Bares lotados no Rio de Janeiro durante pandemia do novo coronavírus (TV Globo/Reprodução)
Na última quarta-feira, 1º, o Brasil ultrapassou a marca de 60.000 mortos pelo novo coronavírus. Trata-se de um número muito maior do que os 5.000 que levaram o presidente Jair Bolsonaro a soltar o “E daí?” que ganhou repercussão internacional. Agora, em um contexto muito pior, parece que o “E daí?” vem da própria população.
Com quase quatro meses de quarentena, uma sensação de relaxamento começa a tomar conta das pessoas. No Rio, a reabertura dos bares e restaurantes nesta quinta-feira, 2, levou centenas às ruas, em cenas que mostram tranquilidade e poucas máscaras. O número de denúncias de aglomeração já passa de 20.000.
Alguns chegam a propor bolhas sociais, em uma ilusão de responsabilidade.
Os atuais números da pandemia no mundo colocam o Brasil em segundo lugar, em valores absolutos, na quantidade de mortos e infectados. Na contagem de mortos por milhão, o país é o 15º. Por que, mesmo com este cenário, o brasileiro tem relaxado com a quarentena?
Para a infectologista Luana Araujo, mestra pela Universidade Johns Hopkins, a resposta está no analfabetismo científico. “Há uma dificuldade em compreender conceitos básicos de ciência e entender que a ciência vem para proteger, e não para complicar”, diz. “Quando enxergam a ciência como um inimigo para a vida comum, abrem espaço para a deturpação do conhecimento.”
Segundo Araujo, a falta de conhecimento e o negacionismo também colaboram para a sustentação de uma ideia mais confortável para as pessoas: a de que tudo está bem e que a pandemia é uma invenção.
A cientista chegou a criar um site para esclarecer conceitos e explicá-los de forma concisa. “É um desgaste grande”, diz. “Para falar sobre vacina, por exemplo, é preciso explicar o que é sistema imunológico. Só então, posso discutir se a vacina vai funcionar e em que pé estamos.”
Em um texto publicado em março, o psiquiatra Daniel Martins de Barros já havia previsto a mudança de comportamento. “Minha hipótese era a de que a curva ia seguir subindo e que as pessoas voltariam a sair de casa mesmo assim”, diz.
Integrante do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, Barros acredita que, em geral, o medo que se tinha da pandemia não era da infecção pelo vírus ou de transmiti-lo, mas do caos dos sistemas de saúde. “Uma vez que o medo das UTIs colapsarem, de faltarem respiradores, foi superado, as pessoas se tranquilizaram.”
Para ele, a reabertura dos bares também teve impacto na decisão de quebrar a quarentena. “Bares não são dispensáveis na vida, mas é uma atividade mais superficial. O pensamento é de que, se até os bares estão abertos, então a vida voltou ao normal”, aponta.
O psiquiatra também lembra que, desde a chegada da pandemia no Brasil, as informações não foram claras: havia contradição e ambiguidade sobre o que estava ou não permitido, gerando um contexto de ainda mais incerteza e insegurança.
Para Luana Araujo, isolamento é como gravidez. Não existe parcialidade: ou se está isolado, ou não. “Não existe evidência científica para um nível de exposição possível. A partir do momento que você se expõe, está exposto. Só resta tentar reduzir as possibilidades de contaminação com o uso de máscaras, higiene e distanciamento.”
A infectologista diz que, em um mundo ideal, aqueles que têm condições de trabalhar de casa devem se manter isolados. Quem precisa voltar a algum grau de normalidade deve estar ciente de que está sob risco, e que acaba expondo, também, as pessoas com quem mora.
Ela destaca o fato de o Brasil ser um país continental, com localidades de diferentes níveis socioeconômicos, e onde o sistema de saúde responde de maneira desigual. Isso impacta, por exemplo, no deslocamento do eixo de mortes, que ultimamente tem afetado a região Centro-Oeste.
“Além disso, temos um problema no comprometimento: o brasileiro não mostra ter um compromisso com a sociedade, mas com ele mesmo”, diz Araujo. “Em geral, as pessoas acham que são espertas por driblarem as regras – mas essa “pseudoesperteza” coloca todos sob risco.”