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Livro faz imersão no universo dos Mebengokre

Riquezas intangíveis de pessoas partíveis, de Vanessa Rosemary Lea, da Unicamp, sintetiza mais de 30 anos de pesquisas sobre povo indígena do Brasil central


	Os Mebengokre são um povo indígena do tronco Jê – pesquisadora evita chamar de Kayapó por considerar o termo preconceituoso e até racista
 (Antonio Cruz/ABr)

Os Mebengokre são um povo indígena do tronco Jê – pesquisadora evita chamar de Kayapó por considerar o termo preconceituoso e até racista (Antonio Cruz/ABr)

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Da Redação

Publicado em 24 de setembro de 2012 às 09h02.

São Paulo - Compreender o “outro”, o “diferente”, é o permanente desafio do antropólogo. Para superá-lo, além do repertório científico, é preciso desenvolver uma atitude intensamente receptiva, uma silenciosa capacidade de observação que possibilite ultrapassar a superfície dos entes e fenômenos para buscar as concatenações subjacentes que lhes conferem sentido. Tanto mais quando, como lembrou o antropólogo francês Pierre Bourdieu, a vida social não é regida por regras explicitadas verbalmente, mas por hábitos acumulados ao longo de incontáveis gerações.

O livro de Vanessa Rosemary Lea, Riquezas intangíveis de pessoas partíveis, é o testemunho desse desafio. Com suas quase 500 densas páginas, a obra é fruto de mais de três décadas de imersão da pesquisadora no universo material e imaterial dos Mebengokre, do Brasil central. Professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Lea teve apoio da Fapesp na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações.

Os Mebengokre, povo indígena do tronco Jê – que Vanessa evita chamar de Kayapó, por considerar o termo, literalmente, “parecido com macaco”, preconceituoso e até racista –, chamaram pela primeira vez a atenção da estudiosa britânica em 1971, quando, no auge da ditadura militar brasileira, sobressaíram-se na mídia devido à resistência à construção da estrada BR-080, cujo traçado cruzava seu território ancestral. “Foram suas atitudes orgulhosas que me atraíram”, afirma Lea.

A pesquisa propriamente dita foi iniciada em 1978, na aldeia Kretire, no Mato Grosso. E, ao longo dos anos seguintes, Vanessa visitou e hospedou-se em várias aldeias, residindo por sete meses consecutivos em território Mebengokre no biênio 1981-1982, quando foi adotada simbolicamente como “filha” pelo chefe Ropni Metyktire, que a mídia celebrizou com o nome de Raoni. Somando-se as várias estadias, o tempo de permanência da antropóloga entre o povo de sua eleição alcançou quase dois anos.

Instalados na fronteira da incorporação do território nacional pela formação social hegemônica, os Mebengokre têm sido impactados por várias e sempre controvertidas iniciativas de caráter “desenvolvimentista”: primeiro, a já mencionada construção da BR-080; depois, a base militar do Cachimbo, com instalações subterrâneas para a realização de testes nucleares; mais tarde, a expansão acelerada das lavouras de soja; agora, a implantação da hidrelétrica de Belo Monte.


Vanessa testemunhou a resistência altiva desse povo, mas também sua complexa assimilação dos valores da sociedade envolvente – como o crescente fascínio e a dependência em relação aos bens industrializados (nekretex), aos quais os antepassados (mekukamare) não tiveram acesso.

Lidar com os insistentes pedidos de “presentes” foi uma das peças do complicado quebra-cabeça que a antropóloga dispôs-se a montar. “Essa relação com os bens, materiais e imateriais, balizou minha pesquisa. E faz com que eu defina, resumidamente, o meu livro como uma arqueologia do conceito de riqueza entre os Mebengokre”, diz.

“Entendi que a Casa (com inicial maiúscula) é um elemento fundamental da sociedade Mebengokre. Ela não deve ser confundida com a mera habitação. Pois, enquanto a habitação é um ente físico, a Casa possui status equivalente ao de uma pessoa jurídica. Cada Casa, que pode ser formada por uma ou algumas habitações vizinhas, ocupa um lugar fixo no círculo que constitui a aldeia, localizado segundo a trajetória diurna do sol de leste para oeste. Cada Casa possui um acervo distintivo de nomes pessoais e prerrogativas hereditárias, consagrado pelos mitos. A separação física entre os membros, com sua eventual transferência para outras aldeias, não afeta a noção de pertencimento a uma determinada Casa”, explica Lea.

A pesquisadora enfatiza que as mulheres de cada Casa são sempre parentes uterinas. E que a transmissão dos nomes e prerrogativas da Casa sempre se dá por via matrilinear. É a linha uterina (feminina), e não a agnática (masculina), que rege a transmissão.

“No centro da aldeia fica o ngà, ou ‘casa dos homens’. No passado, o menino era retirado da Casa de sua mãe ao completar de 8 a 10 anos e levado para o ngà, lá residindo até ser reconhecido como adulto, ao ter seu primeiro filho, quando passava a habitar a Casa da esposa. Essa situação se modificou um pouco, mas, até hoje, o homem só frequenta a Casa de sua mãe ou a Casa de sua esposa. Se ele se separa, deve abandonar a Casa da esposa”, diz a antropóloga.


Outro elemento fundamental, relacionado com a noção de Casa, é o sistema onomástico, isto é, o conjunto estruturado de nomes. Ao nome original da criança, outros nomes vão sendo acrescentados à medida que ela cresce e sua herança se explicita. Há “nomes comuns” e “nomes bonitos”. A diferença é que os segundos são confirmados cerimonialmente.

Os nomes referem-se ao cotidiano humano, aos elementos da natureza, à flora, à fauna, aos produtos da roça, ou aos novos bens que estão sendo assimilados a partir do contato com a sociedade envolvente. Uma grande quantidade de nomes designa atributos físicos ou comportamentais, como “alto”, “magro”, “chorão”, “comilão”. Mas sua aparente simplicidade é enganosa, pois muitos nomes suportam vários significados.

“A maioria das pessoas tem de seis a 15 nomes. Para um adulto, é considerado indecente ter menos de cinco. Em minha pesquisa em Kretire, havia um menino com 32 nomes. Quando a pessoa morre, seu conjunto de nomes é desintegrado. De modo que não existem duas pessoas com exatamente os mesmos nomes”, diz Lea.

Segundo a pesquisadora, essa riqueza intangível, constelada na pletora de prerrogativas herdáveis, é tão definidora para os Mebengokre que, diante do impacto provocado pela hidrelétrica de Belo Monte, cujas obras estavam, então, prestes a se iniciar, uma mulher de nome Kena afirmou, em 2011: “Enquanto tivermos nossos nomes, não vamos acabar”.

Riquezas intangíveis de pessoas partíveis
Autor: Vanessa R. Lea
Lançamento: 2012
Preço: R$ 80
Páginas: 496
Mais informações: http://www.edusp.com.br/detlivro.asp?id=413278

Acompanhe tudo sobre:IndígenasLivrosPesquisa e desenvolvimento

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