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Como ficam as relações familiares em tempos de quarentena

Disciplina, diálogo e paciência. Há quatro meses, estamos vivendo uma vida completamente diferente. E muitas das mudanças vieram para ficar

Quarentena, home office, convívio diário: como ficam as relações familiares em tempos de coronavírus (Cavan Images/Getty Images)

Quarentena, home office, convívio diário: como ficam as relações familiares em tempos de coronavírus (Cavan Images/Getty Images)

Guilherme Dearo

Guilherme Dearo

Publicado em 27 de julho de 2020 às 10h16.

Disciplina, diálogo e paciência. Há quatro meses, estamos vivendo uma vida completamente diferente. E muitas das mudanças com as quais foi necessário lidar vão marcar não apenas esse período de isolamento como poderão nos acompanhar quando for possível retomar uma vida um pouco mais parecida com a do mundo pré-pandemia.

O home office, por exemplo, veio para ficar, na opinião de Eduardo Ferraz, consultor em gestão de pessoas e autor de livros como Negocie Qualquer Coisa Com Qualquer Pessoa: Estratégias Práticas Para Obter Ótimos Acordos Em Suas Relações Pessoais e Profissionais (Planeta). “O que se espera do profissional daqui em diante é a flexibilidade, o jogo de cintura, a capacidade de se adaptar e de trabalhar por conta própria. E de se relacionar com a família trabalhando em casa”, diz.c

Este é o momento, também, de arrumar a casa. Cuidar de si e do outro, buscar equilíbrio. “Embora estejamos em casa, temos muito mais estressores acontecendo do que o habitual. São ameaças financeiras, à saúde. Essas tensões podem ser canalizadas para ajudar a família a construir uma resiliência”, afirma a psicóloga Daisy Emerich-Geraldo. “A ideia é cooperar, e, para isso, temos de falar do que precisamos e sobre o que esperamos. E precisamos ser tolerantes com o tempo do outro”, explica.

Tolerância. “Com o isolamento social, o que poderia não irritar tanto agora pode levar à perda da paciência com mais facilidade” lembra a Monja Coen, também autora de livros como A Sabedoria da Transformação (Academia). “É aqui que entra a oportunidade de treinar, de conhecer a si mesmo. E o momento de praticar a paciência e criar harmonia”, diz.

A comunicação é o mais importante

Havia um monge de pavio curto, que era muito criticado por isso. Desesperado, procurou um meio hábil. Contratou um jovem para que lhe desse uma paulada sempre que perdesse a paciência. Entrou uma pessoa e falou coisas que o fizeram perder a paciência e esbravejar. O jovem deu uma paulada no monge, que disse: “Você bateu depois de eu haver gritado. É preciso pegar a raiva na hora que acontece, antes que eu faça uma cena”.

Veio outro visitante e o jovem, percebendo que o monge poderia ficar bravo, logo deu uma paulada. Mas foi muito cedo. Na terceira vez, o jovem acertou. O monge se acalmou. Naquele momento ele conseguiu se tornar dono de si e de suas respostas ao mundo. A partir desse dia, ele aprendeu a controlar seus humores.

Esta história é importante para que possamos perceber nossas emoções e escolher nossa resposta às provocações do mundo.

O caminho é o autoconhecimento

Observe suas mudanças de humor. Elas ocorrem simultaneamente com alterações respiratórias. Podemos controlar a respiração e quando a tornamos estável, profunda e sutil, as emoções desagradáveis passam. Perceba o que o faz perder a paciência - pode ser um gesto, um olhar, um suspiro, uma palavra. Não deixe que qualquer pessoa controle você dessa forma.

Perceba o mau humor se aproximando e respire suavemente. Apenas perceba o ar entrando, a caixa torácica se expandindo. Solte o ar bem devagar. Repita duas ou três vezes. Não grite, não brigue não responda à provocação. Compreenda. Essa pessoa está precisando de atenção. Você pode mudar e transformar um círculo vicioso apenas com sua resposta inesperada. Nada de ficar triste chorar, gritar, insultar. Respire.

Vá até a janela. Olhe para o céu, para a imensidão. Lembre-se que nada é permanente. Lembre-se das boas qualidades dessa pessoa ou das pessoas. Não exija que sejam como você gostaria que fossem. Olhe para você. Sente-se alguns momentos, todos os dias, em silêncio. Medite. Observe a si mesmo. Como fala, como age, como pensa. Deixe de julgar e condenar as pessoas. Deixe de dar tanta atenção às faltas alheias. Observe a si mesmo. Sorria por suas fraquezas. Sorria até mesmo para sua falta de paciência. Perceba quando falta e a chame de volta.

Use meios hábeis

Todos estamos estressados, cansados e esgotados. Tantas notícias tristes, preocupantes. Muita pressão. Lembre-se de que este não é o momento de discutir a relação, de cobrar atitudes, falas. É momento de criar harmonia, de respeitar, de compreender e amar. Na casa em que o amor incondicional vive, a paciência se manifesta livremente. O amor deve ser cultivado.

Crie harmonia em você, em sua casa, entre as pessoas com quem convive

Quando cuidamos dos outros, somos simultaneamente cuidados. Assim, procure a ternura e o carinho e os traga de volta à casa. Pratique a sabedoria profunda, o observar e ver claramente que todos estamos cansados, inclusive você. Mas que há uma casa, um cômodo, há uma ternura antiga, um novo dia. Aprecie sua vida onde está, como está e com quem está. Há uma música antiga: “Love the one you are with”. Ame quem está com você. Se conseguir, haverá harmonia e ternura. Cada dia será precioso e sagrado, cada instante, irrepetível.Aprecie sua vida. Brigue menos. Ame mais.

Cultive a paciência

Respire conscientemente. Sorria. Somos frágeis e também podemos ser macios e fortes. Fale mais baixo, esteja mais próximo. Perceba a necessidade verdadeira - sua e das pessoas com quem convive. Você já foi adolescente, lembra? Queira bem e acolha as pessoas com quem está convivendo. Agradeça. E viva cada dia com plenitude. Não será melhor quando acabar. Agora é o momento de ser excelente. Sua vida está aqui, neste momento. Leia um bom livro, ouça uma boa música e cante uma canção de amor.

Tenha disciplina

Mesmo quem mora em casa ou apartamento pequeno deve ter um lugar separado, um quartinho, um banheiro transformado em escritório, para poder ficar concentrado e sem interrupção durante o trabalho.

Melhore os seus equipamentos

Quem presta serviço a distância precisa cuidar de todos os detalhes: iluminação, enquadramento, velocidade de internet. É inadmissível estar numa videoconferência com quatro ou cinco pessoas e uma delas ficar caindo toda hora, por exemplo.

Aproveite este momento para se atualizar

Como estamos em casa o tempo todo e sobram o sábado, o domingo e às vezes algumas horas do dia, devemos aproveitar para nos atualizar. Estude. Há muitos bons cursos online. Faça leituras. Faça desse limão uma limonada para você estar mais preparado quando voltar o trabalho presencial.

Seja proativo

Não espere que o cliente ou o chefe façam uma proposta diferente. Proponha modelos e remunerações diferentes. Quando possível, uma remuneração atrelada a resultados, a projetos ou desempenhos. Isso pode fazer uma enorme diferença neste momento em que as pessoas estão com medo ou dificuldade de contratar.

Aprenda a se relacionar com a família trabalhando em casa

Tenha o horário da diversão - para ver um filme juntos, conversar, fazer as refeições - e depois volte ao estudo ou para o batente, como aconteceria no escritório. Aproveite o horário em que a criança está estudando.

Esse equilíbrio vai ser o novo normal daqui em diante. Isso não é paradigma ou chavão. Esse novo normal veio para ficar. Esse espaço voltado ao trabalho em casa e essa disciplina para separar as estações e os horários vieram para ficar. Isso vai fazer parte da vida de muita gente daqui para a frente.

Hora de (re)descobrir as relações

Casar, separar, conviver, compartilhar. Se a pandemia fez crescer o número de divórcios no País, o isolamento forçado também juntou casais que já pensavam em dividir o mesmo teto e só precisavam de um “empurrão”. Filhos adultos voltaram a morar com os pais - e a redescobrir os afetos familiares -, ex-casais se acertaram para transformar o momento atual em algo menos traumático para as crianças e amigos que já moravam juntos viram os laços se estreitarem.

A quarentena bagunçou a rotina, mudou o cotidiano, aproximou, distanciou. Também fez mudar o foco da saudade e provocou o fenômeno da “proximidade excessiva”.

Exigiu - e continua exigindo - doses extras de paciência e equilíbrio, mas dá a oportunidade para cada um se conhecer melhor e tempo para fortalecer as relações.

Abaixo, contamos histórias de quem está driblando esses meses de incertezas e juntando aspectos positivos gerados no caos para levar como ensinamento para o resto da vida.

Três amigos isolados em um sobrado 'cool' em Pinheiros

Idade semelhante, turma em comum, rotina agitada. A convivência pré-pandemia não poderia ser outra: pouca interação no dia a dia mas muitos eventos na casa que a atriz Isabel Wilker divide há um ano e meio com os amigos Elisa Caetano e Antoine Kliot, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. “Logo no início já foi uma badalação. Começou o festerê aqui, até com rotina de pré-carnaval”, lembra Isabel. “Depois, nós fomos entrando numa rotina cada um com seu espaço, muito livre.”

Tudo mudou com a necessidade de isolamento. Isabel, que já exibia até o cabelo da personagem que interpretaria em uma novela da Record, passou a ficar mais em casa com a impossibilidade de gravar. Elisa e Kliot geralmente não estavam ali durante o dia, por causa de seus trabalhos, e também tiveram de ficar em quarentena, no sobrado geminado vintage e “cool”.

“A gente teve de ser organizar, cada um precisou escolher um lugar para trabalhar sem precisar ficar no quarto, que também é meio confuso”, conta a atriz, de 35 anos. “A minha fase da novela ainda não estava sendo gravada, mas boa parte estava encaminhada até aquele momento de março. Não sei como fica a previsão agora. A Elisa está atendendo clientes como freela em marketing de moda e o Antoine, economista de formação, está fazendo formação de coaching e abrindo uma startup.”

Esse contato próximo vem estreitando ainda mais os laços e ajudando a superar as incertezas trazidas pela pandemia. “Vem sendo algo bem peculiar porque não é só passar mais tempo juntos. É passar tempo juntos numa situação difícil com muita frustração, muita angústia, com insegurança e, às vezes, mau humor”, afirma Isabel. A atriz diz que o trio conseguiu achar uma boa dinâmica, aprendendo a prestar atenção nas sutilezas e na energia uns dos outros. “A companhia foi importante para ninguém ficar nessa fossa de não poder ver as pessoas, de ter a saudade da família e dos outros amigos todos.”

Troca de ideias. Eles passaram a dividir também seus projetos profissionais e a trocar ideia sobre os trabalhos. “Fiz trabalho para uma marca e chamei a Elisa para opinar. Volta e meia, ela me pergunta sobre um texto. Compartilhamos tudo, não só o espaço físico.”

Isabel diz que vem acompanhando todo o esforço de seus colegas da classe artística para se reinventar durante a pandemia, como lives e leituras de texto, por exemplo. A área cultural foi uma das primeiras a sentir o impacto da pandemia e continua entre as mais atingidas. O caminho escolhido pela atriz neste momento, no entanto, foi outro. Se dedicar a um outro tipo de produção, que antes fazia apenas quando tinha tempo disponível: a colagem.

“Por conta da quarentena, eu acabei focando nisso. E foi muito bom. Antes, eu estava nervosa, sentindo ansiedade, frustração, preocupação com as pessoas e com a família. Muita coisa legal acabou saindo agora.”

Se ela vai ter alguma saudade do tempo de quarentena? “Estou achando o máximo esse convívio. Sempre morei sozinha, sempre tive medo de dividir espaço com alguém que não fosse marido ou um parceiro”, afirma. “Mas eu acho que nesse momento foi muito importante estar assim, até para aprender a ser mais flexível, aprender a dividir tudo: o tempo, a paciência, o espaço. Nós demos muita sorte.”

Uma chance para o reencontro

Assim que começou a quarentena, Thayame Porto deixou Osasco e foi passar uns dias com a tia, em São Paulo. Logo recebeu a notícia de que a mãe, em Ribeirão Preto, estava com dengue e muito debilitada. Não teve dúvida: fez as malas e, aos 33 anos, voltou para casa 13 anos depois de ter deixado a cidade.

Contadora de histórias, ela teve seus contratos suspensos no começo da pandemia. As lives que tinha começado a fazer em São Paulo continuaram no interior - e, desta vez, com os pitacos da mãe, Norma, de 60 anos.

“Sinto pelo momento, mas é bom ter a oportunidade de voltar, de fazer esse processo de olhar para dentro. Nesses anos todos, nos afastamos emocionalmente e estou feliz por reencontrar minha mãe descobrir coisas sobre ela. Estou fazendo as pazes com o meu histórico familiar”, conta Thayame.

A sensação é mais ou menos a mesma de Stefano Florissi, professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, de 51 anos, que saiu da casa dos pais no Recife para mestrado e doutorado nos Estados Unidos há 29 anos e só voltou para férias. Quando percebeu que haveria uma quarentena, ele, solteiro, pegou um avião e está, há exatos 4 meses, convivendo com Olindo, de 89 anos, e Edda, de 88.

“É uma bênção ter a chance de ter uma relação adulta e dizer coisas como ‘eu te amo’, que não dizíamos porque somos uma família tímida. Tem sido uma relação de companheiros, de pessoas que, juntas, conseguem rir das coisas do passado e agradecer o que se tem. Isso é o mais importante que quero levar da experiência da pandemia.”

República com 20 mulheres

Dividir o quarto com uma irmã já não é simples. Mesmo morar com a família, depois de certa idade, pode ser complicado. Imagine, então, compartilhar quarto, cozinha e banheiro em uma república só para mulheres, com faixa etária entre quase 20 e 30 e poucos anos, em meio a uma pandemia? Quem já está apostando que a tarefa é das mais complexas precisa saber que a experiência tem sido de muito aprendizado e também de companheirismo para as 20 moradoras da unidade Vila Mariana II da República Feminina São Paulo.

Antes, elas pouco se encontravam, no entra e sai das rotinas para trabalho e estudo. Quando sobrava um tempo nessa correria, marcavam para ir ao parque, ver uma exposição, assistir a um filme. Agora, a convivência está bem próxima. Momentos de risada na cozinha e de se sentar à mesa para decidir qual será a próxima festa se tornaram habituais. Aniversários viraram motivo para comemorações surpresa. Elas também fizeram um arraial de São João e festas do pijama. A presença masculina é proibida ali.

“As meninas falam que a gente grita na cozinha. É nosso grito de liberdade”, brinca Mayara Patrícia Soares de Medeiros, de 24 anos. “Estamos desde de abril em casa. Passamos a conviver muito e a nos conhecer mais do que se estivéssemos em família.”

Quando a quarentena começou, 10 das 30 meninas que alugam vagas na república foram para casa. “Muitas foram embora para suas cidades, pois só estavam aqui pelos estudos. Quem ficou está fazendo home office e são poucas que trabalham fora. Então, ficamos 24 horas juntas aqui”, conta Mayara.

Colega de quarto de Mayara, a gaúcha Cáthia Regina Quisinski, de 31 anos, é uma das que voltaram a trabalhar presencialmente. Hipnoterapeuta, ela passou os meses iniciais atendendo por vídeo. “Barulho na casa é normal, são muitas meninas. Precisava me fechar no meu mundinho para fazer os atendimentos”, diz.

Casada, ela havia chegado a São Paulo em fevereiro, só para estudar. Foi morar na república e ainda estava se acostumando com a ausência do marido, que ficou no Sul, e com o compartilhamento do espaço quando precisou ficar em quarentena. “No começo, foi difícil. Não conhecia ninguém na cidade, vim sozinha”, conta a gaúcha. “Estou aprendendo muito com elas, conhecendo culturas e modos diferentes de ver o mundo. Claro, às vezes, a gente precisa sentar e conversar para se adaptar. Mas é produtivo. Para mim, está sendo algo novo.”

Cáthia diz que durante esse período chegou a ficar receosa. “Mas houve uma aproximação maior entre nós. E algumas coisas melhoraram o nosso convívio”, conta.

Compartilhar a guarda sem drama

A quarentena com crianças não é nada fácil. Imagine para pais separados. Mas com criatividade, compreensão e uma dose de boa vontade, ex-casais estão deixando as divergências de lado.

A psicóloga Cristina Marques e o ex-marido, separados desde 2014 e sem nenhuma convivência desde então, se veem agora todos os dias. Para ela poder trabalhar, ele vai para a casa dela, no Rio onde se divide entre o trabalho e os cuidados com os filhos, de 11 e 8 anos. “Agora há troca, conversa. Acho que vamos colher frutos desse momento no futuro”, diz Cristina.

O escritor carioca Marcelo Moutinho também está aproveitando o tempo com Lia, de 5 anos. Do novo contato já até nasceram dois livros infantis durante a quarentena.

Com os pais separados há 3 anos, Dionísio, de 9, sempre trafegou bem de uma casa para a outra. Mora com a mãe, a editora Raquel Menezes, no Rio, mas, dia sim dia não, via o pai, o escritor e professor Luis Maffei. Desde que a quarentena começou, Dio tem dado as regras. Escolhe quando vai e quando volta. “Estamos dando essa liberdade para que a quarentena seja menos ruim”, diz Raquel. / M.F.R.

Um empurrão da pandemia

Quem só presenciou o reencontro por acaso de Gerson Brandão, de 35 anos, e de Paula Jalu, de 38, na saída de um bloco de carnaval cinco meses atrás, e 15 anos depois de terem se conhecido, não faz ideia de tudo o que aconteceu de lá para cá. Era início de março e o isolamento começaria em poucos dias.

Como o irmão de Paula ainda se recuperava de uma cirurgia, ela ficou com receio de voltar para a casa dele, onde estava hospedada. Uma amiga então pediu para ela cuidar de sua casa e dos gatos, e para lá foi o novo casal. Depois, surgiu a ideia de dividir uma casa com amigos, mas não deu certo. Sobraram os dois. “A experiência é o que mais tem contribuído para esse projeto a que nos propusemos.

Temos maturidade para acessar o que sentimos e expor ao outro”, diz Gerson.

Morar junto começava a surgir como um plano para a jornalista Luana Monteiro, de 29 anos, e o motion designer Felipe Dias, de 32, antes da pandemia. Então as coisas se aceleraram. Em abril, ela foi de mala e cuia para o estúdio dele e depois para um lugar maior. “Temos certeza de que queremos enfrentar isso junto”, diz Luana

‘Somos um animal que se junta, mas quer espaço’

Saudade é a lembrança boa, diz o filósofo e professor Mario Sergio Cortella. Mas como sentir saudade em situações como a atual, em que casais estão juntos 24 horas, quando pais e filhos nunca conviveram tanto? “É preciso ser capaz de organizar momentos de distanciamento voluntário, em que a gente combina de não ficar no mesmo território”, explica Cortella. “Gostamos da privacidade, da quietude.”

O filósofo conta que ele e a mulher, Claudia Hamra, adotaram esses momentos de distanciamento durante a quarentena. “A presença contínua não nos deixa saudosos de nada. Nesta hora, a privação eletiva é uma boa combinação.”

Cortella diz que a proximidade excessiva, várias vezes, gera colisões e atritos nas famílias. “Somos um animal que se junta, mas nós gostamos de vez em quando de ter um pouco do nosso espaço.”

Nesta entrevista, ele também fala sobre a oportunidade de aprendizado que a humanidade tem agora e afirma que a felicidade é possível em períodos como o atual. Mas ressalta que nunca será um estado contínuo, uma vez que a vida sempre impõe desafios. “Uma pessoa que é feliz o tempo todo não é feliz, ela é tonta.”

Confira os principais trechos da entrevista:

Em um dos seus livros, o senhor já dizia que uma falha na relação entre pais e filhos é o pouco tempo que passam juntos. E agora, nesse momento em que estão 24 horas juntos, a relação está melhorando ou só mudou?

Estar perto não significa estar junto. A noção de junto é muito mais afetiva. Quando digo que “estou junto com esta pessoa”, significa uma relação de proximidade. Quando estou no elevador com outras pessoas, estou perto, mas não necessariamente junto. Nesse sentido, muitas famílias estavam habituadas até a, não estando tão perto, estarem mais juntas do que agora. Essa obrigatoriedade de estar grudado o tempo todo evidentemente gerará colisões e atritos vez ou outra. Somos um animal que se junta, mas gostamos de vez em quando de ter um pouco do nosso espaço, nosso território.

Como manter as relações saudáveis neste momento?

Em uma orquestra sinfônica há instrumentos diversos, nem sempre coincidentes em relação ao tipo de som que emitem nem em relação à altura do som. Mas para fazer um som junto, é preciso que haja a preservação dos espaços de proximidade. É preciso então que a gente seja capaz de concertar, com “c” mesmo, fazer um concerto da nossa convivência, nas várias idades que a gente tem dentro de uma casa. E aí, a depender do tamanho que ela tem, ser capaz de organizar momentos de distanciamento voluntário, momentos em que a gente combina de não ficar no mesmo território. Estar com outras pessoas não necessariamente é sinal de prazer contínuo, isso significa que há vários momentos em que nós gostamos da privacidade, da quietude. Para que a gente não se irrite com as interferências que a presença de outras pessoas traz, é necessário concertar, e só a combinação permitirá. Nesse quase 130 dias com Claudia de modo contínuo, 24 horas, vez ou outra nós combinamos e passamos uma parte do dia não longe um do outro mas quietos, para que a gente possa, na presença da ausência, ter saudade, porque só a presença da ausência é que oferece saudade. A presença contínua não nos deixa saudosos de nada. Nesta hora, a privação eletiva é uma boa combinação.

A saudade é importante?

Temos maior percepção de que algo nos faz bem quando desse algo somos privados. A saudade é a boa lembrança. Alguns usam a expressão no sentido mais forte de recordação. A saudade é uma forma de recordação, que te dá o desejo, te inclina na direção de querer estar em algum lugar, com alguma pessoa, com alguma música, com algum tipo de alimento. A saudade não é só de pessoas, ela é de situações, de circunstâncias, de coisas. Mas acho que algumas pessoas exageram quando falam de algumas saudades. Não deu tempo ainda de ter tanta saudade de tanta coisa. A saudade resulta de uma privação temporária. Sempre digo para quem me elogia em excesso: cuidado, a melhor maneira de perder um ídolo é conviver com ele. Por isso que o amor platônico, na definição clássica, é duradouro. Ele tem uma perenidade, porque ele é incorpóreo e, portanto, não tendo a convivência, tem outra referência.

O senhor já disse que não acredita em “conversão súbita” no pós-pandemia. O que podemos levar de bom deste momento?

Se não formos tolas e tolos, nós vamos aprender que algumas coisas que são deixadas num plano secundário nos fazem falta. Eu utilizo bastante uma frase do Benjamin Disraeli (escritor e político britânico, 1804-1881) que diz que a vida é muito curta para ser pequena. Por isso, a amizade, amorosidade, a solidariedade, a sexualidade, a religiosidade e a fraternidade são essenciais para não apequenar a nossa vida. Mesmo se aprendermos isso, não acho que sairemos desse movimento pandêmico nos abraçando em larga escala, como se fez no fim da Segunda Guerra. Ali, as pessoas se abraçaram e se juntaram. Mas meses depois já estavam se digladiando de novo. Nós nos esquecemos de algumas lições com velocidade.

O senhor citou palavras como amizade, amorosidade, solidariedade. Uma delas ficou de fora, a felicidade. Dá para ser feliz nesse momento?

A felicidade não é um estado contínuo. Eu e o (historiador) Leandro Karnal, colunista do Estadão, escrevemos com o (filósofo) Luiz Felipe Pondé um livro que trata do tema, Felicidade, Modos de Usar. E temos um outro chamado Viver, a que se Destina?. A felicidade não é algo que aconteça o tempo todo nem de todos os modos. Ela não está ali de modo contínuo. De maneira alguma você pode imaginar que neste momento que nós estamos vivendo a felicidade não se apresente em algumas situações, mas também não podemos imaginar que ela venha o tempo todo. Eu sempre digo que uma pessoa que é feliz o tempo todo não é feliz, ela é tonta. Afinal de contas, a vida tem dificuldade, tem turbulência, tem agrura, tem agonia. Não dá para ser feliz o tempo todo, mas também não dá para ser infeliz o tempo todo. Ainda quando pandemia é algo ameaçador, há situações em que a gente percebe que vale continuar, que vale não desistir. Gosto da ideia de que a gente, sim, vez ou outra, abraça a felicidade quando ela vem.

O senhor vem provavelmente respondendo sobre esse tema desde o início da pandemia, mas como não se desesperar neste momento?

Essa é a pergunta que eu mais tenho ouvido. A forma é nos lembrarmos de que o hoje é um esforço coletivo para enfrentar aquilo que nos ameaça e, se nós tivermos decência, seremos solidários o suficiente para que, quando terminada a pandemia, não tenhamos vergonha por não termos feito o que precisávamos fazer. Os antigos, meus avós e meus pais, diziam: “Não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe”. Eu já disse essa frase durante esse tempo dezenas de vezes. E não é por convenção mas porque contém sabedoria. É difícil, é duro, porque é algo que nos agonia, mas não é uma impossibilidade. Se nos juntarmos, conseguimos não nos desesperar. O desespero vem quando a gente tem a percepção do abandono, quando a gente se sente no Grande Sertão sem Veredas. Nesse sentido, a possibilidade do encontro, seja de ideias ou de sentimentos, a empatia, a compaixão e a capacidade de uma palavra que aproxima amenizam um pouco aquele que é o modo desalento.

O ser humano se adapta a tudo?

Uma das coisas mais fortes é a capacidade humana não de adaptação stricto sensu, mas de integração. Adaptar-se significa ser parte, enquanto integrar-se é fazer parte. A nossa postura na vida é muito mais de fazermos parte, de fazermos um ambiente. Portanto, é muito mais autoral, muito mais protagonista. Mas entendendo aquilo que você indica, isto é, se nós temos maleabilidade, se nós temos flexibilidade para lidar com situações, sem dúvidas. Eu, habituado há décadas a fazer aulas e palestras na quase totalidade das vezes na frente das pessoas, agora preciso integrar na minha prática coisas que eu não conhecia. Nós somos capazes de flexibilidade. Isso é uma vantagem imensa para a nossa sobrevivência. Afinal de contas, é só imaginarmos o número de vezes na vida que nós tivemos de alterar alguns dos caminhos que estávamos fazendo. Ainda bem que como nós não nascemos prontos, dá para a gente inventar a trajetória numa parte do final. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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