Ciência

Aids cresce entre jovens com cortes na Saúde, alerta pesquisadora

De acordo com a pesquisadora, no Brasil é ainda mais preocupante o crescimento da vulnerabilidade à Aids entre os adolescentes

Aids: em 2016, a Conferência Internacional da Aids, considerada o maior e mais importante fórum global sobre a epidemia (NurPhoto / Contributor/Getty Images)

Aids: em 2016, a Conferência Internacional da Aids, considerada o maior e mais importante fórum global sobre a epidemia (NurPhoto / Contributor/Getty Images)

Victor Sena

Victor Sena

Publicado em 17 de dezembro de 2019 às 09h15.

Última atualização em 17 de dezembro de 2019 às 09h20.

São Paulo — O número de pessoas infectadas pelo HIV vem diminuindo em escala global, assim como o número de mortes causadas pela Aids. Mas, segundo as estatísticas oficiais, essa redução ocorre de maneira desigual entre diferentes países e também entre diferentes segmentos sociais. Em adolescentes, por exemplo, o risco de contrair a infecção tem crescido significativamente nos últimos anos.

“Estamos longe do fim da Aids. Esse discurso de que estamos por vencer a doença é contraprodutivo, pois nos distrai de uma dura realidade”, disse Vera Paiva, uma das coordenadoras do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids na Universidade de São Paulo (Nepaids-USP), em palestra na FAPESP Week France, entre os dias 21 e 27 de novembro.

Em 2016, a Conferência Internacional da Aids – considerada o maior e mais importante fórum global sobre a epidemia – apontou os adolescentes como população-chave entre os grupos desproporcionalmente afetados pela doença.

Dessa forma, o grupo se tornou uma das prioridades de políticas públicas, ao lado de outras populações historicamente consideradas mais expostas à infeção pelo HIV e à mortalidade por Aids, como usuários de drogas injetáveis, homens que fazem sexo com homens, pessoas transgênero e profissionais do sexo.

“A maior vulnerabilidade dos adolescentes ao HIV é uma tendência global. Atualmente, existem mais de 2 milhões de adolescentes e jovens adultos (15-24 anos) infectados. Esse é o único grupo em que a taxa de infecção continua a aumentar, com um risco relativo 50% maior em relação às outras faixas etárias”, disse

“Conforme disse Gunilla Carlsson, diretora executiva da Unaids [Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS], é inaceitável que toda a semana 6 mil adolescentes, meninas e jovens mulheres sejam infectados por HIV em todo o mundo porque seus direitos reprodutivos e sexuais continuam sendo negados”, disse Paiva, que coordena uma pesquisa sobre adolescência e Aids no Brasil. O estudo é apoiado pela FAPESP por meio de um Projeto Temático.

De acordo com a pesquisadora, no Brasil é ainda mais preocupante o crescimento da vulnerabilidade à Aids entre os adolescentes por causa da queda nos investimentos em políticas de promoção da saúde. Paiva destacou que essas medidas são amparadas pela Constituição Federal, que prevê o direito à educação, à saúde e estabelece a laicidade do Estado.

A desigualdade importa

Enquanto nos países de baixa e média renda as mulheres jovens são as mais afetadas, destacou Paiva, nos mais ricos são pessoas transgênero, bissexuais, gays e a população indígena não branca.

“Essa desigualdade deve ser considerada na formulação dos programas de combate à Aids. O atual abandono de políticas públicas baseadas na promoção dos direitos humanos é um dos obstáculos-chave no Brasil”, disse a pesquisadora.

As políticas implementadas no Brasil entre os anos de 1993 e 2013 são consideradas internacionalmente como um caso de sucesso, disse Paiva. “O sucesso veio amparado na implementação do direito à saúde e à prevenção, assim como projetos de educação sexual e, sobretudo, ao estado laico que literalmente apoiou uma resposta nacional baseada em evidências científicas e não em pregações de moral ou bom comportamento”, disse.

Para a pesquisadora, foram cruciais para o controle da epidemia nas décadas anteriores o cenário de acesso público à saúde – que dá direito aos insumos de prevenção e ao tratamento com drogas eficientes – e as ações de equidade, que compensam desigualdades sociais e envolvem a cooperação de diferentes atores como ONGs e governos locais para a prevenção da doença.

“Entre as ações efetivas está o trabalho de educação sexual e prevenção incluído nos currículos escolares nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal. Essa aliança resultou na diminuição da Aids por duas gerações e, na década de 2000, produziu ainda um importante debate no país sobre diversidade sexual e desigualdade de gênero”, disse.

Durante a apresentação na FAPESP Week France, Paiva ressaltou resultados consistentes desses programas. “Nos anos 1980, o uso de preservativo entre jovens de 14 a 19 anos era quase zero. No final dos anos 1980, 48% dos jovens usavam preservativos. Em 1998, o índice foi para 54% e de 2013 para cá, a taxa varia de 62% para 69% nas escolas secundárias. A idade de iniciação sexual no país permaneceu entre 14 e 15 anos”, disse.

Nesse período, Paiva destacou ainda uma pesquisa inovadora na área de saúde, ciências sociais e educação, que consolidou a compreensão de que a sexualidade não se reduz aos hormônios e que compreender o impacto da desigualdade de gênero e considerar a diversidade sexual, cultural e religiosa é crucial. “Esses são princípios centrais de programas iniciados e coordenados no Sistema Único de Saúde e baseados em direitos humanos e evidência”, disse.

“Um dos desafios para a pesquisa, agora, é monitorar e compreender o impacto da conjuntura atual, em que políticas baseadas em direitos humanos estão sob ataque e não apenas no Brasil”, disse Paiva.

Segundo a pesquisadora, desde 2016, políticas de austeridade no Brasil têm cortado o investimento em saúde pública, educação e ciência. “Assim como em outras partes do mundo, esses cortes vêm acompanhados de um movimento político articulado por discursos religiosos e anticientíficos. Portanto, garantir a saúde sexual e reprodutiva dos jovens exige novas concepções que permitam a sustentabilidade de programas baseados em evidências e não em pregação moral”, disse.

Para a pesquisadora, os discursos religiosos e anticientíficos que têm se tornado mais frequentes estão na direção contrária à que produziu o sucesso colhido por duas décadas. Retomam abordagens que comprovadamente não foram eficazes no início da epidemia.

“Os discursos amparados na defesa de que só a família deve falar sobre sexualidade com os jovens, não as escolas, desconsideram mudanças importantes na cultura sexual e na socialização para a sexualidade hoje mediada pela internet: 93% dos adolescentes das classes D e E e acessam à internet via celular”, disse.

Dessa forma, de acordo com a pesquisadora, essas mudanças culturais e políticas precisam ser prioridade na agenda de pesquisa que contribua para a renovação das ações de prevenção. “O desmantelamento de políticas de prevenção e do financiamento de pesquisas que monitoram seus resultados, monitoramento que retroalimenta e corrige técnicas e práticas pouco efetivas, indicam a negligência na promoção de direitos à prevenção, especialmente entre os mais jovens”, disse.

Análises epidemiológicas mostram que jovens nascidos nos anos 1990 e que iniciaram a vida sexual por volta dos anos 2000 têm três vezes mais chance de serem HIV positivo que os nascidos nos anos 1970 e que iniciaram a vida sexual antes da explosão da epidemia de Aids começar a ser controlada pelo acesso à medicação antirretroviral e o acesso massivo a programas e insumos de prevenção.

Dados de 2018, no entanto, indicam que no Estado de São Paulo a taxa de Aids na faixa de 15 a 19 anos passou de 2% para 7% dos casos. Houve também um aumento dos casos entre negros, enquanto os índices caíram entre os brancos. “A análise interseccional é crucial quando a desigualdade importa, como é o caso do discurso técnico-científico voltado a evitar que diferenças se tornem desigualdades”, disse.

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