Mãos: 35 anos da Mão Afro Brasileira. (Rovena Rosa/Agência Brasil)
Agência de notícias
Publicado em 19 de outubro de 2023 às 13h37.
Há 35 anos, o artista e museólogo Emanoel Araújo (1940-2022) fez a curadoria da icônica exposição A Mão Afro-Brasileira, para marcar o centenário da abolição da escravidão. Realizada em 1988, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), a mostra marcou a história da arte do país.
Anos depois, em 2004, Emanoel Araújo fundou o Museu Afro Brasil, do qual foi diretor-curador até a sua morte, em setembro do ano passado. O museu, próximo ao MAM, também no Parque Ibirapuera, tem seu olhar voltado aos aspectos dos universos culturais africanos e afro-brasileiros, abordando temas como a religião, o trabalho, a arte e a escravidão, e registra a trajetória histórica e as influências africanas na construção da sociedade brasileira.
Para homenagear a marcante exposição de 1988 e o próprio Emanoel Araújo, o MAM decidiu se unir ao Museu Afro Brasil Emanoel Araújo para realizar a mostra Mãos: 35 anos da Mão Afro-Brasileira, que entra em cartaz nesta quinta-feira (19) em ambas as instituições, no Parque Ibirapuera.
“A mostra que o Emanuel Araújo realizou em 1988 foi muito importante e relevante, e está dentro da história das exposições como uma das pioneiras em relação a essa temática de arte afro-brasileira. Inclusive, ela deu origem à fundação do Museu Afro Brasil. E o MAM está revisitando essa exposição para repensá-la criticamente, atualizá-la e refletir sobre o sentido dessa mostra hoje”, disse Cauê Alves, curador-chefe do MAM.
A proposta dessa nova mostra já havia sido compartilhada com o próprio Emanoel Araújo, que se entusiasmou em fazer a parceria institucional, mas morreu antes de ver o projeto concretizado. “É um olhar também sobre a própria história da instituição. Chegamos a conversar com o Emanoel Araújo sobre essa mostra, e ele ficou superempolgado na época. Mas, infelizmente, ele não pode ver a concretização [dessa mostra]”, disse Alves.
A exposição tem curadoria do artista Claudinei Roberto da Silva e faz um recorte e uma atualização sobre a mostra de 1988. Ela reúne pinturas, gravuras, fotografias, esculturas e documentos de mais de 30 artistas afrodescendentes brasileiros, populares, acadêmicos, modernos e contemporâneos, entre eles, Heitor dos Prazeres, Aline Bispo, Rosana Paulino e o próprio Emanoel Araújo. Documentos referentes à exposição de 1988 também serão exibidos.
“O que temos pretendido, a partir dessa curadoria, é apresentar também uma geração de artistas que se beneficiaram do que foi anteriormente feito pelo Emanoel Araújo e por outras instituições que, de alguma maneira, entenderam que a diversidade e a pluralidade eram vitais para o aprofundamento de um processo de democratização do país. Não podemos esquecer que a exposição aconteceu no ano em que foi inaugurada uma nova Constituição, que pretendeu ampliar os direitos de grupos historicamente excluídos como mulheres, negros e os originários”, explica o curador à Agência Brasil.
A nova exposição do MAM e do Museu Afro ocorre em um momento em que diversas instituições de São Paulo estão voltando seus olhares para a arte produzida por artistas afrodescendentes, como a mostra Retratistas do Morro, em cartaz no Sesc Pinheiros e a mostra Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, no Sesc Belenzinho. Esse diálogo também é feito com a Bienal de São Paulo, evento que está sendo realizado no prédio da Bienal, ao lado do MAM, no mesmo Parque Ibirapuera.
“É um momento único na história da arte do Brasil. Mas é um momento que exige, sem dúvida, muita reflexão. Não obstante todas as conquistas, ainda acho que a representação desses artistas nos grandes museus da cidade e do país ainda é muito reduzida. O bom da situação é que ela está sendo enfrentada”, disse o curador.
Claudinei, no entanto, faz uma ressalva. Esse momento único em que as instituições estão se voltando para a produção e a arte negra não se trata de moda. Ela se refere a um processo histórico e de apagamentos e que, neste momento, está sendo revisto.
“Aquilo que convencionamos chamar de arte brasileira tem um passado. Frequentemente ouvimos falar em voga, em moda. Mas é importante que as pessoas saibam que não estamos falando de moda mas, talvez, de ascensão de alguma coisa que vivia de maneira submersa. Estamos falando de uma emergência, de uma emersão. E isso surge a partir de uma insurgência dos que querem se ver representados”, disse o curador.
“Podemos pensar que essa exposição também celebra a emergência, a insurgência e ascensão desses grupos que, não obstante continuem sendo oprimidos, conseguem hoje se organizar de modo a trazer à tona uma produção que pode ser observada nessas várias exposições que acontecem na cidade e particularmente nessa, que vamos inaugurar agora”, destacou.
A exposição também debate sobre a constituição dos acervos dos museus brasileiros e sobre como eles espelham, ou não, a diversidade étnica, de gênero e classe da população do país. Esse é também um debate sobre a relevância e circulação da produção intelectual e artística de minorias que foram secularmente excluídas.
“A ideia é que essa exposição, parte dela, possa ser adquirida pelo museu para que ele possa ser cada vez mais diverso e menos branco. Temos uma política de aquisição que está muito associada à política de exibição. A gente coleciona aquilo que a gente mostra e mostramos o que a gente coleciona. Esse é um jeito também de fazer o museu refletir sobre a possibilidade de incorporar novas obras ao seu acervo”, explica Cauê Alves.
Para o curador, a exposição é também uma forma do museu combater e se posicionar contra o epistemicídio. “Epistemícidio é o apagamento da história e da memória desses grupos oprimidos. O museu também faz parte de um aparato que pretende, de alguma forma, resgatar essas memórias e essas histórias. Nesse sentido, ele é um aparato contra esse epistemicídio. Mas é sempre importante a gente lembrar que a entrada desses artistas foi facultada por uma luta que é pretérita, que é muito anterior à ascensão dos mesmos”, disse Claudinei.
“Gosto de pensar que, em 1968, tivemos o AI-5, que tolhia as liberdades individuais, e esse AI-5 foi enfrentado por diversos setores da sociedade, inclusive pela sociedade negra organizada. Dez anos depois da proclamação desse ato, temos em São Paulo a fundação do Movimento Negro Unificado. Dez anos depois disso, temos a celebração do centenário da abolição, onde o 13 de maio passa a ser ressignificado porque passa-se a entender que negros e negras foram protagonistas de primeira hora da luta pela sua emancipação. É no rol desses acontecimentos sociais e relevantes que começa a surgir a necessidade de exibir a produção intelectual e simbólica dessa parcela considerável da nossa população. E isso aconteceu justamente em 1988”, explica o curador.
A mostra em ambas as instituições ficará em cartaz até o dia 3 de março. No MAM, a mostra tem entrada gratuita aos domingos. Já o Museu Afro tem entrada gratuita às quartas-feiras.