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O paraíso de Black Mirror

Joel Pinheiro da Fonseca Black Mirror conseguiu, em três curtas temporadas, tornar-se o padrão-ouro para séries de TV com pretensões de seriedade artística e filosófica. Explorando a interação entre a natureza humana e futuros próximos nos quais as tecnologias de comunicação estarão um pouquinho mais avançadas, cada episódio nos apresenta um reflexo tenebroso de nós […]

SAN JUNIPERO: talvez a única felicidade de que sejamos capazes seja a felicidade limitada e finita que vem sempre acompanhada de sofrimento e expectativa / Reprodução

SAN JUNIPERO: talvez a única felicidade de que sejamos capazes seja a felicidade limitada e finita que vem sempre acompanhada de sofrimento e expectativa / Reprodução

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Da Redação

Publicado em 4 de novembro de 2016 às 17h37.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h45.

Joel Pinheiro da Fonseca

Black Mirror conseguiu, em três curtas temporadas, tornar-se o padrão-ouro para séries de TV com pretensões de seriedade artística e filosófica. Explorando a interação entre a natureza humana e futuros próximos nos quais as tecnologias de comunicação estarão um pouquinho mais avançadas, cada episódio nos apresenta um reflexo tenebroso de nós mesmos e nossas prioridades na era das redes sociais. Olhamos a nós mesmos pelo espelho negro, que é a tela desligada dos smartphones – hoje uma extensão de nosso corpo e nossa personalidade. E a imagem que vemos é de arrepiar.

Mas há uma exceção. O quarto episódio da terceira (e mais recente) temporada, San Junipero, é único em pintar um quadro otimista do uso da tecnologia de simulação da experiência em nossas vidas. Neste episódio, a humanidade conseguiu produzir, pela via da simulação da experiência e da reprodução da consciência humana, o Céu com o qual a humanidade sempre sonhou: a felicidade eterna que as religiões prometem depois da morte, com o bônus de que a possuímos com a ciência e não com a incerteza da fé.

O episódio San Junipero é o nome de um mundo virtual para o qual a consciência de qualquer um pode ser transportada. Uma linda cidade litorânea americana, onde é sempre verão e as pessoas estão sempre felizes, dançando, namorando, celebrando, assistindo o pôr-do-sol… Nesse mundo, todos têm o corpo do auge de sua juventude, estão bem-humorados e, de quebra, ainda podem escolher a década em que a cultura local (músicas, roupas, filmes, etc.) se mostrará. Na prática, existem incontáveis San Juniperos sendo geradas por um grande servidor, cada qual habitada ou frequentada por alguns milhares de pessoas.

Há duas maneiras de se chegar a San Junipero. Na versão temporária, a pessoa pode, em vida, se conectar ao servidor e passar, semanalmente, períodos de 5 horas em uma San Junipero na década de sua escolha (há uma lei que regula o uso para evitar que seres humanos abandonem o mundo real pelos deleites do virtual). Na versão definitiva, a pessoa, no momento da morte, pode ter sua consciência carregada em um chip que, doravante, estará perpetuamente conectado a San Junipero, tornando-a um residente da cidade – contando ainda com a opção de, se um dia quiser, desconectar-se de vez e abraçar o vazio da inexistência.

O enredo do episódio trata de duas mulheres, Kelly e Yorkie, que se conhecem em uma San Junipero dos anos 80 e se apaixonam. No mundo real, ambas são idosas, e Yorkie está bem perto da morte, preparando-se para entrar nessa nova fase de sua existência. Depois de alguns percalços para aceitarem seu relacionamento e para convencer Kelly a passar a eternidade na simulação (em vez de acompanhar o marido e filha que enfrentaram a morte do jeito antigo), as duas realizam a passagem e terminam o episódio celebrando aquela história de amor que durará por todos os séculos dos séculos – ou enquanto os servidores humanos existirem.

Parece um final perfeito. A trilha sonora dos anos 80 transmite emoção e nostalgia para nos deixar desejosos daquela eternidade. Mas por trás do sol de San Junipero há muitas perguntas que ficam sem resposta.

Qual a felicidade possível em um mundo no qual todos os dias são iguais? Em que nada acontece? Em que não existe trabalho, ou pelo menos a necessidade de trabalho, posto que todas as necessidade estão atendidas? Em que ninguém tem filhos, nem envelhece? É um mundo, em última análise, sem história. E, portanto, mal adaptado à psicologia humana, que está sempre projetando, fazendo planos e olhando para trás para se comprazer na distância percorrida.

Um grande amor é fonte de muita felicidade, sem dúvida. Mas fora das idealizações adolescentes, é algo que precisa de mais do que apenas a companhia do outro para durar e ser nutrido. Sem filhos e sem o espectro da morte, o amor perde sua urgência. E o sexo, por mais criativo que seja, também logo se torna monótono. A esse respeito, uma quantidade considerável de pessoas se entrega ao clube noturno chamado The Quagmire, onde tudo é permitido (leia-se: sexo e violência) e no qual os frequentadores, decerto entediados, buscam, na falta de algum sentido maior, excitar seu prazer de alguma maneira extrema.

Não há projetos possíveis na cidade virtual. Pesquisa científica não pode haver, pois não existe uma reprodução da física do mundo real. Todas as regras da simulação são constantemente quebradas para garantir a vida, a saúde e a alegria dos moradores e até a integridade do cenário. Um espelho é quebrado e, no momento seguinte, está inteiro. Yorkie veste roupas comuns e, no instante seguinte, por um mero ato da vontade, aparece com vestido de noiva. Isso funciona para uma noite de sonho, não para um mundo que incite nossa curiosidade e exija todos os nossos poderes mentais para ser, muito lentamente, desvendado.

Tampouco há notícias sobre outros países, as grandes narrativas dos povos, nem nada do tipo. Não existe mundo fora daquela cidadezinha idílica. Na melhor das hipóteses, dá para saltar de uma época para outra, acompanhando, com uma década de distância, as modas e estilos musicais do mundo real. Por algum motivo, isso não parece muito satisfatório como passatempo para a eternidade.

Embora a ideia de um Céu eterno é um lugar-comum na tradição cristã que engendrou nossa civilização, sempre tivemos dificuldade em imaginar como ele seria. Seguindo a senda da filosofia grega, chegou-se à ideia de que o Céu existe fora do tempo, isto é, da mudança. O espírito encontra na contemplação da natureza divina – que para ele significa o ápice do exercício de sua capacidade intelectual – um êxtase imutável e completo. É o tipo de perfeição para inteligências puras, espíritos racionais com pouca semelhança com este bicho-homem que efetivamente somos e cuja estrutura psicológica determina nosso prazer e nossa dor.

San Junipero pinta um outro Céu possível, mas talvez todas as possibilidades concebíveis fiquem muito aquém do nosso desejo de uma felicidade perfeita, que provavelmente carrega consigo alguma impossibilidade intrínseca. Mesmo o melhor dos mundos imagináveis – viver em um lugar rico e complexo como o nosso mas sem nenhum dos sofrimentos que ele nos causa – parece pouco. O que dizer, então, de um mundo que é uma reles simulação bastante limitada da realidade? Talvez a única felicidade de que sejamos capazes seja a felicidade limitada e finita que vem sempre acompanhada de sofrimento e expectativa. Onde não há contrariedade e nem esperança do que ainda não se concretizou, não há felicidade. San Junipero pode agradar por alguns anos, mas logo estaremos nós também no The Quagmire para, em seguida, puxar o plugue e mergulhar no além.

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