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Uma moto de fabricação indiana com visual retrô se aproxima da Harley

Quase desconhecidas nos Estados Unidos e na Europa, as motos da Royal Enfield viraram forte expressão do cobiçado estilo de vida entre indianos em ascensão

Siddhartha Lal, CEO da Royal Enfield
 (Ian Gavan/Getty Images)

Siddhartha Lal, CEO da Royal Enfield (Ian Gavan/Getty Images)

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Daniel Salles

Publicado em 28 de outubro de 2020 às 09h55.

Última atualização em 28 de outubro de 2020 às 18h01.

O sol mal tinha nascido quando o grupo de cerca de 40 motoqueiros saiu de Mumbai, com destino ao sopé da cordilheira de Western Ghats. Nos viadutos de várias faixas de rodagem que saem da capital dos negócios da Índia, a maioria dos motociclistas formou um comboio, enquanto outros, selecionados para servir como “balizas”, subiam e desciam a estrada para afastar o fluxo normal de veículos da estrada. Quando atingiu a enorme extensão de campos agrícolas e indústrias leves fora da cidade, o grupo efetivamente dominava a estrada. A profissão mais valorizada na pandemia? Vire um “dev” com o curso de data science e Python da EXAME.

Com suas pesadas jaquetas de motoqueiros, óculos escuros de aviador, uma variedade de barbas e um ou dois bigodes levemente retorcidos para cima nas pontas, o capítulo de Mumbai do clube de motociclismo do Royal Indian Devote's [sic] estava saindo para um de seus habituais passeios. Como essa expedição em particular ocorreu em 26 de janeiro – Dia da República, o equivalente indiano ao Dia da Independência de alguns países – alguns motociclistas carregavam gigantescas bandeiras nacionais que tremulavam festivamente na traseira de suas motos enquanto seguiam acelerando. Crianças apontavam, ciclistas acenavam e um homem e sua família em um pequeno sedã, fez uma seca saudação.

O destino dos motoqueiros? Uma loja de conveniência de fábrica e lanchonete de uma indústria de sucos, muito conhecida em Mumbai por seu ponche de frutas, seus antiquados sundaes e licores para coquetel.

Depois de uma breve pausa na lanchonete e de limparem o estoque de Curaçao e Grenadine da loja ao lado, voltaram para a cidade. Desse grupo, alguns poucos podiam desfrutar de tempo livre – não precisando voltar para seus empregos que incluíam gerenciamento de risco para um grande banco, marketing para uma empresa de alimentos orgânicos e administrando TI na bolsa de valores de Mumbai. Na volta, um membro correu na frente e desceu da moto para gravar um vídeo e postar na conta do Instagram do clube. No clássico estilo motoqueiro, um deles estava usando uma camiseta com mangas as cortadas. No peito: o logotipo do seriado Friends .

Os Devotes se diferem dos típicos motociclistas não apenas pelos botecos que frequentam ou por suas roupas de grife. Por um lado, eles são jovens. Quase todos no clube se qualificam como millennials, enquanto a idade média de um motociclista nos EUA é 50. Por outro lado, eles usam exclusivamente motos da Royal Enfield. Quase desconhecidas nos Estados Unidos e na Europa, as Enfields – motos retrô que seriam a cara do Steve McQueen nos anos 1960 – acabaram por se tornar nos últimos anos uma forte expressão do cobiçado estilo de vida entre os jovens indianos em ascensão. Como resultado, a Royal Enfield, sediada em Chennai, que começou como uma unidade subcontinental de um fabricante britânico de nome igual e continuou trabalhando quando a matriz faliu, no ano passado, vendeu mais de 650.000 motocicletas na Índia – um volume equivalente a todo o mercado americano de motos.

O sucesso da Royal Enfield em trazer a cultura da motocicleta para as faixas da população dos millenials e da Geração Z da Índia – ao todo mais de meio bilhão de jovens – começou a chamar atenção fora do país. As vendas estão crescendo principalmente em mercados como Brasil e Indonésia, lugares onde as motos são tradicionalmente vistas como meios alternativos de transporte, não como expressões de estilo pessoal. A empresa agora está fazendo uma aposta de alto risco nos EUA e na Europa, onde fabricantes como Harley-Davidson Inc. e Indian Motorcycle têm lutado por mais de uma década para aumentar as vendas à medida que os consumidores mais jovens adotam outros hobbies. Siddhartha Lal, o herdeiro do conglomerado automotivo que controla a  Enfield, diz que pode conquistar os entusiastas ocidentais com motos elegantes que custam muito menos do que as feitas por seus rivais – e talvez atrair motociclistas mais jovens para revitalizar uma base de clientes agora dominada pelos boomers sessentões.

É uma estratégia arriscada, que pressupõe uma cultura da motocicleta que surge de um país densamente povoado do sul da Ásia – onde ultrapassar 80 km/h em qualquer coisa, exceto em algumas rodovias, corre o risco de colisão fatal com um riquixá  motorizado ou uma vaca – e pode se traduzir nas paisagens dos filmes Easy Rider e Fugindo do Inferno. E a destruição causada pelo novo Corona vírus poderia tornar isso ainda mais difícil. O colapso econômico global irá fazer com que os jovens já sem dinheiro fiquem com menos dinheiro ainda para alguns luxos como lindas motocicletas, mesmo as de fabricação indiana que custam pouco mais de um terço do preço de uma Harley. E embora seja difícil pensar em uma atividade ao ar livre mais socialmente distanciada do que passeios em grupo, os Devotes, como todos os outros motociclistas da Índia, tiveram que suspender seus passeios desde que o primeiro-ministro Narendra Modi impôs o bloqueio nacional no final de março.

Lal está seguindo em frente, no entanto, antecipando que o apelo de andar de moto só irá aumentar para os milhões de consumidores ocidentais que passaram grande parte do ano presos em casa – especialmente em comparação com sair para jantar fora, viajar e outros populares passatempos que se transformaram em vetores de infecção. “Nossa moto poderia ser ótima na Índia, no Brasil, na Tailândia e na África”, diz ele. “Mas se não estivermos na Europa e nos EUA, nunca seremos uma marca global”.

Originalmente, uma fabricante de motos na região central da Inglaterra, a Royal Enfield, ganhou esse nome quando foi contratada para fabricar peças de precisão para a Royal Small Arms Factory em Enfield, nos arredores de Londres, em 1893. Oito anos depois, a empresa começou a aplicar pequenos motores às suas bicicletas – o que chamou mais a atenção dos militares britânicos, que buscavam maneiras de transportar homens e mensagens com rapidez e que não fossem cavalos. As motocicletas que a Enfield desenvolveu posteriormente prestaram serviço em ambas as Guerras Mundiais, com um modelo, a Flying Flea, leve e robusta o suficiente para ser lançadas junto com paraquedistas que, por sua vez, poderiam sair correndo pelos campos de batalha.

A Índia, recém-independente logo após a Segunda Guerra Mundial, foi um mercado óbvio para as motos. Em 1952, o recém-formado exército indiano encomendou 500 exemplares do modelo Bullet da Enfield –  cujo slogan era “Made Like a Gun” (Fabricada como uma Arma) – essa moto servia para patrulhar as inóspitas fronteiras do país com a China e o Paquistão. Três anos depois, a empresa britânica juntou-se à Madras Motors, na cidade do sul agora conhecida como Chennai, para formar uma unidade local com escritório e fábrica.

A década de 1960 pode ter sido o apogeu cultural das motocicletas clássicas, mas seu desempenho comercial foi uma história diferente. Modelos japoneses baratos e confiáveis ​​estavam começando a inundar os mercados americano e europeu, fato esse que tirou do mercado vários fabricantes antigos. Uma delas foi a Royal Enfield, que encerrou as operações em 1970. A filial de Chennai, porém, era de propriedade majoritária de moradores locais, em linha com as leis protecionistas que impediam empresas estrangeiras de controlar os fabricantes indianos. Quase não sobreviveu: as motos japonesas também estavam decolando na Índia, e a Enfield manteve apenas um pequeno nicho, composto por obstinados fãs que não se importavam com peculiaridades como motores mal regulados que frequentemente emperravam ou vazavam óleo. No final da década de 1980, a empresa quase não dava lucro e estava atolada em dívidas.

Entra em cena Vikram Lal, pai de Siddhartha. A Eicher Motors Ltd., fabricante de caminhões com sede em Delhi que ele controla, comprou uma grande participação na Royal Enfield em 1990 e se tornou seu acionista majoritário três anos depois, com a intenção de arrumar a casa e reviver a marca. Siddhartha estava no final da adolescência na época, estudando economia no St. Stephen's College de Delhi, onde era, segundo ele mesmo, um aluno desinteressado. Também não se interessava muito por esportes ou hobbies em especial. De um modo geral, o jovem Lal diz que  era “mediano” em todas as matérias.

Então, um dia, não muito depois da Eicher comprar a empresa, uma Enfield vermelha e brilhante apareceu na garagem da família. Lal descreve o momento em que pegou para si a moto como talvez o momento crucial na formação de sua personalidade. Comparada com os modelos japoneses compactos revestidos de fibra de vidro, populares na cidade, seu motor fez um “ruído profundo” em vez de um “leve ronronar”, diz ele. Começou a ir para a escola, tornando-se conhecido no campus como o cara da Enfield. Os amigos pediram-lhe que os levasse para passear, e ele logo encontrou um grupo para fazer viagens mais longas, às vezes até os Himalaias.

Seu amor pela moto, no entanto, não inspirou Lal a pensar em ter uma carreira na Royal Enfield. Depois de se formar no St. Stephen's, alternou entre estágios que o pai havia arrumado – um na fábrica alemã de caminhões MAN SE, outro na Enfield, que mesmo assim não conseguiu despertar sua vocação – antes de ir para o Reino Unido para cursar engenharia automotiva.

Harley-Davidson Street Bob

Modelo da Harley (Divulgação/Divulgação)

Quando voltou para a Índia, Lal começou a trabalhar na divisão de mapas ao consumidor da Eicher. Ainda brincava com a ideia de sair dali para fazer um MBA quando, em 1999, Vikram disse-lhe que aquele tinha sido o pior ano da Royal Enfield. O conselho de administração estava pensando em fechar a empresa. Lal achou que seria uma pena. Surpreendendo até a si mesmo, fez uma sugestão ao pai: Por que eu mesmo não tento tocar a fábrica? O conselho da Eicher disse que sim – Lal poderia até estar sem rumo, mas era filho do chefe – com duas condições: em 12 meses, a Enfield teria de parar de tomar dinheiro emprestado da Eicher. E em 24, precisaria estar pelo menos empatando. Se não conseguisse superar os dois obstáculos, a empresa seria fechada.

Conheci Lal em fevereiro no escritório do pai, agora aposentado, localizado numa magnífica construção, com uma galeria de arte e um exuberante parque privado, em uma das áreas mais chiques de Nova Delhi. Embora aos 47 anos ele esteja mais próximo da idade média do fã da Harley do que da geração do milênio que compra motos Enfield, a aparência de Lal é muito mais próxima de sua base de clientes. Seu cabelo está penteado de maneira elegante nas laterais de sua espessa pilha de cachos, e sua barba salpicada de cinza tem a densidade ideal de um fabricante de cerveja artesanal do Brooklyn em Nova York. Ele também adotou o hábito juvenil de alardear seus privilégios, admitindo sem hesitar que conseguiu o emprego no comando de Enfield por causa de seu pai. “Tudo isso aconteceu apenas porque eu era filho do promotor”, disse ele, usando um termo indiano para se referir ao dono de uma empresa. “Qualquer outro cara de 27 anos não teria conseguido esse emprego.”

Durante nossa entrevista, ele mostrou o projeto que seguiu para reativar a empresa apenas com simples bom senso. Pouco depois de assumir, partiu para uma série de viagens de longa distância pela Índia, visitando revendedores e conversando com clientes. Um dos principais problemas, disse ele, ficou óbvio: a empresa tinha o hábito de oferecer suas motos com desconto, em parte para aumentar os pedidos em uma fábrica totalmente nova que havia sido construída no oeste da Índia. Em vez de induzir uma enxurrada de vendas, descobriu Lal, a estratégia basicamente fez com que os consumidores fiéis relutassem em pagar o preço integral. Então, mandou uma carta para cada revendedor da Enfield instruindo-os a dizer aos clientes que, no ano seguinte, não haveria mais descontos.

No primeiro mês as vendas caíram, mas depois disso começaram a subir, superando seus antigos volumes e sustentando uma recuperação que acertou mais da metade do problema de fluxo de caixa negativo de Lal. Foi então que ele começou a tapar todos os buracos onde a Enfield estava perdendo dinheiro – no começo, gastando dinheiro também. Arcou com enormes custos de indenização para fechar a nova fábrica para que pudesse se concentrar na operação mais antiga em Chennai. Lá, então, trouxe da Alemanha e do Japão, equipamentos de usinagem de precisão permitindo que os funcionários resolvessem os vazamentos de óleo das motos ao encaixar mais firmemente as duas peças do cárter, e o problema do travamento do motor, ao adaptar os pistões exatamente no bloco do cilindro.

Ele também comprou caminhões especialmente adaptados para que a empresa não precisasse mais prender as motos com pano e feno antes de enviá-las para as esburacadas estradas da Índia, reduzindo a quantidade de unidades danificadas que chegavam às concessionárias. Quando um revendedor se recusou a reformar a velha e suja loja, Lal abriu uma do outro lado da cidade. Essa nova estratégia foi bem sucedida para reduzir os prejuízos,  satisfazendo as condições do conselho da Eicher para manter a Royal Enfield viva – e  dessa forma melhorou a situação de Lal que acabou por se tornar CEO da empresa maior em 2006. Contudo, nenhuma dessas mudanças resolveu o problema fundamental: Lal simplesmente não estava vendendo motos em quantidade suficiente.

Melhores vendas exigiriam novos modelos. Lal decidiu começar com uma reformulação da lendária Bullet. Seu projeto básico pouco mudou em relação aos veículos de duas rodas que transportaram os guardas de fronteira indianos pelo Himalaia na década de 1950, incluindo um desajeitado motor em ferro fundido. Atualizar o motor e os componentes eletrônicos enquanto mantinha a aparência do original seria um desafio, principalmente no que se refere ao ruído. Os modernos motores de alumínio, Lal se decepcionou ao saber, não conseguiam reproduzir o rugido pelo qual se apaixonara quando jovem.

Foram necessários dois anos de trabalho no design, incluindo muitos testes de ruído, para que os engenheiros da empresa chegassem a um meio-termo. Ao tornar o pistão do motor mais longo e mais fino, conseguiram obter um som mais profundo do motor durante a aceleração, ao custo de um pouco de velocidade. E com um volante mais pesado, a moto ainda faria o gutural vrum, vrum, vrum que anunciava a todo mundo que você estava numa Enfield em um sinal vermelho. Mas o novo modelo também seria acessível, vendido na Índia por menos de US$ 2.000.

O custo de melhorar os produtos da Enfield não deixava muito dinheiro para marketing e, no início, o próprio Lal fazia a publicidade das motos, principalmente por andar nelas. A empresa começou a organizar viagens ao Himalaia ou de Mumbai a Goa para os clientes, na esperança de que se tornassem adeptos de suas novas máquinas. Isso ajudou a Índia, que havia escapado do pior da crise financeira global a prosperar. O produto interno bruto per capita quintuplicou de 1998 a 2018, dando a milhões de jovens consumidores dinheiro para torrar pela primeira vez.

A nova Bullet, além de outro modelo chamado Classic que se parecia ainda mais com a estética dos anos 60, chegou ao mercado em 2009, exatamente metade desse longo percurso financeiro. Naquele ano, a Royal Enfield vendeu cerca de 52.000 motocicletas. Em 2012, estava vendendo mais de 100.000, principalmente na Índia, um número que quase triplicou em 2014 – representando uma receita mais que suficiente para financiar outras inovações na linha de produtos. Em seu último ano financeiro antes da pandemia, a empresa vendeu cerca de 824.000 motos em todo o mundo. A Harley, por outro lado, vendeu cerca de 218.000.

Em uma local do tamanho de um hangar de aeronaves, sob a luz do sol tropical proveniente das grandes aberturas colocadas no teto alto de aço corrugado, duas linhas de montagem de motocicletas emitiam sinfonias dissonantes de tinidos, zumbidos e tremores. No início do processo, um dos funcionários colocava a estrutura nua, notavelmente semelhante à de uma moto, na esteira antes da montagem avançar. Em uma parada, os técnicos colocavam um motor pesado no lugar; em outro, a fiação era tecida através da moldura e deixada pendurada, suas pontas ainda soltas. Em seguida, as rodas eram encaixadas e presas com um rápido zumbido de uma chave de torque. Algumas paradas depois, um funcionário instalava um tanque de combustível na frente do espaço onde o motociclista eventualmente se sentaria. Perto do fim, mais duas pessoas aparafusavam os espelhos à mão.

A fábrica da Royal Enfield em Chennai estava produzindo algo novo. A potência dos motores das motocicletas é medida em ccs – a capacidade total de combustível de seus cilindros, expressa em centímetros cúbicos. A Bullet e suas primas atingem o máximo de 500 ccs, bastante poderosa para as congestionadas estradas urbanas da Índia como também em suas sinuosas e esburacadas estradas. Mas Lal está convencido de que vai demorar mais para Enfield competir no ocidente, onde os pilotos esperam poder percorrer longos trajetos. O resultado é a Continental GT, uma moto antiga nos moldes das “cafe racers”, populares no Reino Unido nos anos 60. Ela e outro novo modelo, a Interceptor, chegam a 650 ccs, compatíveis com as ofertas de médio porte da Harley e Indian, mas vendem por muito menos: cerca de US$ 6.000 nos EUA, onde foram lançadas em 2018, contra cerca de US$ 15.000 para uma Harley Cruiser básica.

Os dois modelos da Royal Enfield foram bem recebidos em mercados internacionais, indo para as listas dos melhores na mídia especializada em motocicletas e ganhando crítica positiva de ninguém menos que Jay Leno, ex-apresentador de programa de entrevistas noturno que agora passa grande parte do tempo analisando motos no YouTube . “Sabe, acho que gosto dessa moto. … [O] motor é muito equilibrado, muito macio ”, disse ele enquanto pilotava uma Continental ao redor de Los Angeles em um vídeo. Os dois modelos ajudaram a Royal Enfield a aumentar as vendas de exportação em 96% nos 12 meses até março, em quase 39.000 motos.

Esses números são uma pequena fração do que Lal diz que a Royal Enfield deveria estar vendendo. No ano passado, a empresa dobrou o tamanho de uma de suas três fábricas, elevando a capacidade total de produção para 1.2 milhão de motocicletas por ano. Depois de fechar as portas por mais de um mês durante o bloqueio do Corona vírus na Índia, as instalações voltaram a funcionar embora com apenas cerca de metade de sua produção normal. Em Chennai, um hangar inteiro ainda não está sendo utilizado para a montagem de uma linha da Continental e espera para ser reativado. Está tudo tão vazio que se pode ouvir os sapatos rangendo no chão.

Fazer com que os consumidores ocidentais comprem mais Continentals e Interceptors não será tarefa fácil. A Índia é o maior mercado mundial de veículos de duas rodas, principalmente por razões práticas: as motos são a maneira mais fácil de navegar pelas estradas caóticas e congestionadas do país. Até mesmo, ou talvez especialmente, nas grandes cidades, as pistas realmente não existem. Em vez disso, qualquer espaço aberto está disponível para qualquer veículo que caiba nele. Acesse as opções de caminhos no Google Maps em Mumbai e obterá rotas diferentes para carros e motos, sendo a última invariavelmente mais rápida.

O resultado é que, para muitos indianos – incluindo membros do clube de motociclistas, que tendem a se locomover em suas máquinas – uma moto retrô representa um upgrade na necessidade diária, não um luxo para amadores. E em mercados desenvolvidos, o hobby quase não existe mais. As vendas de motocicletas atingiram o pico nos EUA em 2006 e permaneceram praticamente inalteradas desde a crise financeira, com uma proporção cada vez maior de compradores na faixa dos 50 anos ou mais. Enquanto isso, os millenials com pouco dinheiro, aglomeram-se em cidades densamente populadas e, pelo menos até o advento da pandemia, parecem gostar mais de brunch do que de motos. Há também o fator do combustível fóssil. O consumo desnecessário de gasolina não tem o mesmo apelo de antes, uma constatação que levou a Harley-Davidson a lançar sua primeira moto elétrica, a LiveWire, no ano passado. (Não deu em nada, foi um fracasso). A Royal Enfield diz que não tem planos concretos para sua própria moto de passeio movida a bateria.

Lal pretende ser um grande competidor no ocidente, mas argumenta que a Royal Enfield não precisa necessariamente vender tantas motos em países desenvolvidos para que a estratégia seja considerada um sucesso. O que ela precisa fazer é modificar o suficiente para dar a esse público uma pátina de frescor em casa e em outros mercados emergentes, como o sudeste da Ásia. Embora possa parecer contraintuitivo, “os EUA e a Europa são muito importantes” para fazer da Enfield a moto aspiracional escolhida pelo mundo em desenvolvimento, diz ele. Para chamar atenção a empresa tentou fazer marketing para profissionais americanos de customização e concorrentes de pista plana e, em 2018, colocou Cayla Rivas, uma adolescente, piloto de motocicleta, em uma Continental turbinada em busca de um recorde de velocidade para sua aula de moto e belas filmagens para o YouTube. (Ela atingiu 252,901 km/h, pilotando uma Royal Enfield 650cc Twin, modificada, na competição de Bonneville Motorcycle Speed ​​Trials de 2018, realizada em Bonneville Salt Flats, em Utah.)

Como muitos críticos notaram, na medida em que alguém esteja adotando o motociclismo como passatempo, a Royal Enfield oferece preços mais acessíveis. Ainda assim, Lal admite que construir do zero uma grande comunidade de admiradores estrangeiros será difícil. “Eu não acho possível criar um culto de seguidores”, diz ele.

Na Índia, pelo menos, a Royal Enfield já tem um e mais um pouco. Existem muitos clubes dedicados a outras marcas, mas os grupos centrados na Enfield são, de longe, os mais numerosos. Alguns deles são incrivelmente bem organizados. O capítulo dos Devotes em Mumbai tem mais de 150 membros, com equipes para mídia social, criação de conteúdo e planejamento de passeios. Novos membros são recebidos de braços abertos, botões comemorativos e, no caso do passeio até a fábrica de sucos, existe um grito de convocação baseado no grito de guerra de Shivaji, rei Maratha do século 17. Essa excursão foi uma das últimas dos Devotos antes do bloqueio pelo COVID-19, que incluiu rígidos controles nas viagens de longa distância. Mas os membros do clube fizeram o possível para se manterem conectados virtualmente, realizando videoconferências periódicas e trocando dicas sobre como conservar suas Enfields durante a pandemia.

Enquanto a Harley mantém filiais oficiais dos Grupos de Proprietários Harley em cidades ao redor do mundo, o Devotes e outros clubes não têm nenhuma conexão oficial com a Royal Enfield. Mas os benefícios para a empresa são óbvios. Um dos novatos que aderiu à onda, um atacadista de frutas de 29 anos chamado Pramit Dongre, já possuía uma moto fabricada por outra empresa indiana. Mas depois de andar na garupa com um amigo, ele tinha planos de comprar uma Bullet. “Quando você anda em uma Bullet, você se sente uma pessoa diferente”, explicou ele, estufando o peito. "Parece que a gente faz parte da “realeza”.

 

 

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