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O mundo contra os cigarros eletrônicos e a Juul

A empresa foi recebida com um feroz sentimento antivaping e uma enxurrada de novas restrições aos cigarros eletrônicos, ou proibições expressas

Loja de cigarros eletrônicos em Jacarta, Indonésia: Juul enfrenta resistência no mundo (Ulet Ifansasti/The New York Times)

Loja de cigarros eletrônicos em Jacarta, Indonésia: Juul enfrenta resistência no mundo (Ulet Ifansasti/The New York Times)

Guilherme Dearo

Guilherme Dearo

Publicado em 19 de abril de 2020 às 07h00.

Última atualização em 19 de abril de 2020 às 07h00.

Em janeiro de 2019, o presidente da Altria, Howard A. Willard III, voou para o Vale do Silício, na Califórnia, para falar com executivos da Juul Labs, logo após ter assinado um acordo para que a gigante do tabaco pagasse cerca de US$ 13 bilhões por uma participação de 35 por cento na popular empresa de cigarros eletrônicos. Com a crescente revolta pública por causa da contribuição da Juul para a epidemia do vaping entre adolescentes, ele expôs sua visão para que a empresa continuasse a prosperar.

"Acredito que, em cinco anos, 50 por cento da receita da Juul será internacional", disse Willard aos 200 executivos reunidos no Four Seasons em East Palo Alto.

Kevin Burns, executivo-chefe da Juul na época, interrompeu: "Eu disse à equipe que conseguisse isso em um ano!"

Muitas pessoas na plateia deram risada, mas, um ano depois, ninguém está rindo.

Quando as grandes empresas americanas de tabaco começaram a se sentir pressionadas décadas atrás, encontraram novos mercados e regulação mais amigável no exterior. Os esforços da Juul para seguir o mesmo manual foram incrivelmente malsucedidos.

A empresa foi recebida com um feroz sentimento antivaping e uma enxurrada de novas restrições aos cigarros eletrônicos, ou proibições expressas, em vários países. Como resultado, seus ambiciosos planos internacionais entraram em colapso.

A Juul foi expulsa do mercado na China no fim do ano passado ,depois de apenas quatro dias. A empresa teve de abandonar os planos para a Índia depois que o governo de lá proibiu todos os cigarros eletrônicos. Tailândia, Singapura, Camboja e Laos também fecharam a porta para os cigarros eletrônicos. Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte ordenou a prisão de qualquer um que esteja fumando cigarro eletrônico fora das áreas designadas para fumantes.

A Juul adiou o lançamento nos Países Baixos e saiu de Israel. Na Coreia do Sul, seu número de clientes despencou depois que o governo emitiu avisos de saúde terríveis sobre cigarros eletrônicos e a empresa reduziu sua distribuição lá.

"Foi uma reação extraordinariamente rápida. Países que você não descreveria necessariamente como nações progressistas em matéria de saúde pública estão atacando esse novo produto para que não seja incorporado à sua cultura, como aconteceu com os cigarros", afirmou Kathleen Hoke, diretora da Rede de Direito em Saúde Pública da Universidade de Maryland.

Mesmo a Indonésia, que não tem restrições ao vaping e conta com uma das maiores porcentagens de fumantes do mundo, não deu certo para a Juul. No mês passado, a empresa anunciou que pararia de enviar seus dispositivos e cápsulas de nicotina para lá.

Autoridades de saúde pública no exterior temem a mesma epidemia de vaping entre os jovens que foi anunciada nos Estados Unidos. Embora a Juul tenha parado de vender suas cápsulas de nicotina com sabor de frutas e doces nos EUA antes da proibição nacional, isso ainda não foi feito no exterior, onde ela oferece sabores como hortelã, manga, creme, amora e, até recentemente, maçã. A empresa informou que vai parar de produzir o de creme.

A preocupação com os produtos piorou após um surto de doença pulmonar grave relacionada ao vaping no verão passado, embora a grande maioria dos casos tenha sido ligada ao THC da maconha, e não aos produtos de nicotina como os da Juul.

Recentemente, dois altos executivos do negócio global da Juul renunciaram, antes da reestruturação dessa divisão. Ainda assim, a empresa insiste que uma presença global continua sendo parte de sua estratégia.

"Estamos comprometidos em avançar no potencial redução de danos em longo prazo para fumantes adultos, ao mesmo tempo que combatemos o uso entre menores de idade. Temos, portanto, revisado a melhor maneira de redefinir as operações locais caso a caso", disse Joshua Raffel, porta-voz da Juul.

É improvável, porém, que o ceticismo e a ira entre reguladores e defensores da saúde pública no exterior se dissipem rapidamente.

"Suas perspectivas são certamente muito reduzidas em comparação com um ano atrás. A forma como estavam se expandindo em alguns desses mercados estava causando problemas, não apenas dentro desses próprios mercados, mas também se refletindo nos Estados Unidos. Nos EUA, crescia a sensação de que essa era uma empresa que se comportava de forma imprudente", explicou Shane MacGuill, chefe de pesquisa de tabaco da Euromonitor International.

Coreia do Sul

A Coreia do Sul parecia especialmente promissora para a Juul. A nação rica tem 51 milhões de habitantes, seus cidadãos são ávidos consumidores de novas tecnologias, especialmente produtos do Ocidente, e mais de um terço dos homens fumam cigarros.

Os dispositivos elegantes da Juul desfrutaram de alguns meses de rápido crescimento depois de chegar ao mercado sul-coreano em maio passado, rapidamente transformando a empresa em uma das principais marcas de vape.

Mas logo surgiram fortes ventos contrários. Para começar, um imposto preexistente sobre todos os produtos e-líquidos – um valor comparável ao imposto sobre cigarros – tornou a Juul cara para muitos consumidores. E, como a lei sul-coreana restringe a quantidade de nicotina permitida, as cápsulas da Juul vendidas lá tinham de conter menos de um por cento de nicotina, em comparação com os três por cento e cinco por cento disponíveis nos EUA. Mesmo antes do aviso do governo, as vendas haviam caído bruscamente.

Os baixos níveis de nicotina se mostraram frustrantes e caros para os usuários sul-coreanos. Choo Sang-Chul, de 42 anos, chegou a experimentar o Juul, mas depois mudou para o IQOS, o dispositivo de tabaco aquecido feito pela Philip Morris International.

"Quando uso um cigarro eletrônico, quero uma experiência semelhante a fumar um cigarro, mas o Juul não oferece isso. Não senti o mesmo efeito", disse ele. (O IQOS é distribuído nos EUA pela Altria por meio de um acordo com a Philip Morris International.)

Os problemas da Juul se multiplicaram em outubro, depois que autoridades de saúde sul-coreanas, motivadas pelo surto de doenças pulmonares nos EUA, emitiram um alerta sobre os e-líquidos, dizendo que ofereciam um risco de "danos pulmonares graves e até mesmo de morte".

Um mês depois, o exército sul-coreano proibiu e-líquidos em todas as instalações militares. Em dezembro, as autoridades de saúde do país anunciaram os resultados dos testes em uma série de produtos de vaping, incluindo o sabor de maçã anteriormente feito pela Juul, e disseram que em alguns produtos haviam detectado vestígios de acetato de vitamina E, o composto que as autoridades de saúde dos EUA ligaram à maioria dos casos de lesões pulmonares.

A Juul e outras empresas de cigarros eletrônicos dizem que não usam acetato de vitamina E em seus produtos e as autoridades de saúde dos EUA só o encontraram em produtos de canábis. No entanto, as maiores redes de lojas de conveniência da Coreia do Sul, os principais pontos de venda da Juul, removeram dois ou três dos cinco sabores da empresa das prateleiras. Muitas lojas menores seguiram o exemplo.

Da noite para o dia, os avisos de saúde puseram muitos sul-coreanos contra o vaping.

Índia

Há dois anos, a Juul via a Índia como seu mercado potencial mais lucrativo. Em comentários sobre seus planos de entrada no país, a empresa de cigarros eletrônicos observou que a Índia tem 106 milhões de fumantes adultos e usuários de tabaco de mascar – pelo menos 29 por cento da população adulta – e uma classe média crescente. A Índia tem cerca de um milhão de mortes relacionadas ao tabaco por ano, juntamente com 80 por cento a 90 por cento dos casos de câncer bucal no mundo.

A Índia também tem a maior população mundial de jovens entre 15 e 24 anos, com 249 milhões. Nem mesmo a China tem mais habitantes nessa faixa etária.

Isso deixou Vandana Shah, diretora de programas do sul da Ásia para a Campanha para Crianças Livres de Tabaco, desconfiada.

"Que problema a Juul tenta resolver? Não o dos fumantes de bidi", afirmou Shah, referindo-se aos pequenos cigarros feitos a mão, populares na Índia. Ela acredita que quem quer fumar sem tabaco e gasta 20 ou 15 centavos por dia não vai optar pela Juul.

Os dispositivos e as cápsulas da Juul começaram a chegar ao mercado indiano no fim de 2017 e início de 2018, mas a empresa tinha um lançamento oficial planejado. Durante esse tempo, no entanto, seus produtos podiam ser facilmente comprados em lojas em cidades como Nova Déli, Mumbai e Bangalore.

O fim veio rapidamente. Em novembro, na época em que a Juul esperava promover seu lançamento, o primeiro-ministro Narendra Modi assinou uma lei proibindo a fabricação e venda de cigarros eletrônicos.

Indonésia

Com 57 milhões de fumantes e quase nenhuma regulamentação para o tabaco, a Indonésia era uma grande oportunidade para a Juul, que começou a vender seus produtos lá em meados do ano passado.

Embora procurasse posicionar seus produtos como dispositivos para largar o cigarro, os defensores do tabaco na Indonésia dizem que a realidade era diferente. Muitos clientes da Juul fumam cigarros normais e eletrônicos, disseram eles, e um número preocupante de compradores são adolescentes que nunca haviam fumado.

"Se a ideia é a redução de danos, por que a Juul está vendendo seus produtos para crianças?", perguntou o dr. Mouhamad Bigwanto, um antitabagista.

Bigwanto reagiu à notícia em fevereiro da saída da Juul com ceticismo, dizendo que temia que a venda de produtos da empresa simplesmente passasse a ser feita on-line, onde um mercado de cápsulas piratas já floresce.

"É uma boa notícia, porque agora as cápsulas da Juul são vendidas em lojas ao lado dos doces", disse ele.

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