ANTOINE WESTERMANN: o chef reconhece que apesar da intensa pressão para manter as honrarias, devolvê-las também é uma tarefa complicada (foto/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 19 de fevereiro de 2018 às 18h37.
Última atualização em 19 de fevereiro de 2018 às 18h37.
Paris – Sexta-feira no restaurante Ken Kawasaki, no bairro de Montmartre em Paris. Na pequena cozinha, cercada pelo balcão de madeira onde estavam instalados os 15 clientes da noite, a equipe de três cozinheiros preparava os pratos da semana. Até que o telefone tocou. Do outro lado da linha, alguém do Guia Michelin procurava o chef japonês Ryohei Kawasaki, de 28 anos. Ele imaginou se tratar de um pedido de reserva, mas era muito melhor do que isso: o restaurante havia ganhado uma estrela no Guia Michelin 2018. “Ok”, respondeu Kawasaki ainda em choque. Há pouco mais de um ano seu pai, Ken Kawasaki, abriu o restaurante e confiou ao filho a missão de criar os pratos que representassem a fusão França-Japão. Deu certo. Naquela noite, os clientes ganharam uma taça de champanhe para celebrar com o a equipe a mais nova conquista gastronômica.
Ken Kawasaki foi um dos 50 restaurantes franceses a receber a primeira estrela na 118ª edição do Guia Michelin, a mais tradicional publicação de avaliação de restaurantes do país. Os laureados foram anunciados no início do mês em uma glamourosa festa na Seine Musicale, nova casa de concertos nos arredores de Paris, em um evento que reuniu mais de 200 chefs além do primeiro-ministro Édouard Philippe. Além dos 50 estabelecimentos a receber a primeira estrela, outros cinco ganharam a segunda e apenas dois alcançaram a honra maior, a terceira estrela Michelin. São eles os restaurantes la Maison des Bois à Manigod, do chef Marc Veyrat, e o restaurante do Hôtel du Castellet, comandado por Christophe Bacquié. No total, contando com os restaurantes já reconhecidos, a última edição do guia estrela 621 cozinhas.
No processo de avaliação, os estabelecimentos são visitados por até 12 vezes, se necessário. Os críticos analisam a consistência da qualidade dos pratos durante todas as visitas, assim como a personalidade da cozinha, a perfeição do cozimento dos ingredientes, a qualidade dos produtos e a relação custo/benefício. A partir daí eles decidem se o restaurante merece ou não uma estrela, sendo que uma estrela significa “uma cozinha muito boa em sua categoria”, duas estrelas são para “uma cozinha excelente, que merece o deslocamento”, e três estrelas se referem a uma “cozinha excepcional, que compensa a viagem”.
O impacto Michelin
Seria de se imaginar que a relevância de um guia gastronômico fosse menor em tempos em que blogs gastronômicos pipocam na internet e sites como TripAdvisor, The Fork e Yelp servem para muitos como base para a escolha de restaurantes. Ainda mais quando o modo de avaliação da publicação é alvo de críticas constantes, que com frequência o acusam de privilegiar a chiqueza do restaurante à gastronomia.
Um dos críticos mais ferrenhos ao guia é o inglês Jonathan Meades, que por 15 anos foi o crítico gastronômico do New York Times em Londres. Hoje morando na França, Meades acusa o guia de premiar cozinhas pretensiosas que seguem o roteiro de “servir uma dúzia de amuse-bouches (petiscos chiquetosos) antes da entrada”, e chef que fazem pratos de apresentação milimetricamente pensada para lembrar “pinturas ruins dos anos 1930”. “O guia é inútil. Na verdade, é pior que inútil: ele encoraja chefs a gastar uma fortuna com a decoração do restaurante e ainda coloca uma pressão enorme nas pessoas, é horrível”, diz a Exame.com. Meades conta que seus restaurantes preferidos no país não são estrelados, e ele os prefere justamente pelo serviço simples e pela comida de verdade. “O grupo Michelin sabe é fazer pneus, eles deveriam se focar nisso”.
No entanto, é inegável que receber a honraria do guia muda em muito a realidade de chefs e de restaurantes. No restaurante Ken Kawasaki, por exemplo, o telefone não para de tocar. Durante a entrevista, pelo menos dez pessoas ligaram para fazer reservas, mas só havia horários disponíveis para março. “Temos uma lista de espera com vinte nomes para hoje à noite”, diz Carla Liberati, jovem italiana de 22 anos responsável por criar as sobremesas do cardápio. Ela conta que eles precisam tirar o telefone do gancho durante o serviço para conseguir trabalhar.
Mais ao leste de Paris está outro restaurante que acaba de ganhar a sua primeira estrela, o Table. O restaurante foi aberto há quatro anos por Bruno Verjus, um médico de formação que se tornou empresário no setor de embalagens e acabou largando tudo para se dedicar à gastronomia. Hoje com 58 anos, Verjus conta que se sentiu surpreso ao receber a ligação anunciando a estrela. “Eu não fiz nenhum curso na área de gastronomia, nem trabalhei em outros restaurantes premiados. Além disso o Table não é um restaurante do estilo que eles gostam, com mesinhas pequenas decoradas por florzinhas pequenas”, diz. No restaurante, o menu muda um pouco todo dia, porque os pratos dependem do que seus fornecedores lhe trazem: ele trabalha com mais de 300 produtores orgânicos, entre agricultores, pescadores, pecuaristas e cultivadores de cogumelos. Verjus também percebeu uma grande diferença em termos de frequentação graças à nova conquista. “Sempre tivemos uma boa base de clientes, mas eles nos conheciam muito pelo boca-a-boca, geralmente eram pessoas que moravam aqui perto. Agora, Paris inteira nos conhece”.
A honraria Michelin pode trazer mais clientes e prestígio, mas a verdade é que ter uma estrela também significa possuir algo precioso que pode ser retirado a qualquer instante.
Foi essa pressão que levou Sébastian Bras, chef do restaurante Le Suquet, a pedir que as suas três estrelas fossem retiradas e que o estabelecimento sequer fosse citado no guia 2018. Por uma transmissão via Facebook Live, Bras disse: “No silêncio e na solidão, nós só escutamos o essencial. Hoje, com 46 anos, eu quero dar um novo sentido à minha vida e redefinir o que é essencial”. O chef relembrou a história do restaurante assim como todas as conquistas que lhe renderam muita satisfação. “Sim, muita satisfação, mas também muita pressão, ocasionada pela distinção das três estrelas que nos foram dadas em 1999. (…) Nós achamos que conseguimos superar o desafio, mas hoje queremos ter o espírito livre para continuar serenamente, sem tensão, a dar vida a nossa casa”.
Bras não é o primeiro chef a abrir mão das estrelas. Em 1996, o chef Joël Robuchon disse não querer mais a distinção por buscar um estilo de vida mais saudável. Em uma entrevista mais de uma década depois, ele contou que estava obcecado pela busca da perfeição, que ele passava dias incomodado quando a qualidade de um produto não correspondia às suas expectativas. “Eu precisava dar um basta a essa vida estressante, tinha medo de acabar como os meus colegas de profissão Alain Chapel, Jean Troisgros, Jacques Pic, mortos prematuramente por terem exagerado”, disse. Quase uma década mais tarde, o jornalista francês David Pujadas anunciava a “rebelião da alta gastronomia francesa contra a pressão das estrelas”, referindo-se à renúncia pela parte de Alain Senderens, do restaurante Lucas Carton. O chef disse em frente as câmeras querer abrir um novo restaurante “sem frescura, menos pretencioso”, onde ele serviria pratos “menos caros, mas muito bons”.
No ano seguinte, fois a vez de Antoine Westermann, do restaurante Buerenhiesel, devolver as suas três estrelas. Fazia sete anos que o chef comandava o restaurante com o seu filho Eric, mas chegou um momento em que ele percebeu que precisaria se afastar para que seu filho tivesse a chance de criar seu próprio nome. “Não podia permitir que Eric continuasse sempre a minha sombra, por isso saí do Buerenhiesel e pedi para o guia retirar as minhas estrelas e recomeçar a avaliação do restaurante”, conta a Exame.com. O chef diz ser muito agradecido ao guia por tê-lo “colocado no mapa” em 1975, ao lhe conferir a sua primeira estrela (e aumentar em 40% o seu número de clientes), e reconhece que apesar da intensa pressão para manter as honrarias, devolvê-las também é uma tarefa complicada. “Os primeiros meses foram difíceis, não é fácil devolver um brinquedo que nos esforçamos tanto para ganhar, mas não me arrependo: hoje sei que a vida pós três-estrelas é bela também”.
Em 2008, Jean-Paul Lacombe se uniu ao grupo devido à “escolha pessoal” de transformar o restaurante Léon de Lyon em uma brasserie (um restaurante mais informal). No ano seguinte, Olivier Roellinger decide fechar seu restaurante Maison de Bricourt pela vontade de dedicar sua gastronomia a um “público maior, algo impossível em um restaurante três-estrelas”. Em 2009, o chef Marc Veyrat também devolve as estrelas do restaurante Auberge de l’Eridan por “motivos de saúde”.
Para alguns chefs, conseguir e manter as tão desejadas estrelas se torna quase que uma obsessão. Foi o caso de Bernard Loiseau, um dos chefs mais populares e midiáticos no país durante as décadas de 1980 e 1990, que conseguiu a sua terceira estrela em 1991. Em 2003, aos 52 anos, a notícia de seu suicídio chocou a França e gerou um debate sobre os guias de avaliação gastronômica no país. Isso porque, logo antes de sua morte, uma matéria publicada no jornal Le Figaro previa o “rebaixamento” do restaurante a duas estrelas. Documentos revelados anos depois mostraram que Derek Brown, então diretor do guia, havia prevenido o chef de que seu restaurante estava em risco pela “falta de alma e de personalidade na cozinha”.
Uma carta enviada pela mulher do chef, Dominique Loiseau, à Brown mostra a reação do chef ao aviso: “Depois de seu feedback, Bernard não parou de rever todo o cardápio com suas equipes, prato por prato, tempero por tempero, cozimento por cozimento. Nós compreendemos o seu aviso, e a partir de agora tudo será feito para subir o nível o mais rápido possível”. Em entrevista a Exame.com, Dominique conta que conseguir as estrelas era o grande objetivo de seu marido. “Tudo que Bernard fazia era mirando as estrelas. Por muito tempo nós nem colocávamos sal nas mesas do restaurante porque achávamos que o Guia veria isso como um sinal de que o tempero não saía perfeito da cozinha”, conta.
Depois da morte do chef, Dominique se tornou a diretora do grupo Bernard Loiseau, que hoje tem um hotel, cinco restaurantes (que totalizam cinco estrelas Michelin), dois spas e um bar de vinhos. Em 2016, o Guia Michelin retirou a terceira estrela do restaurante Relais Bernard Loiseau. Ela diz ter ficado “extremamente decepcionada” com a notícia, mas não se deixou abater. Naquele mesmo ano, o grupo decidiu trocar o nome de um de seus restaurantes em Paris, que deixou de se chamar Tante Marguerite e virou Loiseau Rive Gauche, e um novo chef foi contratado para renovar o cardápio. Maxime Laurenson teve carta branca para inovar, e deu certo: o chef, hoje com 31 anos, acaba de receber a sua primeira estrela Michelin. “Ainda não caiu a ficha”, diz Laurenson. “Receber uma estrela é ter a certeza de que tudo que eu fiz para chegar aonde estou valeu a pena”.
Mesmo com todas as críticas e com a nova concorrência dos sites e blogs gastronômicos, o Guia Michelin é uma das tradições que das quais os franceses não devem abrir mão tão cedo.