Pelé, Benbella e Garrincha: Garrincha explicou que, ao encerrar a carreira - oficialmente em 1972 - diversas pessoas próximas desapareceram de seu convívio (Creative Commons)
Da Redação
Publicado em 21 de novembro de 2012 às 20h19.
Rio de Janeiro - Mané Garrincha sempre foi um astro de futebol mais afeito a driblar adversários do que a conversar com jornalistas, por isso uma entrevista publicada neste mês, quase 30 anos depois de sua morte, está fazendo os brasileiros redescobrirem o ''Anjo das Pernas Tortas''.
Sem nenhum tipo de pudor, o bicampeão mundial em 1958 e 1962 falou com o repórter argentino Carlos E. Bikic sobre pobreza, sua luta contra o alcoolismo, do abandono dos amigos, de Pelé, dos filhos e do desejo que tinha de virar técnico de futebol. A íntegra da entrevista foi publicada de maneira inédita pela edição brasileira da revista ''ESPN''.
A conversa aconteceu em julho de 1981, um ano e meio antes da morte de Garrincha. O jornalista João Máximo, que acompanhou como profissional grande parte da carreira do craque, afirmou à publicação que nunca o vira tão à vontade. ''Garrincha é ele mesmo quase sempre durante a entrevista. Garrincha era um puro, de futebol demoníaco, mas com alma de anjo. A entrevista volta a confirmar que ele não tinha sequer consciência do próprio gênio'', disse.
O material, segundo Bikic, só havia sido publicado anteriormente de maneira parcial, no Japão. Segundo o editor-chefe da revista ESPN, Gian Oddi, a entrevista chegou, inicialmente, às mãos de um repórter, e todos os cuidados necessários foram tomados para verificar sua autenticidade.
''Analisamos as fotos recebidas com cuidado e, por fim, quase no dia do fechamento, recebemos o incrível áudio da entrevista. Ali não havia mais dúvidas, tínhamos um tesouro nas mãos'', explicou.
Um dos trechos mais polêmicos da entrevista é quando o jornalista pergunta ao craque sobre a relação que ele tinha com Pelé, e se o ''Atleta do Século'' o visitava. ''Que nada! Ele é um safado, virou estrela agora''. A equipe da revista explica, em nota, que Garrincha se referia à exposição que o ex-companheiro tinha devido ao relacionamento com Xuxa.
O maior ídolo da história do Botafogo explicou que, além do trabalho que exercia com crianças em uma instituição beneficente, recebia ajuda de um dirigente: Giulite Coutinho, presidente da Confederação Brasileira de Futebol entre 1980 e 1986.
''Quem paga a minha casa é a CBF. Mas não é a CBF, e sim o Giulite Coutinho, que falou que gosta muito de mim e que a CBF me deve muito e nunca fez nada por mim. Quando eu mais precisei e quando estive doente, foi o Coutinho quem me ajudou. Mas ele não quer propaganda nem nada disso, sabe? Ele quer ser um amigo mesmo''.
Garrincha explicou que, ao encerrar a carreira - oficialmente em 1972, no Olaria, para depois só disputar amistosos - diversas pessoas próximas desapareceram de seu convívio. ''Do Garrincha todo mundo gosta, Eu quero ver gostar do Manoel dos Santos (nome de batismo do ex-jogador), prometer e dar. Não é prometer e não dar, entende? Porque quando eu estava no auge, todo mundo falava: ''O que você precisa? O que você quer? Mas agora..''.
Morto devido as implicações da cirrose, o ''Anjo das Pernas Tortas'' garantiu que não estava bebendo mais. ''Sempre aparece alguém me convidando com uma cerveja, mas eu falo na hora ''não, muito obrigado, mas eu não bebo, não posso beber, está proibido pelo médico''.
Apesar de negar o consumo de bebida alcoólica, o escritor Ruy Castro, que publicou a biografia de Garrincha ''Estrela Solitária'', relata na obra que o ex-atleta continuou bebendo até o fim de sua vida. ''Em seu último dia, Garricha não bebeu mais que o habitual'', relatou.
''Passou a manhã e parte da tarde na rua, mas seu organismo estava produzindo sensações que ele não conhecia. Voltou para casa por volta de duas da tarde e se deitou, gemendo muito. Uma hora depois, tentou levantar-se sozinho, caiu e bateu o rosto no chão (...) Deu entrada na casa de saúde às sete e quarenta e foi recebido por duas médicas (...) Às seis e quarenta o enfermeiro Aimoré apareceu para conferir suas pulsações. O coração não batia. Aimoré chamou a Dra. Fátima. Ela constatou o óbito'', diz o livro.
Na entrevista que chegou às bancas no último dia 6, Garrincha falou ainda dos filhos (no total, teve 14 reconhecidos) e cita com orgulho Ulf Lindberg, fruto de uma relação ocorrida na Suécia, em 1959, durante excursão do Botafogo. ''Sabe, ele joga futebol, e é ponta-direita'', disse, mostrando uma foto que tinha do filho.
Os dois nunca se conheceram, já que pelas leis suecas, Ulf só poderia deixar o país sozinho aos 21 anos. A primeira visita ao Brasil aconteceu com Garrincha já falecido. A publicação ainda lembra o trágico destino de outros dois filhos do ''Mané''. Garrinchinha, nascido da relação com a cantora Elza Soares, morto aos 9 anos de idade, e Neném, fruto do primeiro casamento do ex-jogador, com Nair Marques, que morreu em 1992, em um acidente automobilístico em Portugal.
Questionado 18 meses antes de morrer sobre o futuro, Garrincha respondeu que gostaria de se tornar técnico de futebol, mas admitia que não aceitaria qualquer proposta. ''Tem que ir para um time bom, que te dá apoio. Assim, você chega lá só para treinar, e o resto é por conta do clube. Agora, você tirar do bolso para dar dinheiro pro jogador poder voltar pra casa ou comprar tênis pra treinar? Aí não adianta. Aí não quero'', completou.
Para Gian Oddi, o material é de enorme importância, já que pode ter sido a última grande entrevista concedida por Garricha. ''Embora não possamos afirmar com absoluta certeza, não tivemos conhecimento sobre nenhuma outra grande entrevista concedida por ele após aquele inverno de 1981. É uma material surpreendente e totalmente fora do comum, não há dúvidas'', afirmou.