“Eu quero ser a mensagem para as meninas, e que elas mostrem para seus pais que sim, mulheres podem ser skatistas e que skate não é coisa de maloqueiro”, diz Letícia Bufoni. (Matheus Coutinho/Divulgação)
Julia Storch
Publicado em 13 de janeiro de 2021 às 10h23.
Última atualização em 14 de janeiro de 2021 às 10h42.
Letícia Bufoni já ralou muito, e se ralou também. Nascida na Vila Matilde, aos nove anos de idade Letícia começou a andar de skate com os amigos da vizinhança, no bairro do Tatuapé, Zona Leste de São Paulo. Era a única garota do grupo e topava todas as brincadeiras, mas uma era a sua preferida: o futebol. Chegou a fazer testes para jogar no Juventus ainda criança, até que o skate apareceu em sua vida e tudo começou a mudar. No começo, para pior. Em entrevista à Casual EXAME, ela conta sua trajetória no esporte e planos pessoais.
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Os vizinhos já achavam estranho Letícia ser a única menina no grupo de amigos, e quando a jovem começou a passar de skate pelas ruas, começaram os apelidos de “sapatona” e “Maria João”. Detalhe, Letícia tinha apenas dez anos de idade. Seu pai, Jaime José da Silva, não gostava que a filha fosse vista assim, e a proibiu de andar de skate. Não funcionou. Ela fugiu de casa mesmo de castigo. Então, uma solução mais drástica aconteceu, “meu pai serrou meu skate no meio com uma Makita. Mas, mesmo assim, no dia seguinte eu fui andar com os meus amigos”. Conta com naturalidade, que não parece que teve que batalhar para chegar onde está agora: classificada para as Olimpíadas de Tóquio (além de ser uma das melhores do mundo na categoria street).
Ainda bem que a teimosia e insistência de Letícia foram mais fortes. Hoje, ela conta com 19 participações nos X Games e 5 medalhas de ouro, 3 de prata e 3 de bronze nos jogos. Além disso, já esteve no primeiro e terceiro lugar no ranking mundial feminino, em 2007 e 2008.
Jaime, mesmo ainda não aceitando a paixão da filha, a levava para as competições. “Foi no primeiro campeonato que ele mudou a mentalidade, chegando lá, tinham outras meninas inscritas, e ele percebeu que nós também podemos participar”. Do contra, ele passou a ser o maior incentivador da filha, e viajaram por 4 anos pelo Brasil para que Letícia pudesse competir. Aos 11 anos de idade ela já ganhava competições estaduais e nacionais. Até que aos 14 anos foi convidada para ir para os Estados Unidos para competir no X Games. A jovem do Tatuapé queria ser californiana. “O que era para ser 20 dias, acabou se estendendo para seis meses nos Estados Unidos”, conta no primeiro episódio da sua série Letícia Let’s Go, no Canal Off.
A série, que estreou em 2015 e tem três temporadas, não é a única produção de Letícia para a televisão. O ano de 2020 rendeu boas filmagens para a atleta. “No começo da pandemia, em abril, eu voltei para o Brasil para ficar dois meses”. Em sua casa no Guarujá, recebeu o casal de amigos, o surfista Pedro Scooby e a modelo Cintia Dicker para passarem a quarentena juntos. “Depois o Pedro voltou para a casa dele em Portugal, onde estava construindo uma pista de skate, e eu fui para lá quando as fronteiras na Europa reabriram”, conta Letícia, que trabalha até nas férias.
Na Europa, veio a ideia de fazer uma viagem de motorhome com Pedro e com o diretor de fotografia Matheus Coutinho, que captou a dupla praticando wakesurf, motocross, surf, e “até carro de fórmula 1 eu dirigi”, conta animada ao relembrar. E o skate? “ficou em segundo plano, pois queria conversar e conhecer outros esportes e atletas”. O trio rodou mais de dez mil quilômetros, passando por Portugal, Espanha, França, Suíça, Alemanha, Áustria e Itália, entrevistando e praticando esportes com diversos atletas. A série ainda não tem data de estreia prevista.
Natural perante as câmeras, ainda mais em cima das rodinhas, está previsto o lançamento de seu canal no YouTube em 2020. “Ainda estou esperando alguns ajustes com a Red Bull [seu patrocinador] para começarmos a gravar no próximo mês”. O conteúdo será o dia a dia da atleta, suas viagens, competições, treinos e vida pessoal. Se você também já achou muito, ainda tem mais: um documentário sobre a carreira da skatista. O projeto ainda está pausado por conta da pandemia, mas será produzido pela empresa de LeBron James.
Pandemia não seria um assunto que poderíamos evitar na conversa. A meses de estrear nas Olimpíadas em Tóquio, o coronavírus não só adiou os planos dos melhores atletas do mundo, como ainda mais para Letícia, que pratica um esporte em que cair e se machucar faz parte do processo. Ir para o hospital era ainda mais arriscado, por conta do risco de contaminação. “Nunca fiquei tanto tempo sem competir. Em 2019 quebrei o pé duas vezes, e fiquei de fora dos campeonatos, me recuperando. Em 2020, veio a pandemia e todos os eventos foram adiados”, conta sem tristeza, já que aproveitou o ano para descansar, viajar e se recuperar das lesões.
De volta ao Brasil, para a temporada pandêmica, ela construiu uma pista de skate no quintal de sua casa no Guarujá. Ser vizinho de Letícia não é tão ruim, como ela garante: “as pistas que eu construí não fazem tanto barulho, por conta do material que foram feitas. Mas, eu também ando de skate durante o dia, para respeitar as regras de silêncio do condomínio. Ninguém nunca reclamou até agora”, conta rindo.
Letícia ainda não está com a passagem marcada para Tóquio. Ainda faltam algumas etapas para definir as classificadas para a competição, mas a paulistana já está classificada para competir no Street Feminino em julho. “Estou muito feliz de competir nas Olimpíadas, ainda mais sendo a estreia do esporte nos jogos. Quero participar de duas pelo menos”, ela pensa mais um pouco e completa: “quero participar de no mínimo três Olimpíadas, mas nunca parar com o skate.”
Ao contrário de 15 anos atrás, em que não haviam referências de mulheres no skate, Letícia é hoje, um ícone para várias garotas que ingressam no esporte, e para seus 2,6 milhões de seguidores no Instagram. “Minhas referências eram os meninos da rua, depois vieram o Bob Burnquist e o Sandro Dias”, conta. Para ela, é uma honra ser para as garotas uma pessoa que não teve em sua vida. “Eu quero que as meninas mostrem para seus pais que sim, mulheres podem ser skatistas e que skate não é coisa de maloqueiro”. Falando sobre pais, hoje em dia Jaime só tem um ponto quanto à prática de skate da filha: “ele reclama que eu não uso capacete e proteção”, finaliza rindo.