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La La Land e os valores de Hollywood

Ana Maria Bahiana, de Los Angeles O fenômeno acontece só de vez em quando, e é sempre interessantíssimo. Um filme vem de um quadrante pouco observado da indústria, tocado passionalmente por um realizador obstinado. O realizador não é um desconhecido, mas algo no projeto cria toda sorte de obstáculos — não é o que a […]

LA LA LAND: “Quando eu dizia a palavra “musical” qualquer mostra de simpatia ia embora na hora”, afirma o diretor do filme favorito ao Oscar deste ano / Divulgação (foto/Divulgação)

LA LA LAND: “Quando eu dizia a palavra “musical” qualquer mostra de simpatia ia embora na hora”, afirma o diretor do filme favorito ao Oscar deste ano / Divulgação (foto/Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 24 de fevereiro de 2017 às 22h40.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h33.

Ana Maria Bahiana, de Los Angeles

O fenômeno acontece só de vez em quando, e é sempre interessantíssimo. Um filme vem de um quadrante pouco observado da indústria, tocado passionalmente por um realizador obstinado. O realizador não é um desconhecido, mas algo no projeto cria toda sorte de obstáculos — não é o que a indústria quer bancar naquele momento, há algo de, ao mesmo tempo, antiquado e extremamente ousado em sua proposta, há dúvidas se terá público suficiente, o custo é alto com relação à ideia. Os estúdios hesitam, e os independentes têm medo.

O realizador persiste. Luta, briga com quem se põe no seu caminho, coloca a mão no bolso se for preciso. Quando finalmente a obra está pronta, ninguém sabe o que esperar. E eis o que acontece: porque ela é pessoal, autoral, nascida de paixões e obsessões únicas, ela não se parece com que o está nas telas naquele momento, e passa, altivamente, ao largo de todos os temas pontuais da temporada. Algo nela reflete ao mesmo tempo valores estéticos do passado, de alguma era de ouro que é mais uma lembrança afetiva do que real, e emprega tecnologia de ponta, reposicionando todos esses valores num contexto novo.

Por todos esses motivos, o público adora — a conexão é imediata, porque é, simultaneamente, confortável e diferente. E aqui vem a parte mais misteriosa do fenômeno: de alguma forma, a obra oferece ao público e à indústria, aos de fora e aos de dentro, exatamente aquilo que eles procuravam e ainda não sabiam que queriam.

Aconteceu em 1997 com Titanic. Três anos antes, durante o lançamento de True Lies, o diretor James Cameron falava sem parar na possibilidade de finalmente realizar o projeto de seus sonhos — “tem um dos maiores desastres da história como pano de fundo, mas não é sobre isso”, ele me disse, na época. Cameron achava que a hora era certa por razões práticas: naquele momento já existia a tecnologia necessária para realizar a sua concepção visual; e uma série ininterrupta de sucessos desde O Exterminador do Futuro, em 1984, lhe garantiam o acesso ao financiamento necessário.

Só que não era bem assim. A tecnologia resolvia até certo ponto. A pré-produção começou a se arrastar, deixando o principal financiador, a Fox, cada semana mais nervoso. O estúdio tinha um precedente histórico importante: Cleópatra que, em 1963, quase destruira a empresa, apesar (ou talvez por causa) de Elizabeth Taylor e Richard Burton, o Brangelina da época, encabeçarem o elenco. A Fox só dera a luz verde para Cameron por causa de seu curículo de sucessos – a ideia do filme em si não tinha empolgado nenhum dos chefões, parecia antiquada e, além de tudo, complicadíssima de ser realizada.

Quando as filmagens começaram, atrasadíssimas e repletas de acidentes e retrocessos de planejamento, o estúdio, a imprensa e o circuito de rumores que movimentam Los Angeles decidiram que o projeto era fadado ao fracasso. Reportagem e mais reportagens davam conta do quanto o filme estava, como o navio que lhe dava o título, afundando.

Depois de várias brigas ao telefone, a Fox despachou seu presidente de produção para o México – onde Cameron havia criado o maior set aquático do mundo, especialmente para o filme – com a missão de mandar parar tudo. Cameron encostou o executivo literalmente contra a parede e disse: “tudo bem, não querem mais pagar, pago eu mesmo o que for necessário”. De setembro de 1995 até setembro de 1997, Cameron trabalhou debaixo de uma das artilharias mais pesadas que já vi nesta cidade. O consenso era: veremos em breve o segundo Cleópatra, o filme que vai enterrar a Fox de vez.

O resto, como se diz, é história. Titanic rendeu mais de 2 bilhões de dólares na bilheteria mundial e foi indicado para 14 Oscars, levando 11 para casa. Para as plateias era algo novo –quem é esse Leonardo di Caprio? Que maravilha de reconstituição de época! Olha como o navio afunda! — somado a algo que sempre deu certo: a história dramática de amor entre dois jovens destinados um para o outro, mas atormentados pelo destino.

Para a indústria, depois de uma década de filmes independentes de pequeno orçamento que, magistralmente orquestrados pela Miramax e seu criador, o gênio do marketing Harvey Weinstein, ganhavam sempre as maiores láureas, ali estava um filme como os épicos dos velhos tempos: imenso, caro (200 milhões de dólares de custo total), com uma mistura excitante de nova tecnologia e elementos de produção e valores tradicionais do cinema da era de ouro de Hollywood. Era algo completamente diferente da safra de 1997 — outros indicados incluíam L.A. Cidade Proibida, Melhor Impossível e Ou Tudo Ou Nada — e, ao mesmo tempo, não muito distante, digamos, da safra de 1959, quando Ben Hur foi indicado a 12 Oscars e levou 11 para casa.

O ano de 1998, um votante do Oscar me disse certa vez, foi o ano em que a Academia (que é composta exclusivamente por profissionais da indústria) parou de ter vergonha de si mesma, daquilo que a indústria produz. Eis que 19 anos depois estamos vendo uma nova iteração do mesmo fenômeno. Como lá nos anos 90, a Academia, ou seja, o establishment da indústria, está em crise de identidade. Durante o ano os estúdios enchem os cofres com filmes de super-herói, terror e ficção científica e, no final, premiam dramas realizados com recursos independentes, adoram uma isca-de-prêmio como O Artista, em 2012, e acolhem até uma obra claramente crítica do que fazem o ano todo como Birdman, em 2015. Mulheres, negros, latinos e asiáticos reivindicam com razão maior participação na indústria e, por extensão, nos prêmios. Para culminar, depois de oito anos de uma Casa Branca democrata, progressista e amiga das artes, os prêmios estão sendo entregues em meio a uma ressaca de baixo astral trumpista.

La La Land é um filme que tem, como Titanic, um número recorde de indicações: 14. Ao contrário de Titanic, seus ganhos com a crítica têm sido majoritariamente positivos e seu desempenho na bilheteria, embora excelente para um filme que custou 30 milhões de dólares e está sendo distribuído por independentes, ainda está na casa dos milhões – 340 milhões de dólares de receita nos EUA e pelo mundo afora. Mais uma diferença: seu diretor e roteirista, Damien Chazelle, tem 32 anos e apenas dois filmes em seu currículo (Guy and Madeline On a Park Bench e Whiplash) e nenhuma tração com os estúdios.

Mas, como James Cameron, Chazelle perseguia o que viria a ser La La Land há anos – seis anos, para ser exato. “Levamos um não de todo mundo nesta cidade”, Chazelle me disse. “Quando eu dizia a palavra “musical” qualquer mostra de simpatia ia embora na hora.” Na verdade, como James Cameron duas décadas atrás, Chazelle propunha exatamente um novo olhar sobre valores antigos e clássicos, um impulso pessoal, autoral, que vinha desde seu primeiro longa — Guy and Madeline — um 16 mm preto e branco, feito em 2009 por 50.000 dólares arrancados de amigos e parentes, elogiadíssimo pela crítica, mas visto por meia dúzia.

La La Land é, em essência, Guy and Madeline em Los Angeles. “Esta é uma cidade que é cinema, respira cinema, referencia cinema o tempo todo, e que eu queria usar como uma experiência, trazê-la para o primeiro plano, torná-la um elemento ativo, um terceiro personagem numa história de amor entre duas pessoas. Duas pessoas e uma cidade, uma cidade onde, ainda hoje, música e cinema estão sempre juntas”, afirma Chazelle.

Realmente, no meio da frase acima qualquer executivo de um grande estúdio já estaria olhando para o relógio. Foi preciso colocar o projeto na gaveta e fazer outro filme – Whiplash – para que La La Land fosse realizado. Feito com recursos particulares, sucesso no festival de Sundance de 2014, Whiplash colocou Chazelle em contato com dois bons distribuidores indies: Sony Classics e Lionsgate. A Sony Classics comprou os direitos de distribuição de Whiplash, mas a Lionsgate, perdedora na disputa, fez uma proposta: financiaria o próximo projeto de Chazelle, mas desde que ele estivesse ok com um orçamento de modestos 30 milhões de dólares, e oito semanas de filmagem e três meses de pré-produção. Em outras palavras: um tremendo aperto.

Chazelle pagou do seu bolso muita coisa, inclusive todos os ensaios – realizados no estacionamento da Lionsgate —, incluindo o que viria a ser o já antológico número de abertura de La La Land. Como tantos anos atrás, a cidade toda dizia que não havia jeito daquilo dar certo: diretor muito jovem, pouca experiência, um musical? Em 2016?

E assim, por todos esses percalços, por todas as coincidências, por todos os elementos que fazem dele o filme que a indústria não sabia que queria (que, na verdade, a indústria rejeitou até o fim) é que La La Land é o mais forte candidato ao maior número de Oscars deste ano.

Como é quase tradição, o filme de Chazelle tem um oponente diametralmente oposto em proposta: o lindo Moonlight, de Barry Jenkins, igualmente pessoal e independente (os dois venceram os Globos de Ouro, nas categorias melhor filme, musical/comédia e drama, uma divisão que não existe no Oscar). Moonlight não sairá do Dolby Theater, local da premiação deste domingo, de mãos abanando, mas La La Land vai converter uma boa parte de suas 14 indicações. La La Land é o filme-fenômeno, aquele que, de vez em quando, lembra a Los Angeles quem ela é, quem ela foi e por que sua trajetória até aqui ainda vale a pena.

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