Contardo Calligaris: piscanalista morreu nesta terça (30) (Instagram/Divulgação)
Daniel Salles
Publicado em 31 de março de 2021 às 15h49.
Última atualização em 1 de abril de 2021 às 23h29.
Na tarde de terça-feira, quando meu editor ligou para confirmar a morte de Contardo Calligaris, eu ainda tinha esperança de que o italiano espirituoso e boa pinta deixasse as dependências do Hospital Albert Einstein com uma frase à la Mark Twain sobre os boatos que circulavam desde a noite de domingo: “Parece que as notícias sobre a minha morte foram muito exageradas”.
Seu dinheiro está seguro? Aprenda a proteger seu patrimônio
Mas os boatos, embora antecipados em 48 horas, tinham fundamento. O câncer pôs um ponto final antecipado à vida desse milanês que encarnou à perfeição um dos nossos mitos nacionais – o do europeu de gênio que, apaixonado pelo Brasil, escolhe viver entre nós, para nos revelar quem somos.
Contardo chegou ao Brasil na década de 80 como psicanalista de formação francesa, naturalmente lacaniano, e aqui tornou-se várias outras coisas: colunista de jornal, escritor de ficção, roteirista de séries de televisão e uma espécie de celebridade intelectual, sempre disposto a colocar verve e cultura a serviço da compreensão do Brasil, sobretudo em seus aspectos afetivos.
Charme, talento e ousadia o ajudaram a conquistar essa posição de destaque, mas havia em Contardo uma marca geracional que facilitou a sedução: nascido em 48, nas ruínas físicas e morais do pós-guerra europeu, ele viria a ser um membro espiritual destacado da geração de Maio de 1968, que escolheu como modo de vida uma mistura de hedonismo e rebeldia, espécie de resposta (ou de fuga), aos sofrimentos e privações das gerações de seus pais.
Contardo gostava de viver, e criou suas próprias regras para fazê-lo. Entre os psicanalistas, causava censura e inveja pela maneira desassombrada com que contrariava os fundamentos da profissão. Ele se exibia e se expunha publicamente, por escrito e em entrevistas, também como roteirista da série de TV Psi, numa atividade em que a discrição é a suposta regra de ouro: analistas deveriam ser invisíveis fora do consultório. O número de belas e famosas ex-pacientes com quem Contardo havia se relacionado também era tema constante de conversas ultrajadas. Como ele se permite??? Até os seus honorários, supostamente altíssimos, causavam espécie.
Se muitos psicanalistas privadamente lhe franziam o cenho, o público o adorava. Suas crônicas na Folha – que começaram psicanalíticas e, ao longo de 20 anos, foram se tornando cada vez mais livres e autorreferentes – fizeram dele uma autoridade pública no trato da sexualidade e da cultura.
Com oito casamentos, um filho e relações profissionais e afetivas que se abriam num triângulo entre São Paulo, Nova York e Paris, Contardo tinha autoridade existencial (e coragem) para falar de sentimentos, experiências e escolhas pessoais. Tinha prazer também. Há um inegável gozo narcisista em contar de si para as multidões, e ele o abraçou sem hesitação, com intensa reciprocidade da audiência.
Contardo antecipou – com cultura e elegância peculiares -o fenômeno das redes sociais, onde a regra é colocar-se em primeira pessoa, expor-se em medida elevada e fornecer aos leitores algum material autobiográfico. Essa capacidade de antecipação e de adaptação, que revela uma afinidade quase jovial com as tendências do século XXI, ajudam a explicar o seu sucesso.
A morte desse enamorado do Brasil não poderia vir em pior hora, e soa quase como forma poética de protesto.
O país que ele primeiro conheceu – que emergia de uma ditadura militar de duas décadas e lutava para retomar a liberdade de ser e pensar – desapareceu. Ou melhor, fez uma volta de 360 graus para retornar, diferente, ao ponto em que estava nos anos 1960: rumores de golpe militar, obscurantismo religioso e científico, ameaças cotidianas à livre expressão nas artes e na cultura. Para não falar da pandemia, que com mais de 300 mil mortes vai se impondo como uma catástrofe cuidadosamente construída pelo governo Jair Bolsonaro.
O Brasil que havia desbundado e avançado lindamente depois da ditadura encaretou de novo, emburreceu e se tornou quase irreconhecível.
Filho de dois opositores à ditadura de Mussolini, antifascista por vocação e genética, as ideias e as palavras libertárias de Contardo farão falta neste cenário de terra devastada. Diz seu filho, Maximilien Calligaris, que ao sentir a aproximação da morte o pai lhe teria dito: “Espero estar à altura”. Não consigo imaginar uma aspiração mais digna e mais bonita na hora de sair de cena.
*Ivan Martins é jornalista, psicanalista e autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro”