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Mangá surreal Dementia 21, de Shintaro Kago, é lançado no Brasil

Originalmente lançado no Japão entre 2011 e 2013, Dementia 21 tem 37 capítulos reunidos em sete volume

Dementia 21: o mangá está repleto de figuras estranhas como alienígenas, dentaduras ambulantes, gigantes e velhinhos com poderes paranormais (Divulgação/Divulgação)

Dementia 21: o mangá está repleto de figuras estranhas como alienígenas, dentaduras ambulantes, gigantes e velhinhos com poderes paranormais (Divulgação/Divulgação)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 3 de abril de 2020 às 12h14.

Os motivos para se travar guerras e a exploração do trabalho estão presentes em toda a obra do artista japonês Shintaro Kago. Sua produção mais icônica vem de um campo não tão popular, classificada como "ero guro nonsense", que explora o erotismo grotesco com figuras femininas dilaceradas. Ao pedir licença para essa violência sensual, o mangá Dementia 21, lançado no Brasil pela editora Todavia, é uma exceção no universo de Kago, mesmo que não deixe de tecer críticas à sociedade contemporânea e seus tabus.

Originalmente lançado no Japão entre 2011 e 2013, Dementia 21 tem 37 capítulos reunidos em sete volumes. A primeira edição da Todavia traz 17 capítulos em 280 páginas. Recheado de comicidade à primeira vista, o mangá está repleto de figuras estranhas como alienígenas, dentaduras ambulantes, gigantes e velhinhos com poderes paranormais. Sem esconder os contornos surreais, Dementia 21 carrega uma forte crítica à sociedade, a partir das relações de trabalho da protagonista, a jovem Yukie Sakai, uma cuidadora de idosos.

Funcionária bem-sucedida da empresa Green Net, Yukie inicia uma jornada que ganha tons de sonho, e pesadelo. Em cada capítulo, ela deve visitar a casa de seus clientes e receber boas avaliações pela prestação de trabalho. Conhecida no ramo pela excelência, ela serve sopas para os velhinhos, ajuda no banho e aplica medicação nos pacientes. O que parece uma atividade simples abre janelas para um universo perturbador e divertido. É a "paranoia elegante", como já foi chamado o estilo de Kago.

A trajetória do artista japonês nascido em 1969 tem seus pilares apoiados na reinvenção da história de seu próprio país. Em 1999, a Ohta Comics publicou uma coleção de histórias curtas de nome comprido, Shine! Greater East Asia Co-Prosperity, assinada por Kago, que resgata um movimento militar importante na história da Ásia do início do século passado.

Entre os anos 1930 e 1945, os militares do Império do Japão buscaram desenvolver uma campanha para criar um bloco de nações asiáticas, livres das potências ocidentais. O preço? Ser liderado pelos japoneses. O conceito da Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental, que está presente no título da obra de Kago, foi posto em prática pelo primeiro ministro japonês. O objetivo era unir, por meio de forte propaganda imperial, a região de Manchukuo, na Mandchúria, a China e algumas partes do sudeste asiático. Com o tempo, ficou provado que a empreitada dos japoneses serviu de fachada para manter o controle, explorar a região e manipular a economia.

Em Shine!, Kago escancara com traços chocantes os bastidores dessa campanha militar que pretendia beneficiar o Japão. Escrita no mesmo formato das histórias curtas de Dementia 21, a ficção científica de 1999 propõe uma história alternativa à Segunda Guerra Mundial. Nela, as nações combatentes descobrem uma raça de gigantes-mulheres que podem ser transformadas em armas biomecânicas, como tanques e submarinos.

Mais tarde, o autor retornou a esses seres em Super-Conductive Brains - Parataxis, em que as gigantes, sempre nuas, estão fundidas como máquinas na produção industrial e também presentes na sociedade, servindo como módulos de transporte, e tratadas como animais de estimação pelos humanos.

Essa marca erótico-grotesca da criação de Kago se dissolve, ao menos nos traços, em Dementia 21, exceto pelo mesmo humor cáustico que rodeia a protagonista. Em um dos capítulos, Yukie vai cuidar de uma paciente com um histórico misterioso. Agraciada com poderes mentais enquanto criança, a mulher preferiu reprimir suas habilidades. Com a velhice e o esquecimento, ela vai colocar risco a vida de quem está ao seu redor, e do mundo todo.

 

Em outra história, Yukie deve participar de um concurso para ser a melhor cuidadora de idosos. Após repetidas derrotas e a pressão da família, a jovem passa a frequentar um curso preparatório. O treinamento inclui carregar idosos por florestas atravessar rios e enfrentar jacarés, sem abandonar os clientes. Ao fim, a obsessão por cuidar transforma a garota em um monstro cuidador da terceira idade, com vocação de arma nuclear.

A coletânea também debate a realidade japonesa da moradia, em um capítulo sobre um gigantesco complexo para se alocar todos os idosos, e temas delicados como o suicídio, sempre mirando a crítica social. Ao acompanhar um cliente que deseja dar um passeio de carro, os dois seguem para a via exclusiva para idosos. O homem entediado ignora as leis e passa a circular em inúmeras vias: exclusiva para fugitivos, carros funerários, alcoólatras e pessoas que morrem enquanto dirigem.

Kago também quebra a quarta parede em sua trama no capítulo em que Yukie vai cuidar de um autor de quadrinhos independentes. É divertido ver a personagem sofrer duplamente as consequências de um autor que se acha acima do bem e do mal. Presa em uma narrativa que se repete, a jovem precisa entender os rumos do roteiro proposto por esse artista para se ver livre e, quem sabe virar dona da própria história.

Dementia 21
Autor: Shintaro Kago
Tradução: Drik Sada
Edit.: Todavia (280 págs., R$ 69,90 papel; R$ 39,90 ebook)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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