O pintor Jean-Michel Basquiat em 1983: retrospectiva do artista chega ao Brasil (Lee Jaffe/Getty Images)
Guilherme Dearo
Publicado em 25 de janeiro de 2018 às 06h00.
Última atualização em 25 de janeiro de 2018 às 20h32.
São Paulo - Quando o pintor americano Jean-Michel Basquiat morreu de overdose em agosto de 1988, aos 27 anos - aumentando o mito do tal “Clube dos 27”, que já tinha nomes como Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison -, muitos de seus críticos acharam que acabava ali a fama do jovem negro criado no Brooklyn, Nova York, filho de um haitiano com uma americana descendente de porto-riquenhos.
Um deles, Robert Hughes, não poupou palavras duras poucos meses após a morte do artista. Para ele, Basquiat era modismo, era um “peso-pena” no mundo da arte. A borbulhante cena de Nova York estava para mudar. Andy Warhol partira um ano antes. Keith Haring seria o próximo dali a pouco.
Quase três décadas depois, o mundo da arte provou que Hughes estava errado e Basquiat estava mais vivo do que nunca. Em 2017, seu quadro sem título de 1982 foi vendido durante um leilão da Sotherby’s, em Nova York, por impressionantes 110,5 milhões de dólares.
O feito colocava Basquiat em um exclusivo clube de pintores como Francis Bacon e Pablo Picasso: poucos conseguiram ver seus quadros ultrapassar a barreira dos cem milhões. A venda fez de Basquiat o artista americano mais caro da história, deixando estrelas incontestáveis, como Jackson Pollock e Mark Rothko, para trás.
A força e a atualidade de Basquiat, definido como um neo-expressionista com influência da arte urbana, ficam mais claras agora aos brasileiros, com a ampla exposição que abre hoje (25) no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo. É a maior retrospectiva do artista a ser montada no País.
Gratuita, a exposição que, após abril, passará por Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, traz mais de oitenta trabalhos de Basquiat, entre pinturas, desenhos, gravuras, colagens e trabalhos em pratos de cerâmica (onde ele enfileira "homenagens", como a Picabia, Picasso, Cézanne, De Kooning, Jim Dine e Julian Schnabel).
As obras fazem parte da coleção do magnata israelense nascido em família síria Jose Mugrabi, notadamente conhecido como o maior colecionador de obras de Warhol e Basquiat. Segundo a organização da mostra, foram dois anos de negociação para trazer as obras ao Brasil. Via Lei Rouanet, o CCBB captou 15 milhões de reais para viabilizar o projeto.
Entre as principais peças da exposição, trabalhos do início dos anos 1980, época inspirada: “Hand Anatomy” (1982), “Old Cars” (1981) e “Do Not Revenge” (1982).
A retrospectiva é imperdível por um simples fato: não é tão fácil ver um Basquiat ao vivo e a cores. Cerca de 80% da produção do artista pertence a coleções privadas, não a museus.
Nos anos 1980, quando estourou, alguns colecionadores e amigos compraram seus trabalhos. Os museus não comprovam artistas tão novos (e ainda existiam aqueles críticos que diziam que ele era "moda"). Quando enfim ganhou espaço nos livros de arte, suas obras já tinham subido de preço a uma velocidade assustadora, para níveis estratosféricos. A partir dali, só multimilionários, não museus, conseguiriam comprar seus quadros.
Com curadoria de Pieter Tjabbes, os quatro andares de exposição traçam um panorama completo do artista de carreira breve. É possível ver os trabalhos de início da carreira, no começo dos anos 1980, até os trabalhos finais de 1987 e 1988, e exemplos da parceria pop com o amigo Andy Warhol, como em “Heart Attack” (1984) e “Untitled (Two Dogs), de 1984.
Para Tjabbes, a exposição mostra a atualidade de Basquiat e chega em um momento que tem a ver com São Paulo e com o Brasil.
“A Nova York dos anos 80 estava em crise. Prédios abandonados, violência, epidemia de drogas, sujeira. Mas esse ambiente de degradação deu combustível para uma nova geração de artistas, que propuseram novos caminhos e ideias. O Brasil passa por algo similar, uma crise sem precedentes que pode abrir caminhos para novos modos de pensar, novas propostas”, diz.
A São Paulo de 2018 também ecoa Basquiat e a Nova York da época: a múltipla e democrática cena cultural e artística, o rap e o hip hop, a presença massiva de graffiti e arte urbana (nos limites permitidos pela atual gestão municipal). E também os problemas: milhares de pessoas sem moradia, violência, prédios abandonados, epidemia de crack.
Não à toa, especialistas em arquitetura e urbanismo como Alexandros Washburn e Philip Yang já descreveram a São Paulo atual como sendo igual à Nova York dos anos 1970: problemas com drogas e sujeira e e grandes desafios quando o assunto é planejamento urbano e espaços públicos.
A fama do artista, também, se sustenta renovada parte por conta das novas gerações de classe média em grandes centros urbanos com acesso amplo à música, às festas, à MTV e à arte de rua.
Querido por uma geração millennial que venera qualquer artista de vertente mais pop ou camada cool (Warhol, Lichtenstein, Haring, Hirst – ou uma Yayoi Kusama pós expressionismo abstrato), em detrimento daqueles artistas de signos, digamos, mais serenos e misteriosos, Basquiat é acessível, instantâneo, “instagramável” e oferece recompensas rápidas – embora a mistura de elementos figurativos, abstratos e pictóricos, a mistura de imagens e palavras em diferentes idiomas, seus amplos quadros sem centro e linearidade, indiquem justamente o contrário: a recompensa vem para aqueles que passam mais de alguns minutos diante da obra.
“Sua obra reflete os ritmos, os sons e a vida da cidade. Ela sintetiza o discurso artístico, musical, literário e político de Nova Iorque durante este período tão fértil”, diz Tjabbes.
Em uma sociedade onde se recebe milhares de pedaços de informações diariamente (pedaços de notícias, pedaços de imagens, pedaços de sons, pedaços de palavras) e ao nosso cérebro só resta a “remixagem” desse bolo, em busca de um mínimo significado, os quadros de Basquiat também se revelam contemporâneos: a mistura de elementos (imagens, palavras), a mistura de referências, a busca por sentidos em fragmentos dinâmicos e intercortados.
Como explica Tjabbes, Basquiat era uma esponja. Ele trabalhava com o rádio e a televisão ligados no estúdio. Qualquer coisa poderia ser incorporada na obra em processo, sem grandes explicações ou motivos.
A exibição de Basquiat no CCBB também serve para quebrar alguns mitos em torno do artista descolado e amigo de Warhol, Madonna e Vincent Gallo.
A primeira questão: Basquiat não era um grafiteiro e não se considerava um. Ele se definia como pintor, não como artista de rua ou representante da arte urbana de Nova York. Sim, ainda na adolescência ele começou a pichar os trens da linha D (Coney Island-Brooklyn-Manhattan) do metrô nova-iorquino ao lado do amigo Al Diaz, fundando o misterioso SAMO (“Same Old Shit”: “a mesma merda de sempre”).
Também, claro, a arte urbana influenciou seus trabalhos durante toda a carreira: traços dinâmicos, apressados, emulando a adrenalina de um grafiteiro prestes a ser pego pela polícia; planos bidimensionais, sem volume; figuras de traços simplificados; gestualidade, símbolos, palavras e frases. Mesmo assim, um pintor, não um grafiteiro.
Outra questão a ser esclarecida: Jean-Michel nunca foi um menino pobre e de rua. Ele cresceu em bom bairro no Brooklyn, em uma família de classe média. Seu pai era contador. Sua mãe sempre incentivou o filho nas artes, expondo ele desde cedo ao jazz, aos museus, ao Francês, ao Espanhol. Mas, quando seus pais se separaram e sua mãe foi internada em um hospital psiquiátrico, ele passou a adolescência em rebeldia, acabando por abandonar o colégio e dormir na rua (só por alguns dias). Logo, estaria grafitando o metrô da cidade: o “início” de sua carreira como artista.
A vida de classe média e o acesso a uma escola particular não o poupou de sofrer com o racismo e de ver de perto a questão da violência contra a comunidade negra em Nova York. Como ele próprio esclareceu à época de seu sucesso, o negro estava totalmente presente em sua obra. Preciso, também declarou que 80% de sua obra era sobre a raiva.
Basquiat nunca foi muito fã das tradicionais telas bem esticadas e com priming bem aplicado. Portas, pedaço de madeira, papéis vagabundos: valia qualquer coisa para sua arte. Os materiais também nunca se resumiram apenas à tinta a óleo. Tinta acrílica, giz de cera, spray de graffiti, colagem de papéis e fotocópias: tudo é aplicado à “tela” de caos cuidadosamente composto.
Na exposição, não faltam exemplos do tipo. “Untitled (Yellow Tar and Feathers)”, de 1982, traz dois painéis de madeira fixados verticalmente. Ao lado das aplicações de óleo, há acrílica, crayon, papéis e pedaços de espuma.
Em “Brother's Sausage”, de 1983, uma composição como um grande mural traz painéis de madeira fixados lado a lado com dobradiças de porta, visíveis entre tinta, imagens e palavras.
Já em “Procession”, de 1986, a tela é um tosco estrado de madeira com aplicações em acrílico e relevo de madeira, em composição simples de narrativa linear que lembra a série “Migrantes”, de outro artista americano e negro, Jacob Lawrence.
Na maioria dos trabalhos, a tinta agressiva e os traços dinâmicos marcados pelo gesto revelam a herança típica nova-iorquina dos "action painters" da New York School dos anos 1940 e 1950 (Willem De Kooning, Jackson Pollock, Franz Kline), mas também a grande influência de Cy Twombly, um de seus prediletos.
Já os meios e os materiais inusitados, ao lado das colagens e das fotocópias, deixam óbvia a influência de um artista que Basquiat francamente admirava, Robert Rauschenberg. Impossível não lembrar da cama que Rauschenberg pintou e pendurou na parede - hoje no MoMA, em Nova York.
Como explica o curador Pieter Tjabbes, Basquiat foi um sopro de vida, um alívio, para a cena artística.
“A arte conceitual e minimalista dominava, ao lado da pop art. Era uma relação fria do artista com a arte, a personalidade do artista ficava em segundo plano. Basquiat e seu neo-expressionismo resgatam a energia que parecia perdida”, diz.
Gestos, força, energia, cores, dinamismo. Após tantas vezes tentarem matar a pintura, Basquiat mostrava que ela estava mais viva do que nunca.
Prevendo a empolgação dos visitantes, a exibição do CCBB não se limitou à tradicional faixa branca no chão. Um pequeno dispositivo de madeira, como um painel, limita a aproximação do visitante à obra. Quem passa com o braço ou o dedo além daquela barreira faz soar um breve (e alto) alarme. Mas fotos (sem flash) serão permitidas.
Outro ponto curioso da exposição, que aproxima visitante e artista de modo quase metafísico e que promete ser um dos campeões de postagens e selfies no Instagram, é a presença de uma porta que pertenceu originalmente ao apartamento onde o artista morou por anos em Nova York. Feia e cinza, traz inscrições à tinta.
É como se aquele pedaço de porta, a poucos centímetros de distância, provasse a fisicalidade de Basquiat enquanto ser humano mortal. Claro: as obras provam a fisicalidade de Basquiat enquanto artista consagrado e nome incontestável do século 20 – e, agora, 21.
Basquiat em São Paulo: Obras da Coleção Mugrabi
Quando: De 25 de janeiro a 7 de abril de 2018
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil - Rua Álvares Penteado, 112 (Centro)
Horário: Das 9h às 21h (não abre às terças)
Quanto: Grátis
É possível agendar horário de visita e evitar filas, no site do CCBB.
Produtora: Art Unlimited
Curadoria: Pieter Tjabbes
Patrocínios: BB Seguridade, Brasilcap, Grupo Segurador Banco do Brasil e Mapfre