Bryan Fogel em sua casa em Malibu, na Califórnia (Coley Brown/The New York Times)
Daniel Salles
Publicado em 6 de janeiro de 2021 às 12h35.
Última atualização em 6 de janeiro de 2021 às 13h44.
O primeiro documentário de Bryan Fogel, Ícaro, ajudou a desvendar o escândalo de doping russo que levou à expulsão do país dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018. Também garantiu um Oscar para ele e para a Netflix, que lançou o filme.
Para seu segundo projeto, ele escolheu outro assunto de interesse global: o assassinato de Jamal Khashoggi, o dissidente da Arábia Saudita e colunista do The Washington Post, e o papel que o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, teve no caso.
O filme de um cineasta ganhador do Oscar normalmente atrairia muita atenção dos serviços de streaming, que têm usado documentários e filmes de nicho para atrair assinantes e ganhar prêmios. Em vez disso, quando o documentário de Fogel, The Dissident, finalmente foi capaz de encontrar um distribuidor depois de oito meses, foi com uma empresa independente, sem plataforma de streaming e com um alcance muito mais restrito.
"Essas empresas de mídia globais não pensam mais: 'Como isso vai repercutir para o público dos Estados Unidos?' Elas se perguntam: 'E se eu exibir este filme no Egito? O que acontece se eu o liberar na China, na Rússia, no Paquistão, na Índia?' Todos esses fatores estão em jogo, e atrapalham histórias como esta", disse Fogel.
The Dissident estreou em 150 a 200 cinemas em todo o país no dia de Natal e, em seguida, estará disponível para compra em canais premium de vídeo sob demanda em 8 de janeiro. (Os planos originais previam um lançamento em 800 cinemas em outubro, o que foi redimensionado por causa da pandemia.) Internacionalmente, o filme será lançado no Reino Unido, na Austrália, na Itália, na Turquia e em outras nações europeias por meio de uma rede de distribuidores.
É muito pouco se comparado com o público que teria sido capaz de alcançar mediante um serviço como a Netflix ou a Amazon Prime Video, e Fogel afirmou acreditar que também era um sinal de como essas plataformas — cada vez mais poderosas no mundo dos documentários — buscam expandir suas bases de assinantes, sem necessariamente escancarar os excessos dos poderosos.
Para seu filme, Fogel entrevistou a noiva de Khashoggi, Hatice Cengiz — que o esperava em frente ao Consulado da Arábia Saudita em Istambul em 2018 enquanto o assassinato era cometido —, o editor do The Washington Post, Fred Ryan, e vários membros da força policial turca. Ele obteve uma transcrição de 37 páginas feita a partir de uma gravação do que aconteceu na sala onde Khashoggi foi estrangulado e esquartejado. Também passou um tempo significativo com Omar Abdulaziz, jovem dissidente exilado em Montreal que havia trabalhado com Khashoggi combatendo o modo como o governo da Arábia Saudita usava o Twitter, tentando desacreditar vozes da oposição e críticas ao reino.
The Dissident conseguiu um lugar cobiçado no Festival de Cinema de Sundance em janeiro. O The Hollywood Reporter o chamou de "vigoroso, profundo e abrangente", enquanto a Variety disse que era "um thriller documental de relevância impressionante". Hillary Clinton, que estava em Sundance por causa de um documentário sobre ela, pediu que as pessoas assistissem ao filme, declarando em uma entrevista no palco que é "um trabalho assustadoramente eficaz para demonstrar o turbilhão que as mídias sociais podem ser".
A única coisa que faltou foi Fogel garantir a venda para uma plataforma de streaming proeminente, que pudesse amplificar as descobertas do filme, como a Netflix fez com Ícaro. Quando The Dissident finalmente encontrou um distribuidor em setembro, foi a empresa independente Briarcliff Entertainment.
Fogel disse ter avisado a Netflix sobre seu filme ainda na fase de produção e novamente meses depois, quando foi aceito em Sundance. "Eu disse a eles como estava animado para que o vissem. Nunca me responderam."
Reed Hastings, o CEO da Netflix, estava na estreia do filme em Sundance, mas a empresa não mostrou interesse pela obra. "Fiquei decepcionado, mas não chocado", comentou Fogel.
A Netflix se recusou a comentar, embora uma porta-voz, Emily Feingold, tenha mencionado alguns documentários políticos que o serviço produziu recentemente, incluindo Democracia em Vertigem, de 2019, sobre a ascensão do líder autoritário Jair Bolsonaro no Brasil.
A Amazon Studios também não mostrou interesse. Imagens de Jeff Bezos, o executivo-chefe da Amazon, dono do The Washington Post, são mostradas no filme. A Amazon não respondeu a um pedido de comentário.
A Fox Searchlight, agora propriedade da Disney, não fez uma oferta, assim como a distribuidora independente Neon, que estava por trás do filme vencedor do Oscar do ano passado, Parasita, e que muitas vezes adquire conteúdos desafiadores.
"O que observei foi que o desejo por lucros corporativos deixou a integridade da cultura cinematográfica americana enfraquecida", disse Thor Halvorssen, fundador e CEO da Fundação de Direitos Humanos, sem fins lucrativos, que financiou o filme e atuou como produtor.
Os documentários em geral não contam com grandes bilheterias, por isso tradicionalmente encontram seu público em outros lugares. A PBS é uma plataforma proeminente de documentários, mas a ascensão do streaming tornou empresas como a Netflix, a Amazon e a Hulu muito importantes para o gênero. À medida que elas foram crescendo, suas necessidades de negócios mudaram.
"Isso é inquestionavelmente político. É decepcionante, mas são empresas gigantescas em uma corrida mortal pela sobrevivência", afirmou Stephen Galloway, reitor da escola de cinema da Universidade Chapman. E acrescentou: "Você acha que a Disney faria algo diferente com o Disney+? Ou a Apple, ou qualquer uma das megacorporações? Elas têm imperativos econômicos difíceis de ignorar, e precisam equilibrá-los com questões de liberdade de expressão."
The Dissident não é o único documentário político que não chegou a um serviço de streaming. Este ano, a Magnolia Pictures, que tem um contrato de streaming com a Disney Hulu, desistiu de um acordo com os criadores do documentário The Assassins, que conta a história do envenenamento de Kim Jong Nam, meio-irmão do líder norte-coreano Kim Jong-un.
O diretor do filme, Ryan White, referiu-se ao hack da Sony Pictures em 2014 em uma entrevista à revista Variety, e creditou a "estrada turbulenta" da distribuição dos Estados Unidos às corporações que acham que "poderiam ser hackeadas de uma maneira que talvez fosse devastadora para elas ou para seus resultados".
A Netflix estava ansiosa por Ícaro havia vários anos, tendo comprado o filme por 5 milhões de dólares depois que estreou em Sundance em 2017. "A ousadia de Fogel produziu um thriller absorvente da vida real que continua a ter reverberações globais", disse Lisa Nishimura, vice-presidente de documentários originais da Netflix, em um comunicado na época.
Fogel se pergunta se a empresa ficaria tão animada com Ícaro agora. "Quando Ícaro saiu, eles tinham 100 milhões de assinantes. E queriam muito que David Fincher fizesse filmes com eles, Martin Scorsese, Alfonso Cuarón. É por isso que era tão importante que tivessem um filme com o qual pudessem ganhar um prêmio", analisou ele. (A Netflix tem atualmente 195 milhões de assinantes em todo o mundo.)
Em janeiro de 2019, a Netflix excluiu um episódio da série do comediante Hasan Minhaj, Patriot Act, quando ele criticou o príncipe herdeiro Mohammed depois da morte de Khashoggi. Hastings mais tarde defendeu a medida, declarando: "Não estamos tentando mostrar a 'verdade do poder'. Estamos tentando entreter."
Em novembro, a Netflix assinou um contrato de oito filmes com o estúdio da Arábia Saudita Telfaz11 para produzir filmes que, segundo ele, "buscam maior apelo entre o público árabe e global".
O destino de The Dissident não foi o ideal, mas Fogel ainda espera que as pessoas o vejam. "Amo a Netflix e me considerava parte da família depois de nossa maravilhosa experiência com Ícaro. Infelizmente, eles não são a mesma empresa de alguns anos atrás, quando enfrentaram apaixonadamente a Rússia e Putin", lamentou.