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"Recebi mais de cem ameaças de morte", diz curador da exposição Queermuseu

Gaudêncio Fidelis fala sobre os ataques à exposição de arte cancelada no ano passado em Porto Alegre e reinaugurada no Rio de Janeiro neste mês

Gaudêncio Fidelis: “É possível constatar que a narrativa difamatória que tinha sido criada não existe” (Mariana Simões/Agência Pública/Divulgação)

Gaudêncio Fidelis: “É possível constatar que a narrativa difamatória que tinha sido criada não existe” (Mariana Simões/Agência Pública/Divulgação)

Júlia Lewgoy

Júlia Lewgoy

Publicado em 28 de agosto de 2018 às 14h22.

Última atualização em 28 de agosto de 2018 às 14h24.

Inicialmente realizada no Santander Cultural de Porto Alegre, a exposição Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira foi cancelada em setembro do ano passado quando membros do Movimento Brasil Livre (MBL) criticaram o seu conteúdo como imoral e ofensivo.  À época, a exposição foi acusada de fazer apologia à pedofilia, pornografia e zoofilia.

Nesta entrevista à Agência Pública, o curador da exposição, Gaudêncio Fidelis, avalia que os ataques à Queermuseu demonstram uma tendência no crescimento do conservadorismo e fundamentalismo no Brasil. “Eu recebi mais de cem ameaças de morte. Foi terrível. Não tinha volume dos ataques que recebi. Eu tive que andar com segurança naqueles primeiros dias”, relembra.

A decisão do Santander Cultural de fechar a exposição foi criticada e gerou manifestações em prol da liberdade de expressão. Mas uma onda de apoio culminou com uma campanha de crowdfunding para remontar a Queermuseu, dessa vez no Rio de Janeiro, no Parque Lage, o que levou a um recorde nacional de financiamento coletivo com mais de R$ 1 milhão arrecadado.

Segundo o seu curador, a reinauguração contou com a presença de cerca de 10 mil pessoas e se deve à importância política que a exposição ganhou para além do mundo da arte. “Nunca no Brasil uma exposição permaneceu tanto tempo no debate público.”

Vocês apostaram em uma exposição provocativa que tem uma mensagem política. Qual era objetivo que vocês queriam alcançar?

Essa exposição não é uma ideia isolada. Ela vem de um processo e de um conjunto de exposições que venho desenvolvendo há cerca de dez anos e que foi se afunilando para algumas questões específicas que são do meu interesse. E que tem, sim, no universo da arte uma dimensão política.

Por exemplo, tenho um interesse grande nas premissas que formam e constroem o cânone da história da arte. Acho importante que isso seja entendido porque existe uma equivalência na maneira como a institucionalidade constrói essa história e os nossos comportamentos sociais com a maneira como nós vivemos a nossa vida fora do universo institucional da arte.

É importante considerar que sou um historiador da arte que reafirmo claramente que o cânone da arte é excludente por natureza. Ou seja, daquelas obras mais relevantes, a história da arte exclui uma enormidade de outras. É uma fatalidade inerente desse processo. Isso que acontece no âmbito da história da arte tem uma correspondência no que a gente vê dos processos de exclusão no âmbito social.

Existe também uma equivalência quando digo que a obra de arte é como um espelho. Quando você ingressa em uma exposição, você projeta nesses objetos os seus preconceitos, a sua história de vida, o seu nível de tolerância ou intolerância.

Quando você, por exemplo, diz “eu não gosto dessa obra” ou “ela me causa determinado sentimento”, é porque você projeta nela o olhar, mas ela demanda uma resposta. É importante, também, entender que dentro desse aspecto as suas crenças também são projetadas ali.

Aquilo ali é um exercício de confronto com o outro, o objeto é esse outro. Nesse sentido, a arte é muito reveladora do nosso comportamento social, dos preconceitos que a gente projeta lá fora, muitas vezes da nossa intolerância, inclusive, do ódio que se projeta para a arte, mas que também se projeta em relação ao outro que a gente não aceita.

Foi justamente esse contato do público com “o outro” que gerou toda aquela reação entre os grupos de direita. Você tinha essa expectativa de que a exposição iria gerar uma reação no público?

Não. Ali [na exposição] existe esse componente, mas ele se agrega a um outro que é circunstancial. Eu já estava detectando desde 2011, de uma maneira muito visível, quando fui dirigir o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, que havia um acirramento dos ataques de ódio à produção artística contemporânea. Que não são novos no Brasil e ainda acontecem em várias partes do mundo, que é um certo ódio da arte contemporânea. Só que eles não tinham um caráter moral naquele momento.

Depois, quando fiz a Bienal do Mercosul, nós tivemos ataques enormes à obra do Hélio Oiticica Tropicália, que estava presente na exposição. É uma obra histórica que nós remontamos na bienal, e ela tinha a inclusão de dois papagaios criados em cativeiro e tinham toda a assistência dos tratadores. E vieram ataques de certos segmentos dos defensores dos animais.

Mas a gente detectou que era um ódio direcionado à produção artística. “Ah, arte contemporânea é um lixo” e essas coisas. A bienal foi em 2014 e já ali eu estava detectando que isso estava crescendo, mas ainda não havia ali, pelo menos visivelmente, um aspecto moralista por trás desses ataques.

O que mudou?

Quando a Queermuseu surge, o universo é completamente diferente. Acho que é preciso pôr em perspectiva as circunstâncias que nós já estamos vivendo com o crescimento desses movimentos de extrema direita e ultradireita, o fundamentalismo que vem crescendo de uma maneira rápida e avassaladora e o papel que o MBL desenvolve nos ataques à exposição. Porque são eles que atacam a exposição.

Não há ataques à exposição antes deles de nenhuma forma. Não há nenhum descontentamento e a exposição é muito celebrada. Uma visitação extraordinária. Ela teve em 26 dias 32 mil visitantes. Em uma cidade como Porto Alegre, isso é muito.

Então você não achava que as pessoas teriam essa reação de ódio?

Não. Honestamente acho que a exposição transcorria normal. Acredito que, se a exposição tivesse permanecido mais tempo, ela teria ataques dessa natureza, mas não de uma natureza fascista e organizada como foi o caso do MBL.

Conte um pouco sobre as ameaças que você sofreu. Como você se sentiu naquele momento?

Cinco membros do MBL, alternadamente, ingressam na exposição, na tarde do dia 6 de setembro de 2017, com cameras, fazendo vídeos e abordando e assediando os visitantes, dizendo coisas que até hoje tenho dificuldade de repetir, mas estão nos mais de 10 mil vídeos no YouTube. Tem muitos que são difamatórios.

Eles continuam esses ataques na sexta e no sábado, e o Santander fecha a exposição no domingo sem consultar a mim, como curador, nem a produção. Foi uma decisão unilateral. Essas narrativas falsas que eles construíram crescem e se juntam a narrativas de grupos ligados ao Bolsonaro e outros setores ultraconservadores da sociedade.

E aí nós temos um dilema até então nunca visto na história de exposições brasileiras. Como é que nós lidamos com uma exposição que está sendo atacada sistematicamente, em que há uma narrativa difamatória que só cresce, e não temos mais a exposição aberta para constatar se o que está sendo dito é verdade ou não?

Mas houve uma reação muito impressionante de setores progressistas da sociedade quando mais de 3.500 pessoas se reúnem em frente ao Santander para um protesto contra o Santander e em defesa da exposição, convocado em grande parte por organizações LGBT, organizações de caráter feminista, outras de defesa de trabalhadores sexuais.

E se juntam a ela também organizações sociais e sindicatos, parcelas do setor acadêmico, sociedade geral, lideranças políticas. É uma das coisas mais impressionantes que eu vi. Lembrando que depois isso resulta nesse engajamento extraordinário desses vastos setores da sociedade brasileira, e parte da sociedade internacional, inclusive com a campanha de crowdfunding, a maior campanha de financiamento coletivo do país, arrecadando mais de R$ 1,81 milhão.

Apesar da reação favorável da sociedade, que acolheu a exposição, como você se sentiu quando os ataques começaram?

Sempre defendi arduamente as exposições que realizei. Porque acho que essa é minha tarefa como curador. Mas a minha defesa sempre é artística e conceitual. Política também, mas no âmbito da arte. Quando a exposição fecha, se impõe para mim uma tarefa dentro da qual fui inadvertidamente colocado, a de fazer uma defesa de uma outra natureza.

A defesa do mérito artístico da exposição deixei de lado e tive que migrar imediatamente para uma outra defesa, que foi a dos princípios mais elementares da democracia, do direito de acesso. Uma defesa da liberdade de expressão. Entendi que o impacto que isso teria sobre a liberdade de expressão e a liberdade de escolha era fundamental.

Eu fiz uma advertência que nunca vou esquecer, quando me pediram para fazer uma fala: “Essa exposição, a partir de hoje, está entregue nas mãos da sociedade brasileira. Eu acredito que a sociedade brasileira irá dar uma demonstração de força e democracia e irá reabri-la em algum momento, porque isso é fundamental para o princípio democrático”.

Você recebeu ameaças pessoalmente?

Eu recebi mais de cem ameaças de morte. Foi terrível. Não tinha volume dos ataques que recebi. Eu tive que andar com segurança naqueles primeiros dias. Foi uma coisa impressionante.

Você tomou alguma ação judicial contra esses grupos de extrema direita?

Eu fui muitas vezes questionado sobre essa questão, mas a minha decisão foi estratégica de não fazer isso. Porque entendi que acionar o MBL é irrelevante. Seria gastar uma enorme energia e um enorme dispêndio de recursos para obter um sucesso que não tem impacto em relação a eles.

A minha estratégia foi promover um contra-ataque de defesa desses princípios democráticos em direção, por exemplo, a setores da classe média conservadora, vários dos quais financiavam o MBL. Direcionar para eles uma mensagem: “Olha com quem vocês estão flertando”.

Porque esses setores, apesar de serem conservadores, são setores diferentes, e nós precisamos, agora, neste momento, distinguir o conservadorismo de um outro território que é o fundamentalismo, o fascismo, a ultradireita e a extrema direita.

Ao direcionar essa mensagem para esses setores mais conservadores da classe média que estavam dando sustentação financeira ao MBL, nós seríamos mais efetivos. Esses setores, apesar de conservadores, não aceitam a censura em diversos termos, que obras sejam retiradas de museus, que se fechem museus. Acho que essa estratégia foi muito efetiva porque o MBL sofreu um dano muito maior do que eles esperavam.

O Kim Kataguiri, em uma entrevista longa, é perguntado sistematicamente sobre a Queermuseu e ele nega que houve. É como se nunca tivesse existido. “Não, não era censura, nós não tivemos essa intenção”.

Recentemente, agora na abertura da Queermuseu, um órgão de imprensa internacional o entrevistou novamente e ele disse: “Não, aquilo nunca foi censura. Nós queríamos apenas defender que a exposição não fosse financiada publicamente”. Eles desfazem a conversa.

O próprio Marcelo Crivella, prefeito que em determinado momento atacou a exposição e impediu que ela viesse para o Rio, dá entrevista para as “Páginas Amarelas” da Veja, e ele desfaz completamente o assunto da Queermuseu, dizendo apenas que não gostava da exposição. Então acho que a reação que a gente promoveu, a estratégia que a gente escolheu, foi acertada. Uma batalha jurídica, na minha opinião, seria difusa e ineficaz.

Como você vê o papel da própria exposição em desconstruir essa imagem que esses grupos de direita tentaram propagandear sobre a exposição?

A exposição agora aberta resolve aquele dilema inicial. É possível constatar que a narrativa difamatória que tinha sido criada em torno da exposição não existe, não tem correspondência na exposição. E estive lá todo o tempo desde a abertura.

Eu percorri as filas e conversei com as pessoas, e foi uma experiência excepcional para mim. As pessoas estavam profundamente felizes de a exposição estar reabrindo. Acompanharam a luta em torno dela e tinham se engajado.

O TJ-RJ derrubou a liminar que proibia a entrada de menores de 14 anos na exposição. Você concorda com a classificação de idade em exposições que foi adotada por vários outros lugares?

Eu sou absolutamente contra a classificação indicativa para exposições de arte e já fiz várias defesas públicas sobre isso. Eu participei, por exemplo, de um debate sobre classificação indicativa em que eu conclui da seguinte forma.

Primeiro, a inexistência da classificação indicativa para as artes visuais nos termos em que está colocada no Estatuto da Criança e do Adolescente: a ausência dela não foi uma distração, não foi um lobby da comunidade artística para que não houvesse classificação indicativa.

O ECA é muito bem-feito e está fundamentado na ideia de que de fato não existe em nenhum lugar do mundo estudo que diga ou prove que imagens de obras de arte produzam trauma ou algum impacto psicológico em crianças e adolescentes.

A minha defesa é muito categórica e eu vou persistir nela: que seja mantido o caráter pedagógico que o ECA contém, aquele de que seja destinado aos pais ou responsáveis as decisões que envolvem a maneira como eles desejam criar os seus filhos e propiciar a eles educação e conhecimento. E essa decisão, se for retirada dos pais e jogada para o Estado, estabelecerá mecanismos de censura prévia e assim por diante.

Você acha que virá alguma outra reação negativa pela frente?

Acho que nós vencemos essa luta em grande parte. Acho que ela continua porque essas lutas são contínuas. Tenho dito que umas das coisas para a qual o fechamento da Queermuseu nos acordou foi que a gente viu de uma hora para outra que a democracia não é perene, que a gente tem que lutar por ela todos os dias.

Mas é muito claro para mim que o que traz as pessoas para a exposição agora é o fato de que as elas querem participar dela e se sentem parte dela.

Quando eu falei com as pessoas que estavam na fila, elas foram muito categóricas em dizer: “Eu vim porque essa exposição me diz respeito, eu me sinto parte dela, eu quero participar desse momento histórico. É importante para a democracia”.

Você acha que toda essa comoção em volta da exposição acabou atraindo um público que talvez não teria ido vê-la se ela não tivesse sido censurada?

Para você ter uma ideia, até este momento saíram mais de 2.800 matérias sobre a exposição no mundo inteiro. Ela tem uma repercussão. Nunca no Brasil uma exposição permaneceu tanto tempo no debate público sem cessar.

Porque ela galvaniza esses setores da sociedade mais progressistas em defesa de um universo muito mais amplo que extrapola a exposição, mas para qual a ela serve de plataforma. E essa plataforma não havia sido encontrada até então, com essa possibilidade de radiação ampla.

Ou seja, você consegue trazer para uma luta abrangente um universo enorme de pessoas que até então não estavam convergindo para uma defesa sistemática de determinados princípios democráticos. E nada melhor que a arte para ser um instrumento de união.

Por outro lado, não deixa de ser surpreendente que uma exposição de arte, que até então sempre foi considerada uma área elitista, restrita, de pouco acesso, hermética etc., tenha sido justamente aquela que tenha propiciado essa amplitude.

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