar a produção de uma vacina de mRNA ainda requer uma certa finesse. “Se você quer fazer 10 vezes o molho da massa do Dia de Ação de Graças, pode não dar certo, porque tudo fica um pouco diferente”, diz Poetting. “A consistência é outra. O jeito como você tem de colocar os ingredientes é um pouco diferente. Não é só multiplicar tudo por 10, é um pouco mais difícil.”
A equipe de Poetting usou parte de seu estoque limitado de lipídios para realizar os primeiros testes em Marburgo, necessários para provar ao órgão regulador de medicamentos da Europa que a qualidade da substância produzida no local vale o quanto pesa. O primeiro lote, com cerca de 50 litros de material mRNA, deve ser suficiente para fabricar 8 milhões de doses de vacina. Se o processo correr bem, é provável que a BioNTech consiga armazenar os lotes de teste e enviá-los aos clientes, após um processo de validação, por volta de abril. Caso algo dê errado – mesmo algo pequeno, como uma contaminação causada por um furo numa embalagem esterilizada de luvas –, a empresa terá de tentar novamente. Como diz Poetting: “O jogo não está ganho”.
(colaboraram Tim Loh e Chris Reiter)
Tradução por Fabrício Calado Moreira