Flávio Falcone, de 34 anos, psiquiatra: personagem para facilitar o contato com viciados no bairro da Luz, em São Paulo (Fabiano Accorsi / VOCÊ S/A)
Da Redação
Publicado em 13 de outubro de 2014 às 11h39.
São Paulo - Vestido de palhaço, o psiquiatra paulista Flávio Falcone, de 34 anos, começa a circular logo cedo pelas ruas do bairro da Luz, no centro de São Paulo, para conversar com os dependentes de crack da região conhecida como Cracolândia.
Seu objetivo é conhecer as histórias das pessoas que estão ali e, principalmente, saber como elas se transformaram em zumbis ambulantes. O intuito da abordagem é convencê-los a se dirigir para a grande tenda branca, sede do programa De Braços Abertos, da prefeitura de São Paulo.
Lá, os usuários recebem atendimento médico e fazem novos documentos de identidade e o cadastro para morar em um dos hotéis readaptados da região. Em oito meses de projeto, há 422 usuários em tratamento, os quais diminuíram em até 70% o consumo de drogas, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde.
Durante esse período, o índice de criminalidade na região caiu 32%, de acordo com a Secretaria Estadual de Segurança Pública. “O personagem de palhaço é uma maneira de criar empatia com as pessoas”, diz o psiquiatra.
Flávio se interessou pelo personagem quando estava na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Aos 20 anos, quando se mudou de Piracicaba para a capital paulista para cursar medicina, ele conheceu o Grupo de Teatro Medicina da FMUSP, uma maneira de aliar suas duas paixões: a arte e a psiquiatria. “Se eu não tivesse encontrado este caminho, com certeza teria largado a medicina.”, diz.
Durante a faculdade, Flávio passou por alguns hospitais, mas não se adaptou ao sistema de trabalho por achar que o modelo de atendimento não favorece a conexão do médico com o paciente, algo que ele valoriza. Quando não estava na escola de medicina, estudava artes cênicas. Foi aí que conheceu a técnica do palhaço e percebeu quanto ela poderia ser transformadora.
“Durante o curso, nós precisamos entrar em contato com o lado vergonhoso, a parte ridícula de nossa personalidade, a qual somos ensinados a esconder. Esse exercício é quase uma terapia”, diz o médico.
Junto com seu preceptor, que orienta e supervisiona os futuros médicos, que também era palhaço e estudava na mesma escola de artes, Flávio elaborou um projeto para aliar o poder terapêutico do método do palhaço ao tratamento dos pacientes. Com isso, passou a visitar enfermarias psiquiátricas e começou um trabalho com as pessoas.
Nos hospitais, o palhaço já tinha sido explorado, por exemplo, pelos Doutores da Alegria em alas de tratamento infantil. Ele levou o projeto para a área psiquiátrica, onde os pacientes ficam isolados para fazer tratamentos intensivos.
Após dois anos visitando hospitais psiquiátricos de São Paulo sem conseguir encontrar alguém que investisse em sua ideia, ele foi aceito em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) em São Bernardo do Campo. Os gestores da época enxergaram no trabalho desenvolvido pelo jovem médico um grande potencial e resolveram investir na proposta.
Flávio, então, passou a trabalhar na reabilitação de dependentes químicos e se surpreendeu com a receptividade dos doentes com a figura do palhaço. O grupo criado por ele começou a ganhar a adesão dos viciados. A maior parte de quem estava na unidade em São Bernardo foi reabilitada — e muitos retornaram ao mercado de trabalho. Alguns dos ex-dependentes agora dão aulas no próprio Caps.
Esse projeto fez o nome de Flávio chegar aos ouvidos do doutor Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra e coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo.
Foi o doutor Dartiu quem o levou para atuar em uma das áreas mais degradadas de São Paulo, a região da Estação da Luz. Das várias histórias que ouviu desde que chegou lá, em janeiro deste ano, uma delas guarda até hoje:
— Você é artista? — perguntou um rapaz. Ao ouvir a resposta positiva, o garoto contou que, antes de chegar à Luz, fazia apresentações musicais na escola em que o próprio Flávio havia estudado na adolescência. “Na infância, nossos caminhos eram parecidos. Porém, naquele momento, ele era o artista que não deu certo”, diz o médico. É para recuperar jovens com histórias como essa que Flávio se veste de palhaço todo dia.