Ciência

Além dos coágulos: vacina de Oxford ainda é melhor esperança para o mundo

De baixo custo e fácil de transportar, a vacina de Oxford e da Astrazeneca -- produzida no Brasil pela Fiocruz -- continua sendo a principal aposta no combate à pandemia, mas o drama dos casos de coágulos e a divulgação de dados problemática não ajudam; conheça os detalhes da história do imunizante

 (Reuters/Reuters)

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Filipe Serrano

Publicado em 21 de abril de 2021 às 07h31.

Última atualização em 21 de abril de 2021 às 09h42.

Vacinação contra a covid-19 em Bangladesh: o custo baixo e a facilidade de transporte ainda favorecem o imunizante da AstraZeneca e da Universidade de Oxford (Dey Joy/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

Mene Pangalos, chefe de pesquisa biofarmacêutica da AstraZeneca, foi para a cama na segunda-feira, 22 de março, sentindo-se bem pela primeira vez em muito tempo. Depois de trabalhar sem parar durante o fim de semana, ele tinha acabado de anunciar resultados provisórios melhores do que o esperado do grande ensaio da vacina da empresa nos EUA: a vacina mostrou-se segura e 79% eficaz na prevenção de casos sintomáticos de covid-19. Notícias positivas, finalmente, após meses de perguntas a respeito de tudo, incluindo segurança e escassez de suprimentos.

Mas por volta das 5 da manhã no dia seguinte, Pangalos foi arrancado da cama, no Reino Unido, por um telefonema do CEO da AstraZeneca, Pascal Soriot, da Austrália, para perguntar o que diabos estava acontecendo. O Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos (INADI) havia acabado de emitir uma declaração tarde da noite anunciando que o conselho de segurança que supervisionava o estudo estava preocupado que a AstraZeneca "poderia ​​ter incluído informações desatualizadas" em seus resultados, que "poderiam ter fornecido uma visão incompleta dos dados de eficácia.” A INADI, que faz parte do Institutos Nacionais de Saúde (NIH), instou a empresa a divulgar dados atualizados o mais rápido possível.

Enquanto a Europa dormia, Pangalos e sua equipe receberam um áspero e-mail do Conselho de Monitoramento de Dados e Segurança, CMDS, comitê independente de especialistas nomeado pelo NIH para supervisionar o teste. O CMDS acusou a empresa de divulgar números “potencialmente enganosos”, dizendo que os dados eram “mais favoráveis ​​para o estudo em oposição aos mais recentes e completos”. Esses especialistas acrescentaram que “decisões como essa são o que corroem a confiança do público no processo científico”. Os executivos da AstraZeneca ficaram surpresos. Em primeiro lugar, ninguém havia entrado em contato com eles para discutir as preocupações, e a decisão do INADI em divulgar a crítica do comitê independente aos resultados provisórios foi sem precedentes.

O conteúdo da carta do CMDS vazou rapidamente para o Washington Post e o New York Times. Em poucas horas, Anthony Fauci, diretor do INADI, estava no programa de TV “Good Morning America” falando sobre o incidente. “É realmente uma pena que isso tenha acontecido”, disse ele. “É o que se chama de erro não forçado, porque o fato é que muito provavelmente se trata de uma vacina muito boa, e esse tipo de coisa só causa mais dúvidas”.

A AstraZeneca havia sido autorizada na sexta-feira anterior pelo conselho de segurança para conduzir sua análise provisória, com base em 141 casos verificados de covid-19 datados de 17 de fevereiro. O CMDS havia alertado a empresa para assegurar que não produziriam um índice de eficácia significativamente diferente, de acordo com pessoas familiarizadas com as discussões. A equipe analisou os casos, mas, acreditando que seu efeito potencial sobre o índice de eficácia era insignificante, eles não mencionaram em sua declaração que a porcentagem final poderia mudar.

Agora, com a publicação da carta do CMDS, a equipe de testes correu para revisar os 49 casos adicionais, um processo que normalmente demora semanas. Dois dias depois, a AstraZeneca anunciou os resultados atualizados. As diferenças foram estatisticamente insignificantes: a eficácia geral caiu 3 pontos percentuais, para 76%, embora na verdade tenha aumentado 5 pontos percentuais em idosos, para 85%. A vacina foi 100% eficaz na prevenção de hospitalização e doenças graves. Desta vez, a AstraZeneca teve o cuidado de observar que ainda havia mais 14 casos possíveis ou prováveis ​​de covid-19 a serem avaliados, o que poderia fazer com que os números oscilassem. Os executivos da empresa ficaram profundamente chateados com os eventos da semana. “É extremamente frustrante”, diz um deles. "Honestamente, isso nos magoa muito”.

Na semana seguinte ao lançamento dos resultados atualizados, Fauci minimizou o drama. “Eu não questionei os dados deles”, disse ele quando questionado sobre o incidente pela Bloomberg Businessweek em uma reunião na Casa Branca em 31 de março. “Esta é uma boa vacina que terá um papel muito importante na resposta global a este surto”.

A vacina de Oxford com a AstraZeneca

A história da vacina que a AstraZeneca desenvolveu com a Universidade de Oxford está marcada por nobres intenções, erros de comunicação, testes complicados, pesadelos de fabricação e rivalidade política e econômica. Mais seriamente, a vacina está enfrentando uma série de relatos de que um pequeno número de pessoas que a recebeu, a maioria delas com menos de 60 anos, desenvolveu uma forma rara de coagulação do sangue cerebral.

A Organização Mundial de Saúde e os reguladores britânicos e europeus disseram que encontraram uma possível ligação entre a vacina e os coágulos, mas que os benefícios de se tomar as doses superam os riscos. O regulador da UE recomendou que a coagulação seja mencionada como um efeito colateral raro, enquanto o Reino Unido está aconselhando para a vacina não ser usada em pessoas com menos de 30 anos. Alguns governos já suspenderam o uso da vacina em pessoas mais jovens. Apesar de todos os problemas, muitos líderes da União Europeia têm solicitado mais doses, reclamando que a AstraZeneca não cumpriu as promessas de fornecimento e até mesmo ameaçando bloquear a exportação de vacinas fabricadas ou envasadas na UE.

No espaço de um ano, a AstraZeneca passou de filho favorito a criança problemática na família das vacinas contra o coronavírus. “Há uma pequena nuvem que a segue para onde quer que vá, o que eu acho um pouco injusto”, diz John Bell, professor canadense de medicina de Oxford que supervisiona as relações entre a universidade e a AstraZeneca. “Se as pessoas continuarem a criticar essa vacina, ninguém terá confiança para usá-la, e então teremos um grande problema – porque ela pode ser implantada, é barata e pode-se usá-la globalmente e é claramente muitíssimo eficaz."

Como sugere Bell, a vacina da AstraZeneca é mais facilmente transportada e armazenada do que as vacinas baseadas em mRNA da Moderna e da Pfizer-BioNTech. A empresa britânica prometeu entregar até 3 bilhões de doses em 2021, vendendo-as sem fins lucrativos, por alguns dólares a dose. Espera-se que apenas a vacina de dose única da Johnson & Johnson, que também concordou em vender a produção sem lucro, represente uma contribuição semelhante para acabar com a pandemia, mas ainda está muito atrás da produção da AstraZenca. Em contrapartida, a vacina da Pfizer-BioNTech deverá gerar US$ 15 bilhões em receita este ano, enquanto a Moderna está prevendo US$ 18 bilhões para o seu medicamento. Mais de 135 milhões de doses de AstraZeneca já foram distribuídas em todo o mundo, e a vacina acabou se tornando o carro-chefe do COVAX, o programa apoiado pela OMS que fornece vacinas para países de baixa e média renda.

Os erros da pesquisa

AstraZeneca e Oxford tiveram sua cota de azar, mas também cometeram uma série de erros que atrapalharam próprio status de favoritos. “É chocante que eles tenham cometido tantos erros”, disse Ezekiel Emanuel, professor de ética médica e política de saúde da Universidade da Pensilvânia, que aconselhou a equipe de transição para combate ao Covid do presidente Biden. Apesar de todos os erros, o mundo precisa desesperadamente da vacina da Astra para acabar com a pandemia. Foi por causa disso que deu errado.

No ano passado nesta época, os cientistas da Oxford avançavam rapidamente nos testes de laboratório e em animais de sua vacina em desenvolvimento, que planejavam administrar em uma única dose. O time estava sob pressão para se associar a uma grande empresa farmacêutica, visto que a fabricação em grande escala exigiria meses de intensivo planejamento e enorme capacidade logística. As primeiras negociações com a Merck., sediada nos EUA, foram interrompidas depois que funcionários do Reino Unido, temendo que o nacionalismo americano pudesse deixá-los sem acesso a doses, disseram que queriam manter o desenvolvimento e a fabricação em mãos britânicas. A GlaxoSmithKline, importante desenvolvedora de vacinas do Reino Unido, abriu mão da oportunidade de unir forças. Restava o único outro participante britânico de qualquer tamanho, a AstraZeneca.

A AstraZeneca estava em alta sob o comando de Soriot, que não aceitou a proposta hostil de US$ 117 bilhões da Pfizer em 2014 e desenvolveu reputação como um "‘fazedor de milagres" ao entregar novos medicamentos ao mercado, especialmente tratamentos para o câncer. Quando Bell falou com Soriot em abril passado, ele disse que a Oxford tinha duas condições: a vacina tinha que ser vendida sem fins lucrativos pelo menos durante o primeiro ano, e a AstraZeneca tinha que ajudar a garantir que o mundo em desenvolvimento recebesse as doses. Bell diz que Soriot não hesitou em concordar, respondendo: "Estou completamente de acordo com você". Com isso, a AstraZeneca faria uma grande jogada de relações públicas e, no futuro, muito mais negócios se o reforço ou as doses anuais se mostrassem necessárias.

Além de um spray nasal para gripe, porém, a AstraZeneca quase não tinha experiência com vacinas. “Eles estão neste jogo pela primeira vez, e assim, estão construindo seu caminho”, diz Bell. “Eles não têm especialistas de renome, autoridades em vacinas em seu quadro para poderem dizer: ‘Pessoal, preste atenção a isso aqui que é muito bom’."

Algum potencial para erro foi incorporado ao processo desde o início. No final de abril, quando fechou o acordo final de parceria com a AstraZeneca, a Oxford já havia iniciado os testes em humanos, cujos protocolos se tornariam bastante complexos. Eles tinham grandes testes de Fase III programados para começar no Reino Unido e no Brasil, juntamente com um lote menor de Fase I-II na África do Sul. Para o teste de Fase III dos EUA, a AstraZeneca assumiu o comando, projetando um protocolo direto de dois braços.

Com o apoio do governo do Reino Unido, a parceria passou rapidamente para a fabricação, com base no trabalho inicial da universidade com a Oxford Biomédica, pequena empresa de biotecnologia vizinha, para fazer a produção doméstica decolar. Em meados de maio, o governo britânico anunciou que tinha encomendado 100 milhões de doses, e a Operação Warp Speed, o programa de vacinas do ex-presidente Donald Trump, prometeu até US$ 1,2 bilhão para acelerar o desenvolvimento da vacina e garantir 300 milhões de doses para os EUA. A Oxford começou logo seu teste de Fase III no Reino Unido. Tudo parecia estar indo bem.

Fora do olhar do público, no entanto, os cientistas da Oxford perceberam que calcularam mal a concentração da vacina, o que levou alguns participantes do ensaio de Fase III a receber meia dose. Na mesma época, a equipe decidiu mudar do protocolo de uma dose para um de duas doses depois de ver indícios de que ofereceria melhor proteção, estabelecendo um intervalo de dosagem de cerca de quatro semanas. Os reguladores do Reino Unido autorizaram-nos a continuar com o grupo de meia dose e a seguir com uma dose completa, mas o erro de cálculo e a decisão de adicionar uma segunda dose significaram que a equipe precisaria produzir mais vacina. Isso, por sua vez, atrasou a segunda dose para um grande número de voluntários.

Continuar com o grupo de meia dose parecia justificável para muitos dos participantes, dado que a pandemia estava se acelerando, uma vacina era necessária com urgência e é natural tentar protocolos de dosagens diferentes, se não geralmente, no sufoco. Mas algumas autoridades americanas ouviram sobre as mudanças no protocolo e pensaram: “O que esses caras estão fazendo?” de acordo com um elemento da administração anterior de Trump. Os movimentos minaram a confiança americana nos desenvolvedores britânicos – exatamente quando o NIH estava trabalhando com a AstraZeneca na configuração do teste de Fase III dos EUA.

A equipe da AstraZeneca esperava começar o teste nos EUA em julho, que acabou sendo na época em que Moderna e Pfizer iniciaram sua Fase III. Mas as autoridades norte-americanas queriam ter certeza de que a fabricação da vacina poderia ser ampliada e testada antes do início de um teste caro, e isso demorou mais do que o esperado, de acordo com três autoridades da administração anterior. Além disso, a  FDA (Food and Drug Administration) e alguns funcionários da Warp Speed ​​estavam pedindo dados detalhados sobre a resposta imunológica em indivíduos com mais de 65 anos, afirmam pessoas familiarizadas com a situação. A Oxford demorou em recrutar adultos mais velhos para seu grande estudo no Reino Unido. Com esses atrasos, a AstraZeneca não conseguiu começar a testar voluntários nos EUA até o final de agosto.

Interrupção nos testes

Apenas uma semana depois, o site americano de notícias de saúde, o STAT, relatou que o teste nos EUA havia sido interrompido depois de um voluntário no Reino Unido ter tido uma doença não especificada. Logo descobriu-se que a vacinação havia sido suspensa em todos os testes globais da parceria enquanto a situação estava sendo investigada. Não é incomum que os ensaios clínicos sejam interrompidos por precaução, especialmente na fase final em grande escala – é um sinal de que a segurança está sendo levada a sério. Mas este não foi um teste normal; foi um dos projetos científicos mais vigiados da história.

A primeira pausa relatada em um ensaio de vacina contra o coronavírus desencadeou uma tempestade na mídia. Sob enorme pressão para divulgar mais detalhes, os desenvolvedores se recusaram, citando a confidencialidade dos participantes – prática padrão em eventos desse tipo e que geralmente passa despercebida. Um comentário descartável de Matt Hancock, secretário de saúde do Reino Unido, revelou que o estudo de Fase III de Oxford havia sido interrompido anteriormente por uma questão de segurança.

Durante uma ligação subsequente com um investidor privado, Soriot revelou alguns dos detalhes que jornalistas e cientistas vinham exigindo. A participante era uma mulher que começou a sofrer de sintomas neurológicos consistentes com mielite transversa, uma inflamação da medula espinhal que pode ser causada por uma infecção viral. Soriot disse que não está claro se essa condição específica foi diagnosticada e se a vacina é a culpada. Novamente, a informação vazou, e novamente, uma tempestade se seguiu.

A divulgação seletiva de Soriot renovou as demandas por detalhes, que a empresa mais uma vez se recusou a divulgar. A mulher que apresentou a reação adversa queixava-se de que sua saúde estava sendo dissecada na mídia mundial, segundo pessoas que sabiam de sua situação. Liberar informações adicionais sobre sua condição antes que uma investigação completa fosse conduzida também poderia ter comprometido a integridade do estudo e potencialmente encorajado outros participantes a relatar problemas semelhantes onde poderiam nem estar ocorrendo.

Os órgãos reguladores no Brasil e no Reino Unido autorizaram a Oxford a retomar seu teste cerca de uma semana após o início da pausa, mas os EUA mantiveram o estudo suspenso por quase sete semanas enquanto a Pfizer e a Moderna avançavam com seus projetos. As autoridades americanas estavam pedindo à AstraZeneca informações detalhadas sobre todos os eventos neurológicos em qualquer participante que já tivesse recebido a vacina, de acordo com pessoas familiarizadas com o pedido. Três antigos altos funcionários dos EUA dizem que ficaram frustrados com o tempo que a AstraZeneca estava demorando para fornecer os dados solicitados. O FDA não desejava desacelerar as coisas devido à urgência da pandemia, disse um ex-funcionário. Outras empresas conseguiram responder rapidamente às solicitações do FDA, e vários funcionários dos EUA começaram a presumir que a AstraZeneca e a Oxford estavam com problemas de comunicação.

Algumas pessoas que trabalhavam no esforço de vacinação do governo do Reino Unido ficaram perplexas com o atraso. Em 12 de outubro, o STAT relatou que a Johnson & Johnson havia pausado seus testes por causa de uma doença inexplicada. Como a AstraZeneca, a empresa americana não anunciou a pausa e se recusou a divulgar detalhes, citando a privacidade do paciente; mais tarde, revelou em um relatório para a FDA que um voluntário do sexo masculino de 25 anos teve um coágulo no cérebro, resultando em hemorragia cerebral. Depois de concluir que o evento não estava relacionado à vacina, a J&J retomou seus testes nos EUA, dizendo que recomeçaria a funcionar menos de duas semanas após o início da pausa.

A essa altura, algumas autoridades americanas haviam se desencantado com a vacina da AstraZeneca, certos de que tinham Pfizer e Moderna à disposição, com a Johnson & Johnson não muito atrás. “A AstraZeneca parecia uma gangue que não conseguia atirar direito”, disse um antigo funcionário da administração Trump. “Foi quase uma atitude de: Se eles conseguirem, tudo bem, se não, tudo bem também. Mas não vamos fazer nada para tornar a AstraZeneca um sucesso. Isso é certo. Eles haviam errado o chute a gol tantas vezes”.

Em novembro, a Pfizer e a Moderna haviam produzido um conjunto de resultados claros para suas vacinas em testes nos EUA, mostrando eficácia em cerca de 95%  – melhor que qualquer um ousou esperar. Quando a Oxford relatou os resultados provisórios de seus testes de Fase III no Reino Unido e no Brasil em 23 de novembro, eles também foram bons, mas pareciam confusos, comparados aos outros.

Enquanto a Pfizer inscreveu mais de 40.000 participantes e a Moderna mais de 30.000, a Oxford relatou dados de eficácia provisórios em menos de 12.000 participantes. A Oxford também não produziu um dado único sobre eficácia, em vez disso, apresentou dois que pareciam contraintuitivos – um problema que remontava ao fato agora público de que um grupo havia recebido meia dose em sua primeira vacinação. A vacina foi 62% eficaz em um grupo que recebeu duas doses completas com intervalo de cerca de um mês. Surpreendentemente, no grupo menor de cerca de 2.700 pessoas que receberam a meia dose em sua primeira injeção, o número subiu para 90%.

Inicialmente, a Oxford e a AstraZeneca ofereceram histórias conflitantes sobre o que aconteceu com a dosagem. Sarah Gilbert, a cientista da Oxford que liderou o desenvolvimento da vacina, a explicou como uma função da experimentação. “Não queremos nos ater a uma dose muito baixa e descobrir que temos uma resposta imunológica muito baixa”, disse ela à Bloomberg News. “Por outro lado, gostaríamos de um protocolo de vacinação que seja bem tolerado.” No dia seguinte, Pangalos disse à Reuters que os cientistas de Oxford haviam realmente "previsto a dose pela metade". Ele classificou o sucesso relativo da dose mais baixa como "uma feliz coincidência".

O ensaio confuso, juntamente com a incapacidade da Oxford e da AstraZeneca de explicar de forma coerente o que havia acontecido, ofuscou o significativo nível de eficácia para um grupo menor de pacientes, na mente de muitas pessoas. Como disse um antigo funcionário do Reino Unido, "não foi seu melhor momento".

Embora as relações entre AstraZeneca e Oxford não parecessem tensas com tudo isso, surgiu um refrão comum. Quando os executivos da AstraZeneca falavam sobre o ensaio no Reino Unido, eles diziam: “Bem, é o ensaio da Oxford. Não tivemos nada a ver com isso”.  Quando cientistas da Oxford eram questionados sobre atrasos no estudo nos EUA, eles diziam: "Bem, esse é o teste da AstraZeneca. Não estamos envolvidos”. Bell diz que o relacionamento é bom. “Ainda estamos nos esforçando com a AstraZeneca, tentando ajudar. Nós estamos unidos desde o começo”.

A aprovação da vacina

O órgão regulador do Reino Unido autorizou a vacina Oxford em 30 de dezembro, recomendando um intervalo de até 12 semanas entre as doses. Seus especialistas concluíram que o aumento da eficácia em participantes que receberam a meia dose de sua injeção inicial provavelmente se deve ao aumento do intervalo antes da segunda dose, e não à quantidade da primeira. A produção no Reino Unido já estava instalada e funcionando em vários locais. O país estava se preparando para um grande lançamento a partir de 4 de janeiro, cerca de um mês após o início do programa nacional de vacinação iniciado com a vacina da Pfizer-BioNTech. A Oxford Biomedica trabalhou durante meses para resolver os problemas no processo de fabricação da vacina AstraZeneca, superando problemas de rendimento e aprendendo a cultivar bancos de células que seriam capazes de produzir 2 milhões de doses por semana. No início da primavera, a AstraZeneca seria responsável por um pouco mais da metade de todas as doses administradas no Reino Unido, com dados mostrando que estava reduzindo mortes e hospitalizações.

O lançamento foi muito mais lento em outras partes da Europa. No final de janeiro, alguns dias antes de a Agência Europeia de Medicamentos conceder sua aprovação para a vacina da AstraZeneca, a empresa anunciou que seria capaz de entregar apenas 31 dos 120 milhões de doses que originalmente planejava fornecer à UE no primeiro trimestre. O bloco não havia assinado seu contrato de até 400 milhões de doses até o final de agosto, deixando os fabricantes europeus meses atrás da fabricação no Reino Unido. A produção da subcontratada belga da AstraZeneca estava se mostrando menor do que o esperado, e a AEM não iria conceder autorização para outra instalação, na Holanda, começar a produção até o final de março.

As notícias sobre o déficit enfureceram as autoridades em Bruxelas. Thierry Breton, ex-empresário que atua como comissário do mercado interno da UE, tentou persuadir seu colega francês Soriot a aumentar as entregas, mas sem sucesso. Para piorar a situação, Soriot não estava fisicamente presente na Europa. Estava em Sydney, onde sua família mora, desde antes do Natal. Breton disse a uma estação de rádio francesa que acordava todos os dias às 4h30 para ligar para Soriot. “Eu não o estou criticando. Cada um de nós precisa administrar essa situação da melhor maneira possível ”, disse Breton à rádio Europe1, em 14 de março.“ Mas, veja, vou a duas ou três fábricas quase todas as semanas. Não estou dizendo que conheço suas fábricas melhor do que eles, mas estou presente”. (A AstraZeneca diz que Soriot está trabalhando 24 horas na Austrália.)

Em meados de março, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, renovou uma ameaça anterior de proibir a exportação de todas as vacinas fabricadas na UE. A paranoia de que as doses da AstraZeneca estariam sendo desviadas da Europa para o Reino Unido atingiu o auge alguns dias depois, quando Bruxelas ordenou que os líderes italianos fizessem uma batida policial em uma fábrica de envase de ampolas na cidade de Anagni, que tinha 29 milhões de doses no local. O estoque acabou sendo destinado à Europa e ao Covax.

Mais pressões sobre a empresa

A pressão sobre o fornecimento surgiu enquanto os líderes europeus aumentavam as preocupações com a eficácia e a segurança da vacina. No início de fevereiro, pelo menos 10 países europeus restringiram o uso da vacina em indivíduos com mais de 65 anos, devido à falta de dados para esse grupo no ensaio de Fase III de Oxford. Mais más notícias viriam da África do Sul, onde o estudo da Oxford mostrou que a vacina fornecia proteção mínima contra a variante dominante ali.

Então, em meados de março, Dinamarca, Noruega e Islândia anunciaram que estavam suspendendo temporariamente a vacina da AstraZeneca para investigar uma forma rara de coagulação sanguínea que fora detectada em vários receptores da vacina, pelo menos um deles tendo morrido. Poucos dias depois, a Alemanha disse que suspenderia o uso da vacina, com vários países europeus seguindo o exemplo, embora a AEM recomendasse continuar. A maioria retomou o uso depois que a agência revisou os dados novamente e concluiu que os benefícios da vacina superavam em muito os riscos, mas não demorou muito para que mais casos aparecessem. No final de março, o Canadá suspendeu as injeções da AstraZeneca para pessoas com 55 anos ou menos, e a Alemanha voltou a impor sua suspensão para menores de 60 anos. “Precisamos confiar nas vacinas”, disse a chanceler alemã, Angela Merkel, parecendo exausta. “Estas são descobertas que não podemos ignorar.”

Ela estava se referindo a 31 casos alemães de um tipo de coagulação, conhecido como trombose do seio venoso cerebral (CVST), relatado em cerca de 2.7 milhões de doses administradas – taxa de incidência maior do que o normal. Alguns dos casos foram acompanhados por baixos níveis de plaquetas; a maioria envolvia mulheres mais jovens e de meia-idade. Nove pacientes morreram.

A AEM investigou 86 casos de coágulos sanguíneos, 18 deles fatais, na Europa e em outros lugares que haviam sido notificados até 22 de março, de um total de 25 milhões de pessoas que receberam a vacina. Em 7 de abril, a agência disse ter recebido um total de 222 casos notificados de coágulos cerebrais e abdominais e que os dados não indicavam uma causa ou perfil específico do paciente. A situação “demonstra claramente um dos desafios colocados pelas campanhas de vacinação em grande escala”, disse Emer Cooke, diretor executivo da AEM. “Quando milhões de pessoas recebem essas vacinas, podem ocorrer eventos muito raros que não foram identificados durante os ensaios clínicos.”

O órgão regulador do Reino Unido disse que a incidência geral de coágulos cerebrais é de cerca de 4 casos para cada 1 milhão de pessoas que receberam a vacina. O risco relatado na Europa é de 1 em 100.000, de acordo com a AEM. (O número muito menor no Reino Unido pode ser porque o país ainda não começou a vacinar indivíduos abaixo dos 50 anos, embora a AEM tenha afirmado que não há evidências de que os coágulos estejam relacionados à idade ou sexo.) A Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins estima que normalmente 1 em cada 200.000 pessoas de todas as idades desenvolvem Trombose do seio venoso cerebral (TVC) em algum momento de suas vidas.

Em uma declaração de 7 de abril em resposta às últimas descobertas regulatórias, a AstraZeneca disse que faria as alterações recomendadas no rótulo da vacina e que "já estava trabalhando para entender os casos individuais, a epidemiologia e os possíveis mecanismos que poderiam explicar esses eventos extremamente raros."

O que esperar agora

Qualquer esperança que os executivos da AstraZeneca possam ter nutrido de que seu maior e mais robusto ensaio nos EUA tranquilizaria o mundo de que sua vacina seria segura e eficaz, enfrentou um grande revés quando a carta do conselho de segurança vazou. A corrida para o lançamento de dados provisórios foi difícil – mesmo para os padrões da pandemia. A AstraZeneca estava sob pressão dos reguladores europeus, que queriam mais informações sobre a eficácia da vacina em idosos e, em seguida, sobre a ameaça de coagulação. Os executivos também estavam cientes da pressão que a empresa havia recebido no passado por não ser acessível e, o mais importante, a AstraZeneca tinha estritas obrigações, como empresa de capital aberto, de relatar dados materiais rapidamente. Em 21 de março, um dia antes de os resultados provisórios serem divulgados, os executivos tiveram uma crise emocional quando souberam que o chefe de pesquisa oncológica da Astra, José Baselga, morrera repentinamente.

Naquele mesmo domingo, a AstraZeneca informou algumas autoridades americanas sobre sua avaliação de que os casos posteriores não mudariam de forma significativa os resultados. Em uma vídeo chamada com a presença de Fauci, o diretor do NIH, Francis Collins, e outras autoridades de saúde dos EUA (mas, ninguém do CMDS), a empresa apresentou seus resultados e avaliou todos os casos adicionais não validados, observando que o número final de eficácia pode cair alguns pontos percentuais e, na verdade, aumentaria para os idosos. Não houve resistência, de acordo com pessoas que participaram da discussão.

Ao anunciar os resultados provisórios na segunda-feira, Pangalos mencionou que casos adicionais haviam surgido, mas a decisão da AstraZeneca de não os reconhecer em sua declaração de que forma isso poderia afetar seu número de eficácia contrastava fortemente com o que a Pfizer e a Moderna haviam feito meses antes. No caso da Pfizer, a estimativa inicial de 90% de eficácia foi aumentada duas semanas depois para 95%  – uma vitória nas frentes de eficácia e relações públicas. A carta do CMDS, por outro lado, disse que a eficácia da Astra poderia cair para entre 69% e 74%, uma vez que todos os casos fossem validados – um cálculo que não compartilhou com a empresa até depois de ter divulgado seu lançamento. Em si, isso não era incomum; o que era incomum era pedir publicamente os números da empresa. O CMDS é o principal responsável por revisar os dados de segurança e decidir quando um estudo atingiu um limite de eficácia. Os números finais são normalmente decididos por estatísticos independentes que trabalham com a empresa em termos pré-acordados, e divergências com o CMDS geralmente são resolvidas a portas fechadas.

Polly Roy, professora de virologia da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, diz que este foi um caso em que a precisão deveria ser fundamental para a AstraZeneca. “Eles não deveriam ter informado um certo número se não tivessem certeza”, diz ela. “Não há nada de errado com a vacina em si. É a forma como eles relataram o ensaio clínico. Essa foi a maneira errada de fazer isso. O problema está na comunicação”.

Outros especialistas dizem que a intervenção pública do INADI foi desnecessária e extremamente prejudicial. “Foi grosseiramente irresponsável a publicação pelo INH de declarações de que havia algo impróprio na forma como os dados foram coletados e, portanto, não se poderia confiar neles, que é como terá sido lido, não importa o que realmente disseram”, diz Peter English, ex-presidente do comitê de medicina de saúde pública da Associação Britânica de Medicina. A inferência, acrescenta ele, é “que as coisas podem ter sido terríveis. Isso traz descrédito a toda a vacina. Faz as pessoas pensarem que há algo duvidoso nisso. Isso afetará a confiança não apenas na vacina AstraZeneca, mas também nas vacinas em geral. ”

O próximo grande obstáculo da Astra será garantir uma autorização de uso emergencial do FDA. A empresa planeja enviar dados para revisão na primeira quinzena de abril, mas uma decisão final pode levar semanas. Os executivos da Astra não têm a ilusão de que o processo será tranquilo. Eles devem continuar a trabalhar com o CMDS e têm um dos conjuntos de dados mais complexos do que qualquer desenvolvedor de vacina contra a covid-19, com eventos trombóticos e evidências do mundo real de milhões de pessoas vacinadas. Eles também enfrentaram um novo desafio no final de março, quando uma de suas principais subcontratadas nos EUA, a Emergent BioSolutions, misturou ingredientes da Johnson & Johnson e da AstraZeneca, um grande erro de fabricação. A Emergent agora produzirá exclusivamente doses da J&J, enquanto os funcionários dos EUA trabalham para encontrar uma nova unidade de fabricação para a AstraZeneca.

Muitas pessoas dentro da Astra estão profundamente angustiadas com a extensão das críticas que receberam ao tentar liderar o caminho para uma vacina sem fins lucrativos que poderia ajudar a acabar com a pandemia. Como disse um executivo quando questionado se fariam de novo: “Nem em um milhão de anos. Só tivemos tristeza".

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