Max Smitheram pesca em Auckland, na Nova Zelândia (Cornell Tukiri/The New York Times)
Daniel Salles
Publicado em 23 de novembro de 2020 às 11h47.
Auckland, Nova Zelândia – Leo Mulipola encontrou a sobrevivência em uma carga de cabeças de peixe. Mulipola, de 49 anos, teve dificuldade para encontrar até mesmo um emprego de nível básico em um posto de gasolina durante a pandemia do coronavírus, e agora está desempregado. Assim, com uma família de seis para alimentar, ele aproveitou a chance de pegar as cabeças de peixe doadas em um salão comunitário maori em Auckland.
O salão, chamado de marae na língua maori, tem distribuído 1,8 tonelada de peixe por semana – as partes frequentemente descartadas na pesca comercial e recreativa – para famílias afetadas pela economia da Nova Zelândia.
"Custaria US$ 150 uma refeição como esta", disse Mulipola, acrescentando que planejava assar ou fritar o peixe, cujas bochechas contêm uma boa quantidade de carne gordurosa e cujos olhos ele considera saborosos.
Os maoris e os habitantes das ilhas do Pacífico não precisam que alguém os convença do valor dessas doações. Longe de serem restos, as cabeças de peixe são valorizadas como alimento importante na cultura polinésia, criando um equilíbrio no qual o lixo de uma pessoa é o deleite de outra.
Mas esse esforço para alimentar os necessitados não é apenas uma questão de caridade. Faz parte de um movimento para reduzir o desperdício de alimentos, incentivando as pessoas a consumir ou a usar mais partes dos peixes, porque estes são normalmente cortados em filés e o que sobra é jogado fora. Para cada quilo de peixe fornecido pela indústria de produtos do mar, aproximadamente o dobro dessa quantidade vira lixo, embora grande parte seja comestível.
Quando apenas os filés são usados, como é típico na Nova Zelândia e em outros lugares como os Estados Unidos, isso significa que apenas cerca de um terço do peixe é comido, de acordo com Sam Woolford, que dirige a LegaSea, organização em Auckland preocupada com técnicas de pesca destrutivas e a subutilização do que é capturado. "Nosso objetivo é mudar a forma como as pessoas veem esses peixes em sua totalidade", afirmou. Ele citou a Islândia, onde há incentivo para usar cem por cento do bacalhau pescado, com os ossos transformados em suplementos de cálcio e a pele destinada à fabricação de bolsas.
O grupo de Woolford foi a força motriz na criação da Kai Ika, a organização que distribui as cabeças de peixe em Auckland. A Kai Ika começou em 2016 com um problema: o Outboard Boating Club em Auckland tinha quilos e mais quilos de cabeças, órgãos e espinhas de peixe sobrando, depois que seus membros retiravam os filés do que era pescado. As partes indesejadas, largadas ao sol e produzindo um fedor terrível, pareciam um desperdício.
Um membro do clube, Scott Macindoe, fundador da LegaSea, entrou em contato com o Papatuanuku Kokiri Marae, salão comunitário maori em South Auckland. O gerente do marae, Lionel Hotene, estava ansioso para levar as cabeças de peixe e o resto para a comunidade local, a fim de usá-los como fertilizante em seus jardins orgânicos.
Em março, o início de um rigoroso bloqueio de cinco semanas por causa do coronavírus provou ser uma situação complicada para a Kai Ika. A pesca de lazer fora proibida, eliminando a oferta, mesmo com o aumento da demanda por programas alimentares. Assim, Woolford recorreu a duas empresas de pesca comercial, estabelecendo relações que ainda perduram.
A Kai Ika distribuiu 250 quilos de peixe uma semana antes do início do confinamento. Agora, está distribuindo cerca de quatro vezes mais.
Com barcos de lazer a todo o vapor no verão do hemisfério sul, a LegaSea abriu uma estação de corte de filés em uma marina de Auckland, na esperança de tornar a Kai Ika autossustentável. Os barqueiros que pescam por lazer pagam cerca de US$ 2 por peixe para o serviço de corte, e as cabeças, as espinhas e os órgãos são enviados para o Papatuanuku Kokiri Marae, que começou a distribuir os produtos para outros marae. "Estamos em um momento em que as pessoas precisam de comida e emprego. Temos a sorte de oferecer as duas coisas", disse Woolford.
Entre os que são gratos pelo peixe doado está Uhiua Lataimaumi, de 66 anos, cuja esposa garante a única renda da família com seu trabalho em um asilo.
Entre o custo cada vez maior da habitação e dos mantimentos na Nova Zelândia, seu orçamento semanal estava apertado. A Nova Zelândia cobra um imposto de 15 por cento sobre as compras de supermercado, e há pouca concorrência, com duas cadeias controlando 98 por cento das principais lojas, de acordo com o Conselho de Alimentos e Supermercados da Nova Zelândia.
Em uma sexta-feira recente, Lataimaumi parecia faminto enquanto falava dos dez sacos de cabeças de peixe que estava prestes a pôr em seu carro no Papatuanuku Kokiri Marae. Contou que gostava de assá-los. Ele forra uma assadeira com uma camada de cebola e tomate, antes de cobrir tudo com bastante leite de coco e um pouco de pimenta. Em seguida, coloca as cabeças de peixe por cima, cobre a bandeja com papel-alumínio e leva ao forno.
"Eu não conseguia dormir à noite pensando no dia seguinte", disse Lataimaumi sobre a escassez de alimentos da família antes de começar a receber as cabeças de peixe de graça. Segundo ele, na semana seguinte essa seria a refeição de sua família de quatro pessoas quase todas as noites.
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