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Os nômades digitais não se prepararam para isso

Há coisas que as matérias sobre tendências e as postagens do Instagram não contam. Impostos. Burocracias. O wi-fi que não funciona. A fronteira fechada

Nômades digitais agora enfrentam brigas e culpa (Julia Yellow/The New York Times)

Nômades digitais agora enfrentam brigas e culpa (Julia Yellow/The New York Times)

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Daniel Salles

Publicado em 22 de novembro de 2020 às 06h00.

Para determinado tipo de trabalhador, a pandemia representou uma ruptura no espaço-tempo da carreira. Muitos americanos ficaram travados, presos por conta dos filhos, perderam renda ou tiveram de cuidar de pessoas doentes. Mas, para aqueles que não ficaram sobrecarregados, e que tinham um emprego estável que era exequível de qualquer lugar, esse foi um momento de abraçar o destino e aproveitar.

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A lógica deles era tão invejável quanto inatingível para os demais: se você vai trabalhar de casa indefinidamente, por que não fazer isso em uma nova casa em um lugar exótico? As pessoas desse pequeno grupo pegaram o MacBook, o passaporte e a máscara N95 e se tornaram nômades digitais. Postaram fotos no Instagram em que trabalhavam em resorts vazios em Bali e fizeram reuniões via Zoom em vans adaptadas. Transformaram sacadas de Airbnbs baratos em Tulum em escritórios e reservaram áreas de camping em parques estaduais com Wi-Fi. Eram o tipo de pessoa que realmente se candidatava ao visto de trabalho remoto amplamente anunciado por países do Caribe. E, no fim das contas, decepcionaram-se.

David Malka, empresário de Los Angeles, tinha ouvido falar de amigos que estavam aproveitando a vida trabalhando no exterior. Em junho, criou um plano: ele e a namorada iriam trabalhar de Amsterdã, com uma parada rápida no caminho em um resort em promoção no México.

O primeiro obstáculo apareceu quase imediatamente. Em Cabo San Lucas, Malka e a namorada perceberam que a União Europeia não estava prestes a reabrir a fronteira para viajantes americanos, como esperavam. Voltar aos Estados Unidos não era mais uma opção: a namorada de Malka era do Reino Unido e seu visto não lhe permitia regressar.

Decidiram então ficar um pouco mais no México. O começo foi glamoroso, segundo Malka. Trabalhando em um laptop – ele gerencia um portfólio de imóveis para aluguel por temporada –, tinham o resort só para eles. Mas, na segunda semana, a situação começou a ficar parecida com o filme "Feitiço do Tempo". A cidade e a praia foram fechadas, de modo que o casal não saía do resort. Enquanto isso, a proibição de viagens estava prejudicando seus negócios. "Tudo que podíamos fazer era sentar à beira da piscina ou ir à academia", disse Malka. A repetição, o tédio e o isolamento eram desgastantes demais para eles.

Por fim, o casal conseguiu fazer uma viagem de 28 horas e duas escalas para Amsterdã, onde Malka foi barrado na alfândega. Em seguida, foram para Londres, onde imediatamente se separaram.

Ele ficou lá desde então. "Fria, chuvosa, deprimente. Esses são os três primeiros adjetivos que me vêm à mente", afirmou o americano.

Agora, Malka está tentando descobrir uma forma de ir a Bali – tecnicamente, a ilha está fechada aos visitantes, mas ele ouviu falar de um visto especial que pode sair rapidamente por US$ 800 – ou tentar conseguir comprovar sua descendência portuguesa e assim obter a cidadania. É muita logística. "Meu transtorno do estresse pós-traumático está planejando meu próximo mês."

Malka está longe de ser o único nômade da Covid a tropeçar no caminho. Acontece que há coisas que as matérias sobre tendências e as postagens do Instagram não contam. Impostos. Burocracias. O wi-fi que não funciona. Fronteira fechada. O tipo de coisa que uma pessoa acaba não ponderando ao decidir, de forma emocional e confusa, fazer as malas e reservar uma passagem só de ida para o Panamá, Montreal ou Kathmandu.

Katie Smith-Adair e o marido dirigem a PlaceInvaders, empresa de eventos em Los Alamos, na Califórnia. Quando a pandemia interrompeu os negócios, eles colocaram tudo em seu Volvo, incluindo uma barraca e um chuveiro para camping, e partiram em uma viagem de um mês pela região Oeste do país. Durante todo o tempo, ela trabalhou por 40 horas semanais com a PlaceInvaders tentando organizar eventos virtuais.

A primeira lição? Nunca confie no wi-fi do camping. A segunda? Você será julgado pelos funcionários do camping por precisar do wi-fi. "Eles fazem a gente se sentir mal por não estar desconectada e em contato com a natureza. Esse é meu trabalho. Quero desligar, mas também preciso entrar bem rápido naquela reunião do Zoom", disse Smith-Adair. Em um estacionamento para trailers perto de Boise, no Idaho, ela notou um ponto de acesso de wi-fi cujo nome era o equivalente ao dedo médio dirigido a todos os californianos.

Talvez o pior resultado potencial não divulgado por aqueles que fugiram: você e seu empregador podem acabar no inferno da auditoria fiscal.

Muitos viajantes americanos tentam usar uma isenção tributária concedida aos que moram no exterior. Mas é preciso estar fora do país por 330 dias inteiros do ano, sem contar as viagens. Qualquer confusão nos números gera penalidades severas.

Nômades digitais agora enfrentam brigas e culpa (Julia Yellow/The New York Times)

"É o jejum intermitente dos impostos. Todo mundo fala disso e todo mundo faz errado", comentou Alexander Stylianoudis, conselheiro geral da WiFi Tribe, grupo que dá suporte a 900 nômades digitais. Segundo ele, a quantidade de erros que tem visto desde o começo da pandemia se multiplicou.

Alguns trabalhadores evitaram isso simplesmente se esquecendo de mencionar o local onde estavam aos empregadores – a regra "não pergunte, não diga" do trabalho remoto durante a pandemia. Outros foram honestos e se arrependeram. Uma funcionária de uma empresa de tecnologia de capital aberto se mudou para o Canadá quando o escritório fechou em março. Em setembro, duas semanas depois de uma promoção, a empresa a informou repentinamente de que deveria retornar aos Estados Unidos em duas semanas ou se demitir. Explicaram a ela que o motivo era evitar o pagamento de impostos estrangeiros. (Ela pediu que seu nome não fosse divulgado, uma vez que a situação ainda não está resolvida.)

Outros empregadores estão tentando traçar os limites. Leigh Drogen, executivo-chefe da Estimize, uma startup de fintech, disse que desencorajou o pedido de um funcionário para se mudar de um país para outro por um ano inteiro, mas o autorizou a morar na Espanha por seis meses. A supervisão da Estimize de sua equipe já é "tênue", e ele se preocupou com a capacidade do funcionário de se concentrar em meio a tantas mudanças, explicou Drogen. "Você trabalha melhor quando está em um só lugar."

Também há problemas com o visto. Em anos anteriores, os nômades digitais cruzavam e descruzavam as fronteiras para evitar ficar tempo demais em um só lugar. Isso não está tão fácil em meio a uma pandemia que fechou fronteiras.

Neste verão boreal, Katie Jacobs Stanton, investidora de capital de risco que mora em Los Altos, na Califórnia, viu a chance para um novo começo. Com dois filhos na faculdade e outro em um retiro sabático, ela estava prestes a ver a casa ficar vazia. Seu pai morrera de Covid, e ficar sozinha em casa, especialmente em meio aos incêndios florestais da Califórnia, era muito deprimente. Imaginando que poderia encontrar investimentos de risco e fechar negócios estando em qualquer lugar, decidiu tirar um ano sabático por conta própria.

Em agosto, Jacobs Stanton doou a maior parte de seus pertences, comprou um Tesla e se preparou para pegar a estrada com Taco, seu golden retriever. "Eu tinha essa imagem de uma paisagem gloriosa, linda e familiar dos Estados Unidos", comentou.

No entanto, encontrou uma realidade bastante diferente. Primeiro, seu Tesla foi roubado. (A polícia o recuperou.) Em seguida, sua primeira parada, Reno, foi árdua. "É uma cidade muito triste", disse ela. Em Tahoe, encontrou incêndios florestais. Em Bozeman, no estado de Montana, Taco adoeceu. Uma ida ao veterinário resultou em uma cirurgia de emergência; ele havia comido uma meia.

Então veio Kanye West. Em setembro, Jacobs Stanton teve uma conversa telefônica com o artista de hip-hop sobre uma possível iniciativa no mundo da música, que ele mencionou no Twitter. A verificação de seu nome fez daquele "um dos dias mais estranhos da minha vida", relembrou. Jacobs Stanton ficou sobrecarregada de mensagens, mas, pelo lado positivo, o episódio fez com que seus três filhos ligassem para ela para confirmar as informações.

Ela congelou ao acampar em Yellowstone e ficou tensa com as estradas geladas. Para piorar, sua filha pegou o coronavírus e Taco precisou de outra cirurgia. (Ambos se recuperaram.) Além de tudo isso, as pessoas das pequenas cidades que ela visitou não usavam máscara e ficavam bravas quando ela tocava no assunto.

No fim de outubro, ela já estava pronta para encerrar seu retiro. "Acho que só quero voltar para casa. Chega de viagens para mim", concluiu Stanton.

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