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Com poucos recursos, Teresa Cristina cria formato inovador de live

Com alta fidelidade do público e espaço para artistas famosos e desconhecidos, a cantora Teresa Cristina chama a atenção de marcas durante a pandemia

A cantora Teresa Cristina foi premiada na APCA como cantora do ano de 2020. (Divulgação/Divulgação)

A cantora Teresa Cristina foi premiada na APCA como cantora do ano de 2020. (Divulgação/Divulgação)

Não é de hoje que ela está aí. Desde 98, Teresa Cristina é figura conhecida no centro do Rio de Janeiro, quando começou a cantar em um bar e acabou revitalizando a cena musical da região da Lapa. De lá para cá, gravou discos cantando Cartola e Noel Rosa, e se destacou em parceria com Caetano Veloso.

Foi em meio à crise, no entanto, que a cantora ganhou mais espaço e notoriedade. Teresa (ou “TT”, como passou a ser chamada pelos fãs) criou, no improviso, um formato de lives divertido e democrático, no qual canta clássicos da MPB a capella e recebe artistas consagrados e desconhecidos. Em transmissões diárias de mais de três horas, acompanhadas por milhares de pessoas, ela foi redescoberta pelo público — e aproveita o espaço para divulgar cantores do Brasil todo. 

Além do público, as marcas também redescobriram Teresa Cristina – ou pelo menos uma marca. Pela primeira vez em 22 anos, a musicista comemora a chegada de um patrocínio. “Quando procuro patrocínio por mais de duas décadas e não encontro, é claro que chego à conclusão de que a cor da minha pele tem a ver com isso”, diz.

“São pessoas que escolhem o destino das verbas de patrocínio, e estes lugares de escolha também devem ser ocupados por pessoas negras.” Por meio de uma videoconferência (é claro), Teresa falou à EXAME sobre o sucesso das lives, o racismo no Brasil e a descoberta da produção musical no país — mais vasta do que ela imaginava. 

Confira a entrevista:

Entre tantas lives pelas redes, você estourou com um formato muito simples, alternando entre conversas e cantorias a capella, com diversos convidados. Como desenvolveu essa ideia?   

Este formato não foi pensado, veio da minha condição. Eu não tenho um grande cenário para mostrar, faço as transmissões no quarto do meu sobrinho, e sem uma grande produção: faço ou sozinha ou com a ajuda do meu afilhado, que vê as pessoas que entram na live. Eu não previ, inclusive, que teria essa troca. As lives têm me alimentado muito porque passo a conhecer outros artistas. Um exemplo é a cantora pernambucana Silvia Borba, que hoje vive em Londrina. Ela é espetacular, uma das boas surpresas que tenho tido.  

Como estes artistas chegam a você?  

Tudo acontece na hora da live. Vejo as pessoas que estão acompanhando e vou pela minha intuição. Em um dia, entrou uma cantora de Natal que disse que queria cantar Ne me quitte pas em “nordestinês”. Achei inusitado, chamei e descobri que ela tinha um vozeirão! O Chico Viola, um compositor do Ceará, escreveu: “Teresa, você não vai me notar, eu não sou ninguém, tenho 20 anos de carreira e queria mostrar minhas canções”. Aquele “não sou ninguém” me doeu muito. Convidei ele para entrar e ele ficou tão contente! Até agora, minha intuição tem me ajudado. 

Como o público recebe estes artistas menos conhecidos? 

É difícil. Às vezes, sinto que as pessoas ficam ávidas por gente famosa. E aí, nesta ansiedade, às vezes passam por cima de pessoas que precisam de exposição. Quando eu sinto que o público não dá importância a quem eu chamei, dou bronca. Porque não é uma live só para gente famosa: acho que tem de ser uma janela para tudo, sabe? As pessoas querem um lugar ao sol, e eu me coloco no lugar delas também. Chamo a atenção do público para que o caráter da live não mude. Essa coisa natural e espontânea que eu tenho, de chamar as pessoas, não pode virar uma obrigação de ter de chamar artistas específicos. No fim, tem dado certo. 

Não raramente, você se emociona durante as transmissões. Qual delas mais mexeu com você — e o que, nelas, faz com que você se emocione?  

Uma live que me tirou do chão foi a que fiz sobre o João Gilberto. Eu não esperava, mas o Lula entrou. Tive uma síncope, fiquei muito abalada. Ele pediu uma canção do Lupicínio Rodrigues e outra do Ataulfo Alves. Aquilo acabou comigo porque, hoje, temos um presidente que não lamenta a morte do Aldir Blanc. Lula não entrou para falar de política, mas para falar de música. O cantor mineiro Sérgio Pererê me emociona toda vez que ele participa. Percebo que a minha emoção aflora mais quando eu dou de cara com o Brasil que eu sei que existe. Por mais que eu não conheça o artista que vai cantar, consigo entender de que lugar do Brasil ele se expressa. Quando eu percebo a nossa riqueza cultural, fico emocionada.  

Neste momento de pandemia, eu já acordo com a tristeza de me deparar com as notícias que não nos dão esperança. Estamos um pouco pior do que os outros países: lutamos contra a necropolítica, contra o discurso de ódio. O meu momento de respiro é durante a live, e acabo chorando porque é muita emoção guardada. Cheguei a pensar que deveria me segurar mais, mas as transmissões são um espaço onde não me obrigo a nada. Só tem uma regra: na minha live, “bolsominion” não se cria. Os poucos que aparecem, boto para correr falando que a Terra é redonda, mandando ler um livro. Em geral, eles falam algo, percebem que não têm eco e vão embora. 

Você foi patrocinada pela primeira vez recentemente. Por que demorou tanto para receber um patrocínio?  

No Brasil, a mulher preta está acostumada a sempre ficar no final da fila das coisas. Ou recebe aquela notícia fofa dizendo “agora não deu, mas quem sabe numa próxima oportunidade?”. Quando comecei a falar sobre falta de patrocínio, conversei com a Mariene de Castro [cantora, também negra]: assim como eu, ela começou a cantar em 98, e nunca teve patrocínio. O que temos em comum? Eu já procurei uma marca de cosméticos para patrocínio, e me disseram que não tinham dinheiro. Depois, soube que uma outra artista, branca, tinha declinado uma proposta desta marca. Tentei novamente, e negaram o patrocínio de novo, alegando que queriam uma artista de São Paulo — sendo que um post pode ser feito de qualquer lugar. Então, tire você a sua conclusão sobre isso, e eu tiro a minha.  

Recentemente, tivemos uma onda de movimentos antirracismo motivados pelo assassinato de George Floyd nos EUA. Como você vê esta campanha?  

É um acontecimento que tem mesmo de ser uma onda mundial. O Brasil é acostumado a importar movimentos americanos. O que aconteceu com o Floyd foi terrível, mas acontece diariamente nas favelas do Brasil. Por que esse tipo de mobilização funciona nos EUA e não aqui? Eu não vi americanos dizendo que as pessoas pretas que protestavam na rua estavam fazendo arruaça. Ou falas do tipo “mas será que ele não era bandido?” ou “se a polícia chegou ali, é porque tinha algum motivo”. Tivemos, por exemplo, aquele carro metralhado com 80 tiros. Ali dentro tinha uma família preta. Se fosse um carro passando pela lagoa Rodrigo de Freitas, com uma família branca, de classe média, o Brasil tinha parado. Estamos muito longe da solução porque, além de lutar contra o sistema, lutamos contra um discurso que vem sendo construído há décadas. Mas acho que o que aconteceu nos EUA é um caminho sem volta. 

Você acha que celebramos suficientemente nossos artistas negros? 

Existem expoentes que são intocáveis até certo ponto, já que tem gente até para criticar o Gilberto Gil, por sua postura de vida. Ele é o nosso Buda, importantíssimo para o Brasil, mas também é atacado nas redes. Penso nos outros escalões: outras camadas de artistas negros que precisam ser valorizados, precisam de um olhar de carinho. O Brasil passa por um momento diferente: estávamos acostumados a falar de racismo só em novembro, agora o tema é debatido em junho. Alguma coisa já mudou, mas as pessoas continuam precisando de oportunidades, de espaço para ser ouvidas.  

Quando vejo uma certa resistência de uma marca de cosméticos em patrocinar o meu trabalho, é claro que eu penso que a cor da minha pele tem alguma coisa a ver com isso. Então o meu consumo também será revisto: se eu bebo uma marca de cerveja, e esta marca não vê relevância em associar seu nome ao meu, eu não vou continuar bebendo esta cerveja ao vivo. Se eu procuro o apoio de uma marca que tem dinheiro para uma cantora branca e não para mim, para que vou usar esta marca? É o momento de mudar nossa relação com a publicidade: as empresas têm de entender que a mulher preta também pode ser garota-propaganda. São pessoas que escolhem o destino das verbas de patrocínio, e estes lugares de escolha também devem ser ocupados por pessoas negras. 

Que aprendizados você tirou da pandemia e da experiência com as lives?  

Vários. O primeiro é que a arte no Brasil acontece em todos os lugares. A ideia de que a cultura brasileira é ditada pelo Sudeste e pelo litoral é um discurso enraizado. A gente sai do litoral e encontra artistas incríveis, em vários estágios e camadas sociais, com obras que resistem. Quando ouço os artistas que participam das minhas lives, me pergunto como não os conheci antes. Outro aprendizado e a superação dos meus próprios limites. Me vejo cantando músicas que eu tinha medo de cantar, e as transmissões tiraram essa vergonha de não saber a letra ou a melodia. É mais importante mostrar as versões para que o público possa ir atrás das músicas originais. A música brasileira é muito maior do que temos noção. É gigante. 

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