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As cartas marcadas no setor editorial da França

Nos últimos 12 meses, editoras francesas vêm aparecendo em investigações on-line e ocorrências policiais

 (Andrea Mantovani/The New York Times)

(Andrea Mantovani/The New York Times)

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Daniel Salles

Publicado em 19 de janeiro de 2021 às 09h33.

As editoras francesas geralmente são vistas na seção de livros dos jornais ou discutidas com quase reverência em programas literários na televisão. Mas, nos últimos 12 meses, elas vêm aparecendo em investigações on-line e ocorrências policiais.

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A sede de Paris da editora Proust & Céline foi invadida em fevereiro por policiais em busca de documentos que incriminassem um escritor pedófilo, Gabriel Matzneff. Um poderoso editor foi pego em um esquema que deu a Matzneff um prestigioso prêmio literário, concedido por um júri que incluiu o ganhador do Nobel de Literatura de 2008, um membro "imortal" da Academia Francesa e alguns dos escritores mais vendidos da França.

Esses acontecimentos e outros revelam uma imagem mais nítida de uma elite literária isolada, há muito tempo acostumada a operar acima das regras comuns – de moralidade, negócios ou bom senso –, de acordo com dezenas de entrevistas ao longo do ano passado.

"É provavelmente um dos últimos setores que permaneciam protegidos de investigações e da apreensão de documentação de acordos ilícitos ou favoritismo. É um dos últimos setores em que ninguém procurava por isso", disse Olivier Nora, chefe da Grasset, uma das principais editoras.

Foi o próprio Nora quem chamou a atenção para a publicação de um livro: "Consentimento", o relato de Vanessa Springora, que, aos 14 anos, se envolveu com Matzneff, o escritor abertamente pedófilo que foi protegido durante décadas pela elite literária, midiática e política da França. Sua publicação em janeiro de 2020 – e subsequentes revelações sobre Matzneff, seus apoiadores e suas outras vítimas – desencadeou um momento #MeToo na França, um acerto de contas sobre sexismo, idade e consentimento, e brigas entre políticos e feministas na capital.

Olivier Nora, à frente da editora Grasset (Andrea Mantovani/The New York Times)

Nora afirmou não ter hesitado em publicar o livro, embora seu conteúdo envolvesse indivíduos dos restritos círculos literários da França. "É um ambiente tão incestuoso que você não publica nada se começar a dizer vai desagradar a essa ou àquela pessoa", observou ele, acrescentando: "Pensei que poderia causar um rebuliço nesse ambiente, mas nunca pensei que teria esse efeito borboleta que terminaria em um tsunami."

Como chefe de uma das principais editoras nas últimas duas décadas, Nora, de 60 anos, tem um papel incomum na França – o executivo-chefe de uma empresa, mas também o fiador do que ele mesmo descreveu como um "bem social", em uma nação onde a ficção permanece sagrada.

Em uma entrevista recente em seu escritório, Nora falou de seu compromisso com a publicação de obras que reflitam as visões divergentes de uma sociedade que muitas vezes parece estar em guerra consigo mesma, mesmo reconhecendo que a indústria editorial normalmente não o faz. Ele parecia dividido entre sua crença de que os júris literários da França – repletos de conluios e conflitos de interesse – deveriam se reformar e suas dúvidas de que isso fosse possível.

Ele não é o único a ter dúvidas. Hugues Jallon, chefe desde 2018 da Seuil, outra editora de destaque, disse ter ficado cada vez mais frustrado com a influência corrosiva dos júris literários.

Ao contrário do Booker Prize no Reino Unido ou do Pulitzer nos Estados Unidos, onde os júris mudam a cada ano e os jurados se afastam de potenciais conflitos de interesse, na maioria dos principais prêmios franceses os jurados têm atuação vitalícia e podem até ser funcionários de uma editora, preservando os interesses de uma elite estabelecida.

"O sistema é uma aberração. Deveria haver regras rígidas contra ser jurado quando você é empregado de uma editora", ressaltou Jallon, de 50 anos.

Muito dinheiro está em jogo. Segundo Jallon, é tal o impacto dos prêmios nas vendas e no resultado final de uma editora que chega a influenciar as decisões sobre o que a Seuil publica, deixando outras obras de escanteio.

Quando o assunto são os prêmios, incluindo os melhores como o Renaudot, até mesmo um pouco de pressão pode ser exercida, de acordo com Jallon. "Nós nos encontramos com os jurados e dizemos a eles: 'Leia este, é para você.'"

O impacto financeiro de ganhar um Goncourt, o maior prêmio, é "enorme; é uma distorção enorme", afirmou Jallon, acrescentando que os proprietários da Seuil estavam profundamente cientes disso. "Eles me perguntam: 'Então você vai levar o Goncourt este ano?'", revelou.

As reservas de Nora e Jallon são especialmente significativas porque, historicamente, com a Gallimard, suas editoras, a Grasset e a Seuil, lideraram a indústria na França. Apelidadas de "Galligrasseuil", as três há muito tempo controlam os prêmios literários.

Desde 2000, essas casas receberam metade de todos os prêmios nas quatro maiores disputas literárias da França, publicando, ao mesmo tempo, os livros de quase 70 por cento de seus jurados. Dos 38 julgadores atuais nos quatro melhores prêmios, quase 20 por cento são funcionários de uma das três editoras.

Antoine Gallimard, o chefe da empresa fundada por seu avô, não quis dar entrevista para este artigo. Embora amplamente considerada a editora mais prestigiada da França, a Gallimard foi criticada no último ano porque publica Matzneff há muito tempo.

Jean-Yves Mollier, especialista em história da publicação, disse que a Gallimard demorou mais para mudar que as outras grandes editoras: "Ela finge estar acima da questão e considera que o tempo a exonerou das disputas."

Especialistas da indústria apontaram que a Gallimard foi a editora mais agressiva na busca pelos principais prêmios.

Béatrice Duval, diretora da Le Livre de Poche, a maior editora de livros de bolso da França, e ex-editora da Gallimard, contou que a estratégia de negócios de sua ex-empregadora se concentrava basicamente na conquista de prêmios.

Nora afirmou que, na Grasset, começou a afastar sua empresa do modelo de negócios de prêmios quando assumiu há duas décadas. Naquela época, a Grasset costumava dar adiantamentos generosos a escritores/jurados para garantir sua lealdade – prática que acabou chamando a atenção das autoridades fiscais, porque os autores muitas vezes nem chegavam a entregar seus originais.

Não que isso necessariamente incomodasse a Grasset. "Havia alguém que sabia que não tinha honrado um contrato com você, que estava moralmente em dívida com você, fato que aumenta sua influência sobre essa pessoa", disse Nora.

Hoje, os editores podem limitar o progresso de um escritor depois de vendas ruins, mas se abstêm de fazê-lo caso esse autor faça parte de um júri, acrescentou Nora: "O adiantamento não vai diminuir nem ser indexado às vendas, porque o autor pertence a um júri."

Não há "talento" suficiente no pequeno mundo literário francês para estabelecer um sistema de júri com novos jurados todos os anos, segundo Nora. Ele sugeriu que mudar um terço de cada júri a cada cinco anos seria mais viável e traria pessoas novas.

Cópias do livro de Vanessa Springora (Andrea Mantovani/The New York Times)

Duval, no entanto, comentou que, mais do que qualquer outra coisa, foi a resistência do setor literário que impossibilitou a adoção da mudança anual de jurados. "As pessoas envolvidas não têm interesse em mudar", observou ela, acrescentando que as principais editoras se beneficiam ao empregar ou publicar obras dos jurados. "É mais fácil controlar os jurados dessa maneira."

Hoje, os júris são dominados por homens brancos idosos com nomeação vitalícia, resultando em uma espécie de "entropia" que, segundo Nora, também aflige a indústria editorial – e a França em geral. Se o mundo literário permanece "muito, muito, muito branco", disse ele, o mesmo acontece com "a imprensa, a televisão e a política" francesas.

Os poderosos comitês de editores e leitores profissionais, que decidem o que é publicado nas casas mais prestigiadas da França, não refletem a diversidade do país.

Dos 37 membros dos comitês da Grasset, da Seuil e da Gallimard, a média de idade é de 62 anos, cerca de um terço são mulheres e apenas um não é branco, de acordo com dados fornecidos pelas três casas.

Nora declarou estar consciente de que as gerações mais velhas da França tinham uma perspectiva diferente sobre gênero, feminismo, raça, colonialismo e outras questões sociais prementes do país. "É óbvio que as pessoas da minha geração experimentam a consciência de temas quentes de uma maneira defensiva – há uma dificuldade imensa de pensar contra si mesmo e de desconstruir um sistema do qual somos o produto", concluiu ele.

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