Uísques japoneses (Brittainy Newman/The New York Times)
Daniel Salles
Publicado em 25 de outubro de 2020 às 06h14.
Última atualização em 26 de outubro de 2020 às 19h52.
Mamoru Tsuchiya está preocupado com o futuro do uísque japonês. As vendas estão crescendo, mas há um problema: uma grande quantidade da bebida não é realmente fabricada no Japão, disse Tsuchiya, um dos principais especialistas em uísque daquele país.
Boa parte não é nem mesmo uísque.
"Há muitas situações em que você pode chamá-lo de uísque japonês, mas estão usando uísque escocês ou canadense", afirmou ele.
A demanda global por uísque japonês explodiu na última década – garrafas de Yamazaki 18 Year Old, que antes encalhavam a US$ 100, são vendidas por cinco vezes o preço e agora são quase impossíveis de encontrar. O valor das exportações para os EUA cresceu quase 50 por cento em 2019 em relação ao ano anterior, de acordo com o Conselho de Bebidas Destiladas dos Estados Unidos.
Mas, ao contrário da maioria dos países produtores de uísque, o Japão tem poucas regras sobre o que pode ser considerado uísque e muito menos sobre o que o torna japonês. As empresas podem importar bebidas alcoólicas a granel, engarrafá-las e rotulá-las como "uísque japonês", e exportá-las. Podem exportar shochu envelhecido feito de grãos, como arroz ou cevada, para ser vendido nos EUA como uísque. Algumas das chamadas destilarias nem sequer fazem destilação; importam o uísque a granel e contratam outra empresa para engarrafá-lo.
É um Velho Oeste regulatório do qual tanto as destilarias estabelecidas quanto as startups se aproveitam para alimentar a crescente demanda global. É também um potencial desastre em matéria de relações públicas: a internet já está repleta de artigos tentando desmistificar o uísque japonês.
Enquanto muitas das principais marcas, como a Yamazaki e seu 18 Year Old, afirmam que seus produtos são feitos exclusivamente no Japão, outras se recusam a dizer.
"Isso coloca a reputação do uísque japonês em risco", disse Makiyo Masa, fundador da varejista on-line Dekanta.
Em setembro, Tsuchiya, que dirige uma organização de defesa chamada Centro de Pesquisa de Uísque do Japão, propôs um conjunto de regras para o uísque japonês, incluindo a exigência de que seja destilado no Japão. As regras seriam voluntárias, mas ele planejava usar a Competição de Uísques e Destilados de Tóquio 2020, que ele dirige, como base: apenas produtos que atendessem aos seus critérios poderiam participar como "uísque japonês".
Tsuchiya disse ter recebido apoio da maioria da indústria de destilação, bem como da Associação Japonesa de Produtores de Destilados e Licores, uma agência financiada pelo setor e chancelada pelo governo, que ajuda a definir os regulamentos nacionais.
Mas, por causa da pandemia do coronavírus, a concorrência e as regras propostas por Tsuchiya estão em compasso de espera. Enquanto a indústria e os consumidores ficam de olho para ver o que acontece a seguir, um novo debate está em andamento: o que é o uísque japonês, afinal?
A abordagem regulatória laissez-faire do Japão está intimamente ligada, pelo menos em parte, à sua complicada história com o Ocidente.
Seu primeiro contato oficial com o uísque ocorreu em 1853, quando o comodoro Matthew Perry, durante sua primeira visita ao Japão, presenteou seus anfitriões com uísques escocês e americano. A bebida foi um sucesso na corte imperial, e o presente se tornou uma lembrança definitiva de um encontro transcultural marcante.
Como parte de seu impulso subsequente para imitar o Ocidente, o Japão da era Meiji incentivou a produção de versões domésticas da bebida. Os destiladores japoneses frequentemente usavam batata-doce, que era abundante, mas produziam um destilado muito diferente daquele feito com cevada, milho e centeio usados na Escócia e nos EUA.
"Desde o primeiro dia, o uísque japonês não era uísque como o resto do mundo entende", observou Liam McNulty, que escreve sobre uísque e vive em Tóquio. Ninguém pensou muito em defini-lo, contou ele, já que era inteiramente para consumo doméstico. O direito de se orgulhar de ter uma indústria de uísque local e qualquer receita fiscal que fosse gerada eram mais importantes do que a precisão do produto final.
As primeiras destilarias japonesas modernas de uísque, incluindo a Yamazaki, só abriram na década de 1920. Embora fossem modeladas em operações escocesas, muitas vezes produzindo bebidas de alta qualidade, elas pouco fizeram para mudar o caráter geral do uísque japonês, que, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, era destinado aos assalariados à procura de uma bebida rápida após o trabalho.
O governo japonês introduziu definições formais para o uísque doméstico em 1989, mas até então a indústria era dominada por algumas grandes empresas de destilação que queriam manter as regras frouxas. Após 1989, por exemplo, o uísque vendido no mercado interno deveria conter pelo menos dez por cento de uísque de malte envelhecido; o resto poderia ser álcool não envelhecido, tipicamente feito de melaço importado.
"A falta de regulamentação beneficia os grandes produtores. Se isso fosse uma desvantagem para eles, as regras seriam rapidamente implementadas", disse Stefan Van Eycken, autor de "Whisky Rising: The Definitive Guide to the Finest Whiskies and Distillers of Japan".
Tanto interna quanto internacionalmente, o interesse pelo uísque japonês começou a aumentar no início dos anos 2000, crescendo bastante nos 15 anos seguintes, quando as marcas premium do setor, como a Hibiki e a Yamazaki, receberam aclamação da crítica global. Mas as destilarias não tinham produtos totalmente envelhecidos para atender à demanda, o que levou muitas marcas estabelecidas e startups a começar a comprar a granel do exterior.
A indústria japonesa de uísque pode ser opaca, por isso é difícil saber quais destilarias dependem de fontes estrangeiras. Ainda assim, analistas apontam para o rápido crescimento das exportações de uísque escocês e canadense para o Japão nos últimos anos, mesmo que as vendas no varejo desses tipos de uísque permaneçam inalteradas – o que mostra que a maior parte dos destilados importados está sendo comprada por destilarias e renomeada como japonesa.
Algumas destilarias estão jogando às claras, rotulando seus uísques de "misturas mundiais", o que significa uma combinação de produtos importados e domésticos, explicou Flavien Desoblin, que oferece várias dessas garrafas em seus dois bares de uísque da cidade de Nova York, o Brandy Library e o Copper and Oak.
"Acredito que é um grande primeiro passo. Já que temos de pagar muito por qualquer uísque que venha do Japão, precisamos ser informados da verdade", comentou Desoblin.
Tsuchiya escreveu suas regras buscando ainda mais. Elas exigiriam que as destilarias usassem apenas grãos no mosto, fermentando-o com levedura (o shochu usa um processo diferente), que o produto fosse inteiramente destilado no Japão e que depois passasse pelo menos dois anos em um barril de madeira.
"Precisamos de dois anos, em vez de três como na Escócia, porque no Japão temos um clima mais temperado e o uísque pode envelhecer mais rápido", observou ele.
Até agora, as maiores empresas japonesas se disseram receptivas à proposta de Tsuchiya. Mas alguns especialistas questionam se a indústria vai acabar por apoiá-la. O uísque japonês pode ter ganhado um número global de seguidores, mas seu maior mercado está entre os bebedores domésticos, que estão mais preocupados com o preço do que em prestar atenção aos detalhes técnicos.
Van Eycken se pergunta se os produtores querem criar uma paisagem polarizada ao explicar que o uísque japonês, seu ganha-pão, não é o que as pessoas pensavam ser. "Podem me chamar de cético, mas, do ponto de vista dos negócios, isso é bem improvável."