Cetamina injetável já é prescrita contra a depressão refratária nos EUA, no Reino Unido e até no Brasil, mesmo sem aprovação de autoridades de saúde (KatarzynaBialasiewicz/Thinkstock)
Gustavo Gusmão
Publicado em 27 de janeiro de 2019 às 07h01.
Última atualização em 14 de março de 2019 às 21h15.
Em setembro de 2018, a empresa farmacêutica Janssen apresentou à agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos um pedido de registro de uso novo para uma medicação antiga. O laboratório, parte da empresa norte-americana Johnson&Johnson, solicitou à Food and Drug Administration (FDA) que o composto escetamina, um dos componentes do anestésico cetamina, sintetizado nos anos 1960, possa ser usado contra a depressão que não cede aos antidepressivos, chamada de refratária ao tratamento. Nos últimos 20 anos, um número crescente de estudos, a maior parte feita com poucas pessoas e de curta duração, sugere que, em doses baixas, a cetamina tem ação antidepressiva potente e rápida.
Uma única dose, injetada no músculo ou na corrente sanguínea, seria capaz de reduzir de modo significativo e relativamente duradouro (cerca de uma semana) a tristeza, a desesperança, a falta de motivação, a baixa autoestima e até os pensamentos suicidas que podem acompanhar a depressão severa. “Em doses de 10 a 20 vezes inferiores às usadas na anestesia, é um medicamento que ajuda a tirar a pessoa do fundo do poço”, afirma o psiquiatra Acioly Lacerda, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), um dos pioneiros no uso experimental da cetamina contra a depressão no Brasil.
Um dos problemas de saúde mental mais frequentes no mundo, a depressão atinge 300 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde. Um desafio é que até metade das pessoas tratadas não melhora com os antidepressivos disponíveis. De olho nesse mercado, a Janssen desenvolveu uma versão de uso mais simples para pessoas com depressão: um spray nasal de escetamina que deverá ser administrado sob supervisão médica.
Caso seja aprovado pela FDA, o spray de escetamina deve se tornar o primeiro composto da classe dos psicodélicos, que alteram a percepção da realidade, a ser adotado no tratamento de doenças psiquiátricas com respaldo de uma autoridade sanitária. Recentemente, tem crescido o interesse de profissionais de saúde mental no uso terapêutico de psicodélicos, muitos em estágio mais inicial de testes (ver reportagem).
O produto da Janssen está na fase mais avançada de avaliação em seres humanos: os ensaios clínicos de fase 3, que medem a eficácia do produto, última etapa antes da liberação para comercialização. Em maio, o grupo coordenado pela psiquiatra Carla Canuso, diretora de desenvolvimento clínico da Johnson&Johnson, publicou um artigo on-line no American Journal of Psychiatry em que mostra os resultados de uma etapa anterior, os ensaios de fase 2. Realizado com pesquisadores da Universidade Yale, nos Estados Unidos, o estudo avaliou a segurança e deu indícios da possível eficácia do spray. Nele, 68 pessoas com depressão refratária e risco iminente de suicídio foram aleatoriamente indicadas para receber duas doses semanais de escetamina intranasal por quatro semanas ou de um composto inócuo (placebo). Os dois grupos também foram tratados com um antidepressivo convencional. Segundo o trabalho, quem recebeu escetamina melhorou mais rápido, até o 11º dia dos testes, do que o grupo placebo.
Resultados preliminares de dois ensaios clínicos de fase 3, dos quais participam centenas de pessoas em 60 clínicas e hospitais de diversos países, inclusive do Brasil, foram apresentados em maio no encontro anual da Associação Americana de Psiquiatria e reforçam os achados anteriores. “Se a resposta da escetamina intranasal continuar superior à do placebo nos estudos que estão terminando, a aprovação da FDA pode vir em até um ano”, diz o psiquiatra Lucas Quarantini, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que, como Lacerda, participa dos testes do medicamento da Janssen.
Mesmo sem aprovação das autoridades de saúde, já ocorre nos Estados Unidos, e mais recentemente no Reino Unido e no Brasil, a prescrição de cetamina injetável contra a depressão refratária. Nesses países o composto está registrado apenas como anestésico. Seu uso psiquiátrico não consta da bula e é considerado excepcional ou off-label (prática comum que, segundo alguns estudos, ocorre com até 40% dos medicamentos prescritos para adultos). Por essa razão, a indicação da cetamina injetável contra a depressão ocorre por conta e risco do médico, que só deve recomendá-la se os benefícios para o paciente superarem os riscos – de problemas cardiovasculares (em parte das pessoas, eleva temporariamente a pressão arterial) e de dependência. “O uso off-label é de responsabilidade de cada profissional”, informou a assessoria de comunicação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regula a venda de medicamentos no Brasil.
No país, a única empresa produtora de cetamina, o laboratório Cristália, entrou há cerca de oito meses com um pedido na Anvisa para que o tratamento da depressão passe a constar em bula. “Reunimos os estudos mostrando a segurança e eficácia do produto contra a depressão e estamos aguardando”, conta o médico Ogari Pacheco, cofundador do Cristália. A aprovação pela autoridade sanitária daria respaldo aos médicos, que correm o risco de sofrer ações judiciais. Também representaria um passo inicial para que se torne possível pedir ao Ministério da Saúde a inclusão da cetamina, um medicamento barato (a dose custa entre R$ 5 e R$ 10), na lista de medicamentos e procedimentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelos planos de saúde.
Hoje, clínicas e hospitais públicos que tratam depressão com cetamina dependem do setor de anestesiologia para fazer a compra. Na iniciativa privada, é preciso ter alvará para a aplicação de medicamentos injetáveis, além de equipamentos para monitoração cardiorrespiratória e ressuscitação. Nesses locais, cada aplicação sai por R$ 600 a R$ 1.200, por causa da infraestrutura exigida e do custo da hora das equipes médica e de enfermagem.
Lacerda calcula que cerca de 20 clínicas e hospitais brasileiros (ao menos seis ligados a universidades públicas) já ofereçam o tratamento com cetamina para a depressão. Na Unifesp, ele coordena uma equipe que atua em dois ambulatórios que funcionam todas as manhãs de segunda a sexta-feira e atendem apenas pacientes do SUS. Nas duas unidades, 10 pessoas são tratadas com cetamina por dia. “Em quatro anos, esse consórcio de clínicas e hospitais já realizou cerca de 6 mil aplicações de cetamina em aproximadamente 1.200 pacientes”, conta. “Entre 60% e 65% deles apresentaram melhora considerável”, afirma o pesquisador.
Há cerca de cinco anos Quarantini e Lacerda trabalham em parceria. Eles já testaram em 27 pacientes (23 com depressão e 4 com transtorno bipolar) a aplicação de cetamina em menos tempo, apenas 10 minutos, e obtiveram resultados semelhantes ao da administração usual, em 40 minutos.
No ano passado, relataram na revista Schizophrenia Research o tratamento experimental de seis pessoas com esquizofrenia. Doses baixas de cetamina reduziram nesses pacientes a perda de prazer (anedonia) característica tanto da depressão quanto da esquizofrenia. Em outro estudo, eles avaliaram em 63 pessoas com depressão as duas variedades de cetamina existentes no mercado: a S-cetamina ou escetamina, usada no spray da Janssen e, no Brasil, fabricada pelo laboratório Cristália, e a cetamina usada em anestesia, conhecida como racêmica, uma mistura da S-cetamina e da R-cetamina (elas têm estrutura espacial diferente). Segundo os dados, já aceitos para publicação, a S-cetamina funcionou tão bem quanto a racêmica.
“Há razão para ser otimista com o impacto da cetamina sobre a sobrecarga que a depressão gera na saúde pública”, afirmou o psiquiatra norte-americano John Krystal, professor da Universidade Yale, em entrevista a Pesquisa FAPESP. “Nunca houve um medicamento que agisse de maneira tão rápida, eficiente e persistente.”
Krystal foi um dos pioneiros no uso da cetamina para tratar problemas psiquiátricos e hoje detém uma parte das patentes licenciadas pela Janssen para administração intranasal de escetamina e seu uso para tratar impulsos suicidas. Em meados dos anos 1990, ele começou a investigar o efeito de doses baixas da cetamina injetável sobre o humor das pessoas e, em 2000, publicou a primeira evidência de que o composto produzia um efeito antidepressivo rápido em humanos. Em um estudo com apenas oito pessoas, metade apresentou redução superior a 50% nos sintomas depressivos em um dia após uma única aplicação. “Não havíamos antecipado a robustez e a rapidez dos efeitos antidepressivos da cetamina em humanos”, conta Krystal.