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Se os restaurantes fecharem, o que acontecerá com as cidades?

À medida que os restaurantes vão à falência, as cidades perdem produção econômica e milhões de empregos

Jessica Line finaliza pedidos no Wherewithall, restaurante em Chicago (David Kasnic/The New York Times)

Jessica Line finaliza pedidos no Wherewithall, restaurante em Chicago (David Kasnic/The New York Times)

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Daniel Salles

Publicado em 18 de novembro de 2020 às 10h14.

Quando a The Church Brew Works abriu as portas em 1999, tornou-se uma das poucas boas notícias no bairro de Lawrenceville, em Pittsburgh, na Pensilvânia. A população havia caído para a metade desde os anos 1960. Um quarto dos moradores tinha mais de 65 anos e a maioria tinha trabalhado nas siderúrgicas que ficavam às margens do Rio Allegheny.

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A comunidade estava "virada do avesso", disse Sean Casey, que abriu a cervejaria em uma igreja católica que havia sido desconsagrada seis anos antes. O prédio vizinho era usado por traficantes que fabricavam crack.

Hoje em dia, é difícil reconhecer aquela Lawrenceville. A Carnegie Robotics conta com um endereço no bairro, assim como o National Robotics Engineering Center e o centro de automação da Caterpillar. A população do bairro agora é muito mais jovem.

A Church Brew Works tem alguma responsabilidade nessa transformação. "À medida que o setor de tecnologia se tornou bem-sucedido, começou a atrair profissionais jovens com renda disponível suficiente para comer melhor", comentou Michael Madison, professor de Direito da Universidade de Pittsburgh, que escreve um blog sobre a cidade.

A cervejaria fornece mais que apenas comida e cerveja. "As pessoas vêm e descobrem a arte perdida da conversa", observou Casey.

A pandemia do coronavírus interrompeu muitas dessas conversas. O faturamento despencou 75 por cento. No ano que vem, quando Casey espera que as coisas voltem ao normal, "teremos encarado 17 meses sem lucro".

E a história é a mesma em milhares de restaurantes. Isso levanta uma questão que vai reverberar muito além de Lawrenceville: o que acontecerá com os centros urbanos dos EUA quando os restaurantes desaparecerem?

Até o dia 31 de agosto, 32 mil restaurantes e 6.400 bares e casas noturnas que ainda funcionavam no dia primeiro de março haviam encerrado as atividades no Yelp. Na cidade de Nova York, uma pesquisa realizada pela Hospitality Alliance revelou que 87 por cento dos restaurantes não haviam conseguido pagar todo o aluguel referente a agosto.

Em setembro, a Controladoria Geral do estado de Nova York estimou que entre 30 e 50 por centro dos 24 mil restaurantes da cidade poderiam fechar as portas permanentemente nos próximos seis meses. Quarenta e três por cento dos bares estavam fechados em cinco de outubro. Além disso, o faturamento dos que continuam abertos caiu 80 por cento em relação ao mesmo dia em 2019, de acordo com a Womply, empresa que fornece plataformas de tecnologia para pequenos empreendimentos.

Parachute, com estrela Michelin, em Chicago, recorre ao takeout para se manter vivo (David Kasnic/The New York Times)

Em um pedido desesperado de ajuda, a Coalizão dos Restaurantes Independentes, formada recentemente para fazer lobby pela sobrevivência de restaurantes que não pertencem a grandes redes, argumentou em uma carta ao Congresso dos EUA, em junho, que, "até o fim do ano, o país corre o risco de perder para sempre até 85 por cento dos restaurantes independentes".

Os restaurantes no centro da cidade são os que mais sofrem, e são justamente as regiões urbanas dos EUA que sentirão o choque de seu desaparecimento com maior intensidade.

Em 2019, restaurantes, bares, food trucks e outros estabelecimentos gastronômicos receberam ao menos 47 por cento do orçamento alimentar dos consumidores de cidades com população superior a dois milhões e meio de pessoas, segundo dados do governo. Fora das áreas urbanas, os gastos correspondem a 38 por cento. Em comparação, no início dos anos 1970, os consumidores urbanos usavam 28 por cento de seu orçamento alimentar para comer fora.

Os restaurantes foram um elemento central para a transformação urbana dos EUA, ajudando a atrair pessoas jovens e com formação superior para o centro das cidades. Com frequência, isso transformou bairros industriais e repletos de armazéns em áreas residenciais, além de ter reformulado muitos bairros pobres, obrigando seus antigos habitantes a sair da cidade.

Mesmo que o setor de alta tecnologia e seus empregos bem pagos tenham financiado essas mudanças, estabelecimentos sociais e culturais também tiveram um papel transformador. Já nas últimas duas décadas do século XX, cidades com mais restaurantes e teatros per capita cresciam mais rapidamente que as outras, de acordo com um estudo realizado pelos economistas Edward Glaeser, Jed Kolko e Albert Saiz, embora o valor dos aluguéis tenha aumentado mais rapidamente que os salários.

Em um estudo recente, Jessie Handbury, da Escola Wharton School, da Universidade da Pensilvânia, e Victor Couture, da Universidade da Colúmbia Britânica, documentam como, depois de décadas de suburbanização, a população jovem e bem formada começou a se mudar de volta para o centro das grandes cidades norte-americanas.

Eles foram atraídos sobretudo pelo aumento da renda disponível, à medida que a economia da alta tecnologia aumentou a recompensa da formação universitária. Os índices decrescentes de casamento e natalidade não apenas liberaram tempo e dinheiro, mas também geraram demanda por espaços sociais – fornecidos sobretudo por restaurantes, bares e cafés.

A Honey Butter Fried Chicken abriu as portas em uma região que costumava ser industrial em Avondale, na Zona Norte de Chicago, em 2013. O Parachute, restaurante de culinária fusion coreana, foi inaugurado na mesma rua um ano mais tarde. Dois anos depois disso, veio uma escola Montessori no quarteirão de baixo. Há alguns anos, o artista Matthew Hoffman, famoso por "You Are Beautiful", abriu um estúdio e uma loja do outro lado da rua. "Uma coisa que notamos é que nenhuma pessoa entrava na loja às segundas-feiras, o dia de folga da Honey Butter. Mas temos um ótimo relacionamento. Eles mandam frango e enviamos arte e adesivos", contou Hoffman.

Bairro de Lawrenceville, em Pittsburgh (Ruth Fremson/The New York Times)

Agora, esse ecossistema está em risco. A Honey Butter Fried Chicken está segurando as pontas. "O sanduíche de frango frito foi feito sob medida para ser levado", comentou Josh Kulp, que comanda a empresa em parceria com Christine Cikowski. Contudo, o Parachute, que tem uma estrela Michelin, tem dificuldades para vender pratos por delivery. "Precisamos faturar US$ 15 mil por semana só para pagar as contas. Mas na semana passada ganhamos US$ 8 mil e esta semana só US$ 6 mil. Estamos sangrando dinheiro", disse Beverly Kim, proprietária do restaurante com o outro chefe e marido, Johnny Clark.

O serviço também está limitado a pedidos por delivery no Lula Cafe, em Logan Square, cerca de dois quilômetros e meio ao sul, e o faturamento caiu cerca de 80 por cento. "Não existe uma pessoa que não esteja perdendo dinheiro. Ainda aguento mais dois ou três meses, mas, sem ajuda do governo federal, não sei se sobreviverei ao inverno", estimou Jason Hammel, que é formado pela Universidade Brown e veio para Illinois nos anos 1990 para aprender a escrever com David Foster Wallace, mas acabou se tornando dono de restaurante.

Obviamente, à medida que os restaurantes vão à falência, as cidades perdem produção econômica e empregos – mais de dois milhões de empregos em restaurantes, e 173 mil em bares foram perdidos entre fevereiro e agosto deste ano nos EUA. Porém o setor também corre o risco de perder a sustentabilidade.

Em um artigo publicado recentemente, Sitian Liu, da Queen's University, no Canadá, e Yichen Su, do Banco da Reserva Federal de Dallas, concluíram que a perda de valor dos restaurantes urbanos está contribuindo para uma reorganização residencial que leva ao aumento da demanda por moradia suburbana, enquanto o mercado nas áreas urbanas mais densas está parado. Em resumo, se você não pode sair para jantar, por que viver na cidade?

O desaparecimento dos restaurantes enfraquece o pilar econômico central das cidades que mais se desenvolvem: o ganho em produtividade oriundo da vinda de muitas pessoas jovens e criativas, que compartilham ideias no mesmo espaço.

Sash Simpson na cozinha de seu restaurante em Toronto, o Sash (Kiana Hayeri/The New York Times)

Michael Andrews, economista da Universidade de Maryland, no condado de Baltimore, estudou o valor dessa interação social ao observar o que aconteceu quando tudo ficou fechado.

Nos anos 1910, antes que o governo federal dos Estados Unidos proibisse a venda e o consumo de álcool no país, diversos estados aprovaram leis que proibiam o consumo da substância. Isso fechou de uma só vez os bares que funcionavam nos condados onde o consumo de álcool era legalizado. Andrews percebeu que, depois disso, houve uma queda no número de patentes registradas nesses locais.

Para Andrews, a razão tem pouca relação com a bebida. Em vez disso, esses bares ofereciam um espaço social fundamental para a troca de ideias.

Andrews e Chelsea Lensing, do Coe College, estão trabalhando em outro estudo, sobre a importância dos cafés para a inovação. Observando a expansão da Starbucks de sua base, em Seattle, nos anos 1980, os resultados preliminares sugerem que o número de patentes registradas aumentou quando a Starbucks chegou à cidade. O mesmo aconteceu com a chegada de redes como Dunkin' Donuts e Peet's Coffee, entre outras.

"A lição que tiramos disso é que ter esse tipo de local de encontro informal, onde as pessoas podem se juntar para trocar ideias, pulando de conversa em conversa, é fundamental para a criatividade", concluiu Andrews.

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