Marcia Kilgore fundou a rede Bliss (Tayler Smith/The New York Times)
Daniel Salles
Publicado em 31 de dezembro de 2020 às 10h58.
Algumas pessoas têm a sorte de ter uma boa ideia na vida, com a qual constroem um negócio de sucesso. Marcia Kilgore teve cinco.
Primeiro, em 1996, ela fundou a Bliss, cultuado empório de beleza da cidade de Nova York que se transformou em uma linha lucrativa de produtos e mais tarde se tornou a primeira aquisição norte-americana feita pela LVMH, por cerca de US$ 30 milhões.
Em seguida, foi a marca de banho, corpo e cosméticos a preço acessível, a Soap & Glory, que se tornou onipresente nos banheiros britânicos e foi vendida à rede de farmácias Boots Alliance em 2014. Em seguida, veio uma linha de calçados ergonômicos, a FitFlop; e, então, a Soaper Duper, marca vegana de produtos para o corpo.
Mas é a Beauty Pie, sua quinta empresa, que a empresária em série de 52 anos acredita ser sua melhor ideia até agora. "Tive algumas boas no passado. Tenho orgulho de todas elas. Mas a Beauty Pie eclipsa o resto."
A Beauty Pie, que tem sua sede em Londres, começou a operar há quatro anos e é um clube de compras para viciados em beleza. Os membros pagam uma taxa mensal de adesão para ter acesso a algumas das melhores fábricas de fragrâncias, cuidados com a pele e cosméticos do mundo, muitas das quais fornecem para grandes marcas de luxo, que passam a cobrar muito mais caro pelos produtos uma vez que recebem seu logotipo. Com a Beauty Pie, os membros podem obter entregas regulares de produtos japoneses de limpeza de pele e sérum sul-coreano, batons italianos e perfumes feitos em Grasse, na França, tudo chegando em embalagens rosadas exclusivas.
Kilgore teve essa ideia uma tarde em que estava em uma estação de trem de Milão, ao voltar de uma região de fabricação de produtos de beleza na Itália conhecida como Vale do Batom. Ela tinha cerca de US$ 5 mil em amostras grátis de fábricas locais em uma bolsa grande. "De repente, pensei: e se todas as mulheres que geralmente compram esses produtos na Sephora ou em lojas de departamento pudessem ter essa sensação, que estou tendo agora, de estar fazendo um grande negócio, eliminando os intermediários? Se elas pudessem ter acesso aos produtos a um custo real, poderiam comprar muito mais coisas de ótima qualidade. Eu sabia que fazer a cliente se sentir bem assim tinha um apelo real, mesmo que também desagradasse a alguns na indústria."
Afinal, fazer a cliente se sentir bem foi o que energizou seus negócios desde o início. Kilgore nasceu em 1968 em Saskatchewan, no Canadá. Seu pai morreu quando ela tinha 11 anos. O dinheiro estava apertado e, depois do ensino médio, ela se mudou para Nova York com US$ 300.
Por vários anos, trabalhou como personal trainer, e em seguida, tendo feito um curso de esteticista depois de crises recorrentes de acne, Kilgore encontrou um novo nicho: oferecer tratamentos faciais em seu apartamento no East Village.
Em 1996, ela abriu o Bliss Spa no SoHo. Um artigo da "Vogue" elogiou suas esfoliações e seus peelings. Oprah Winfrey, Calvin Klein e Madonna viraram clientes. A fila de espera pelos tratamentos como o Quadruple Thighpass e o Double Oxygen facial com Kilgore tinha até 18 meses de duração.
Uma linha de produtos de sucesso se seguiu, assim como spas e uma década de semanas de trabalho de 90 horas para Kilgore e sua equipe, que relaxavam as clientes com vídeos do King Kong na sala de eletrólise e conversavam com elas como grandes amigas.
"A Bliss se destacou como uma marca porque tinha uma personalidade peculiar, interessante e diferente de tudo que havia naquela época, assim como a própria Marcia. Ela também foi uma pioneira astuta que descobriu um nicho lucrativo do setor de saúde e beleza. Nunca teve medo de correr riscos", disse a empresária de beleza Bobbi Brown.
Com cada um de seus empreendimentos, Kilgore parece capaz de empacotar e vender um momento no Zeitgeist da beleza, indústria outrora dominada por um punhado de gigantes globais. Nos últimos anos, no entanto, as startups independentes proliferaram, com o sucesso estimulado por produtos inovadores, experiência em mídias sociais e consumidores animados.
A Beauty Pie chegou num momento em que os compradores estão mais conscientes do que nunca de como e onde seus produtos são feitos e cada vez mais valorizam a transparência dos varejistas. As assinaturas on-line, para produtos de higiene pessoal e flores e utensílios domésticos, também cresceram em popularidade.
Uma assinatura anual da Beauty Pie custa US$ 99, ou começa em US$ 10 por mês, o que inclui preços mais baixos em mais de 300 produtos.
"Em certo ponto, pensei que precisaria de um colete à prova de balas por me meter com a velha guarda do setor, que eu não poderia fazer isso, que todos me odiariam", afirmou Kilgore de Genebra, onde vive com o marido e dois filhos. Com a pele tão luminosa que chega até a melhorar a imagem no Zoom, ela é uma embaixadora de sua marca – inclusive nas redes sociais, nas quais frequentemente oferece dicas e solicita feedback sobre novos lançamentos.
"Mas, então, refleti um pouco mais. Trata-se de democratizar a beleza de luxo. Trata-se de respeitar a inteligência e as necessidades de uma cliente que sei que entendo. Se tivesse cedido a meus medos, eu me odiaria. Se você está aterrorizado demais para fazer algo, geralmente há uma razão. A razão é que é uma ideia muito boa", contou Kilgore.
Alguns observadores da indústria mencionam que, para que a inscrição na Beauty Pie se justifique financeiramente em termos econômicos, o volume de compras tem de chegar às centenas de dólares. Outros observaram que, num momento em que o setor está repleto de inovação e escolha, nem todos os aficionados vão querer comprometer seu orçamento de beleza em um só lugar, e que os vários níveis de inscrição podem ser confusos para alguns compradores.
Kilgore informou que desde março as inscrições e a receita aumentaram significativamente, embora tenha se recusado a fornecer números. No entanto, revelou que a Beauty Pie havia recentemente recebido investimento de capital de risco. "Nos primeiros anos, deixei o interesse dos investidores de lado. Mas, se você quer jogar nessa arena e quer contratar o melhor talento para seu negócio, então precisa ter esse financiamento", disse Kilgore. Ela observou que o dinheiro arrecadado com a Index Ventures, a Balderton Capital e a General Catalyst seria usado em parte para melhorar as operações de tecnologia e o alcance de marketing da Beauty Pie, além de aumentar sua gama de produtos.
Danny Rimer, da Index Ventures, contou que levou muito tempo para convencer Kilgore de que valeria a pena trabalhar com investidores: "Marcia construiu tudo sozinha até agora, mas sabíamos que tínhamos de convencê-la. Não há nada mais importante para um investimento, em estágio inicial ou não – mesmo com um ótimo produto –, do que o empreendedor por trás. Precisamos estar convencidos de que essa pessoa foi colocada no planeta para concretizar sua visão em um negócio."
Kilgore se descreveu como uma "workaholic selvagem", com uma agenda de viagens geralmente implacável, mas que tinha sido restringida pelas medidas de bloqueio deste ano. Ultimamente, o tempo de inatividade envolve aplicativos de meditação, aprender mandarim e francês, e fazer caminhadas.
Depois que as vendas de empreendimentos anteriores como a Bliss e a Soap & Glory a deixaram rica, Kilgore hesitava em voltar à montanha-russa da vida de startup. Então, disse ela, percebeu que trabalhar para dar alegria às pessoas é o que a faz feliz, "desde os dias em que eu tinha três empregos de meio período para sustentar minha mãe ou quando fazia tratamentos faciais sentada em uma caixa no meu apartamento e aí via minhas clientes saírem leves e contentes. Isso me emociona muito, e não estou pronta para desistir".