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Os dilemas do jazz nas lives

Pianista Chucho Valdés será a primeira atração internacional da série Blue Note Live Sessions, marcada para esta sexta

Jazz: estilo tem desafio de transmissões manterem qualidades das músicas (Jon Feingersh Photography Inc/Getty Images)

Jazz: estilo tem desafio de transmissões manterem qualidades das músicas (Jon Feingersh Photography Inc/Getty Images)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 21 de maio de 2020 às 15h38.

Última atualização em 21 de maio de 2020 às 15h39.

E o jazz? Essa forma de vida instrumental que habita as delicadezas do som mesmo quando a música se enerva. Como manter a sutileza dos silêncios e das euforias por meio de um vídeo no celular? Como produzir algo que não perca graves nem tenha seus arranjos dilacerados pelas limitações de um sistema de som magro? E como o músico pode seguir tentando estabelecer o contato de almas com a pessoa que o ouve sem vê-lo e sem senti-lo? As mesmas lives que têm impulsionado a produção da música cantada vale para o jazz? Muitas perguntas, algumas respostas e um consenso: o jazz não pode desaparecer no tempo do confinamento.

O pianista Chucho Valdés, em um movimento de lives que começa a despertar no jazz, será a primeira atração internacional da série Blue Note Live Sessions, marcada para esta sexta, 22, às 22h, no Blue Note Rio do YouTube. Chucho, um dos mais notáveis pianistas de jazz e de latin jazz de todos os tempos - os cubanos preferem usar o termo cuban jazz - vai fazer sua apresentação direto de Havana para onde embarca de Nova York nos próximos dias.

É um ato ainda raro entre os instrumentistas de jazz no mundo. Chick Corea tem feito lives quase diariamente em sua página do Facebook, somente ele e os três pianos de sua sala o que tem criado audiências cada vez maiores. "Gosto muito de vê-lo ali em sua sala. Eu entrei na casa de um músico que não era nada acessível", diz a produtora de artistas de música instrumental do Brasil, Cibele Bahia.

Chucho concorda que há perdas sonoras quase irreparáveis quando o som de um piano chega por meio de um aparelho celular, por mais avançado que ele seja, mas que as pessoas admiram o esforço do artista em chegar até elas. "Penso que as lives são a forma que temos hoje para chegar às pessoas em quarentena em todo o mundo. É muito difícil (manter a qualidade), mas a linguagem pode ser tão emotiva que compensa as falhas. Acredito que o público aprecia este esforço."

Ele diz que, das coisas que mais sente falta neste momento, estão justamente aquelas que alimentam o jazz ao vivo: "O contato direto que sempre tivemos, o beijo, o aperto de mãos. Temos perdido a comunicação pessoal, mas nunca perderemos a espiritual".

Seu compatriota Omar Sosa, expoente do piano cubano jazzístico com bastante ênfase nas culturas africanas da Ilha, pensa um pouco diferente com relação às lives. "Sem o contato visual, sem sentir a energia dos músicos a seu lado, sem um público à sua frente, o jazz toma outra dimensão."

Ele compara as lives às gravações em estúdio. "É como fazer uma produção musical em um estúdio frio, pode se perder a magia, a magia de sentir o que os músicos chamam de diálogo, porque não estamos tocando mais juntos. No fundo, penso que (fazer lives) seja um pouco egocêntrico e creio que, ao final, o que as pessoas procuram é uma posição midiática. E há muitas mentiras nisso. Esta é minha opinião pessoal."

Marcos Mazzola é o produtor que tem o direito de usar a marca Montreux Jazz Festival no Brasil. A segunda edição do festival ainda não teve data de remarcação, mas a sede na marca, na Suíça já anunciou que, pela primeira vez desde 1967, não irá realizar os concertos do evento que sedia todos os anos em Montreux. Mazzola estuda uma saída para ativar ações pela internet de uma forma que não esfrie o conceito do jazz. Por ora, seu discurso tem sido parecido com o de Omar Sosa.

"Na minha cabeça, o jazz é algo que precisa de muita participação de público, ainda que seja feito para 10 ou 30 pessoas. É preciso estar sobre um palco investir em uma interpretação criativa e não decorada, nem sempre ensaiada. O jazz se faz sobre improvisos. Não conheço, de tudo o que vi na vida, uma ação de jazz que não seja nesse ambiente coletivo." Ainda assim, ele diz que tem arquitetado uma maneira de fazer algo intermediário para não deixar o ano em que sediaria a segunda edição do Montreux no Rio em branco. "Eu tenho pensado muito nisso para saber qual caminho vamos adotar, mas meu sentimento é o de que você precisa ter gente ao teu lado para que aquilo saia de dentro de seu coração."

O empresário Luiz Calainho, um dos donos das filiais do Blue Note no Rio e em São Paulo, diz que, apesar da importância de se preservar todo o espírito do jazz, algo precisa ser feito. Ele conta com um patrocinador para colocar de pé ideias como as lives nacionais e internacionais, a Porto Seguro Cartões, que mantém também a casa de São Paulo. Antes de Chucho, foram feitas lives de Toquinho e do cantor Mark Lambert, em tributo aos Beatles. "Essas lives têm sido fundamentais para que possamos seguir adiante."

Muitos músicos têm se adaptado ao novo momento, girando o foco de suas vidas artísticas menos para o palco e mais para a composição e a produção de álbuns, enquanto o mundo segue fechado para desinfecção. Cibele Bahia, a produtora que trabalha com músicos como o violonista pernambucano Cainã Cavalcante e a pianista Deborah Levy, diz que testemunha casos de artistas aumentando seus fluxos criativos justamente no momento de distanciamento. Deborah, por exemplo, tem feito lives todos os dias, já lançou dois singles e tem um álbum programado para sair nos próximos meses, tudo produzido nos últimos 60 dias.

A monetização dessas ações ainda é uma incógnita. Sem empresários dispostos a colocar dinheiro em lives de música instrumental, o meio se reinventa aos poucos, como se voltasse em sua história para onde tudo começou. "O que estamos fazendo nesse momento é entregar as lives gratuitas. Precisamos testar a qualidade do som antes de darmos outro passo." Os ouvintes do jazz costumam ser mais criteriosos com relação às qualidades acústicas. "Por isso acredito que ainda estamos em uma fase de testes", diz Cibele.

Algumas pontuais iniciativas começam a testar uma espécie de formato que pode ser o primeiro a ser adotado quando as primeiras cabeças puderem sair às ruas. Em Brasília, um grupo de músicos, nem todos das frentes do jazz, se uniu, com todos os cuidados sanitários, e colocou de pé um festival chamado Salve o Som. Ele conta com doações de pessoas físicas e jurídicas e o apoio de espaço de dois sindicatos do Distrito Federal, o Sindilegis e do Sindjus-DF. Do que consegue com as arrecadações em dinheiro, 70% é dividida entre os artistas participantes do projeto, seus produtores e técnicos, e 30% vai para a compra de cestas básicas e máscaras.

A maioria das casas em São Paulo ainda está tímida. O Bourbon Street, em Moema, um dos lugares mais tradicionais do jazz, do blues e da soul music na cidade, inaugurado por BB King, segue confinado, sem reação diante da paralisia do mercado. O exemplo de Brasília pode servir como inspiração ao meio da música instrumental de outras praças para que se promova o reencontro do artista com o espaço de shows.

As casas obsoletas podem, assumindo a segurança sanitária com a força de um estatuto, reabrir seus espaços em fases que teriam, em um primeiro estágio as plateias vazias, apenas para o uso do espaço de palco, cenário e equipamento de som privilegiados e para a instalação das câmeras. Patrocinadores seriam atraídos com mais facilidades. E, em um segundo momento, quando o tempo dos contágios passar, recebendo público com distâncias controladas, reaprendendo a viver os grandes concertos de jazz.

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