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A culpa é das estrelas

Uma concorrida cerimônia quinta-feira retrasada no hotel Belmond Copacabana Palace, no Rio, reuniu os principais chefs de cozinha do país. Era o lançamento da edição 2016 do Guia Michelin, o mais respeitado e rigoroso guia gastronômico do mundo, que pelo segundo ano premiava os melhores restaurantes do Rio e de São Paulo. Apesar de sorrisos […]

FERNANDES: ele é o brasileiro com mais estrelas Michelin depois do antigo sócio Alex Atala / Gladstone Campos

FERNANDES: ele é o brasileiro com mais estrelas Michelin depois do antigo sócio Alex Atala / Gladstone Campos

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Da Redação

Publicado em 7 de maio de 2016 às 10h00.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h17.

Uma concorrida cerimônia quinta-feira retrasada no hotel Belmond Copacabana Palace, no Rio, reuniu os principais chefs de cozinha do país. Era o lançamento da edição 2016 do Guia Michelin, o mais respeitado e rigoroso guia gastronômico do mundo, que pelo segundo ano premiava os melhores restaurantes do Rio e de São Paulo. Apesar de sorrisos terem sido salpicados com fartura pelo salão, era nítido que havia ali um grupo ainda mais seleto, o das pessoas que estavam indisfarçavelmente felizes com o resultado. Entre elas, um, e no máximo um, que poderia ter o talento para cozinhar classificado como discutível – ou pouco conhecido.

O empresário paulistano Marcelo Fernandes, que entrou sem planejar no ramo da gastronomia no fim dos anos 1990 para ajudar o amigo de colégio Alex Atala, hoje é a face mais visível de um império com cinco casas consolidadas em São Paulo. Depois de um ano problemático, de crise, queda de faturamento e mudança de chefs, Fernandes conseguiu manter as duas estrelas recebidas na primeira edição do Michelin, a do italiano Attimo e a do japonês Kinoshita. Das quatorze estrelas distribuídas em São Paulo, apenas um homem saiu do Copa mais iluminado do que ele, o próprio Atala. O chef mais famoso do país também manteve suas premiações do ano anterior, do restaurante Dalva e Dito e do D.O.M., único brasileiro laureado com duas estrelas. Mas vale lembrar que, neste caso, Fernandes também tem algo a ver com isso.

Em 1999, a parceria com o ex-colega de colégio para abrir o D.O.M. foi um investimento de risco para um empresário que não tinha qualquer intimidade com a gastronomia. “Eu devia ter algo em torno de 200, 300.000 reais na época e investi tudo no restaurante”, lembra Fernandes. O dinheiro era o que tinha sobrado de uma fusão malsucedida de sua empresa de produtos de higiene e descartáveis, que havia perdido espaço no mercado globalizado. Já era a terceira empresa dele.

Restaurante sem gás

Fernandes é filho de um advogado e contador e de uma dona de casa que viveu uma infância de classe média baixa pelas ruas do bairro paulistano do Ipiranga. Começou cedo a tentar ganhar dinheiro. Aos dezesseis anos, foi emancipado para poder abrir sua primeira empresa, de serviços de despachante. Depois abriu outra, de hortifrutigranjeiros em São Caetano.

Na sequência, quase trabalhou no McDonald’s (começar na faxina o desanimou), fez carreira no banco Bamerindus, onde entrou mensageiro e saiu gerente depois de sete anos, formou-se na faculdade e investiu na empresa de produtos de higiene, a que naufragou na fusão. Depois de seis meses de planejamento com Atala, quando o D.O.M. finalmente abriu em novembro de 1999, no dia do aniversário de 33 anos de Fernandes (só com canapés frios, a Comgás não fez a ligação da casa em tempo), ele já havia feito mais do que boa parte dos mortais ao longo de uma vida.

“É importante ressaltar o papel que o Marcelo teve no início do D.O.M., a sensível diferença entre o que o restaurante era e no que ele se transformou”, ressalta Ricardo Castanho, editor de restaurantes do GUIA QUATRO RODAS entre 2002 e 2012. “O Alex começou com um cardápio com base europeia, que não experimentava tanto, e o restaurante parecia ter vergonha de se assumir como alta gastronomia brasileira. O Marcelo topou o risco de investir em pesquisa, em produtos amazônicos, mudar o perfil que fez o D.O.M. ser o que é hoje”, lembra Castanho.

A vida sem um D.O.M.

Fernandes vendeu sua parte no D.O.M. em 2006, “um bom negócio para todos”, como ele define sem detalhes. Quis fugir do investimento lento e meticuloso da alta gastronomia e montou a Mercearia do Francês, em Higienópolis, bairro nobre na área central da cidade. Mas já no ano seguinte quis voltar para o mundo das contas mais salgadas. Ele nega qualquer vaidade envolvida na mudança, mas não é difícil perceber que uma casa como a Mercearia podia dar dinheiro a Fernandes, mas não lhe dava prestígio.

Por isso, ele estava com viagem marcada para pesquisar tendências para um novo restaurante francês de alta gastronomia quando soube que o Kinoshita, japonês que frequentava na Liberdade, ia fechar as portas. Chamou o chef Tsuyoshi Murakami e propôs reabrir a casa em parceria. “Eu queria fazer uma alta gastronomia que mesmo no Japão era rara e extremamente cara. Vi que era mais complicado do que imaginava, ia precisar investir forte na casa, mas pelo menos o chef eu já tinha”, lembra Fernandes. A viagem passou a ser para o Japão, e com Murakami – os dois passaram 45 dias comendo no país natal do chef.

“Eu tive outras propostas para reabrir o Kinoshita, mas pensei: ele posicionou o Alex Atala internacionalmente, vou aprender muito com ele. E continuo aprendendo”, garante o chef, que também entrou como sócio na nova casa mas prefere a cozinha. “Saber que o Marcelo está cuidando do negócio me deixa mais livre para ser só chef, e ser um chef melhor”, ressalta. Ricardo Castanho lembra o impacto que o Kinoshuta causou quando abriu, em 2007. “Havia um reducionismo de que cozinha japonesa era só sushi e sashimi, cujo maior expoente era o chef Jun Sakamoto. O Kinoshita trouxe as receitas quentes, o que o Murakami já fazia na Liberdade com resultados nem sempre bem-sucedidos. O Marcelo conseguiu botar o serviço nos eixos, tirou o Murakami do gueto e ampliou a oferta da comida dele de forma mais equilibrada. Para mim, era o melhor japonês da cidade quando abriu”, lembra o jornalista. O que talvez não seja o caso hoje, pelo menos para Arnaldo Lorençato, crítico de restaurantes da revista VEJA SÃO PAULO. “O Kinoshita já brilhou mais, ano passado ele não entregou o que prometia. Falta uniformidade aos pratos, especialmente considerando o preço”, aponta Lorençato. Por lá, uma refeição sem grandes extravagâncias chega facilmente aos 200 reais por pessoa.

Fernandes estima o investimento no Kinioshita, na época, em dois milhões de reais. Já com o nome estabelecido entre os restaurateurs da cidade, em 2011 ele investiu quatro milhões de reais para abrir o espanhol Clos de Tapas, que depois virou Clos. No ano seguinte, deu seu passo mais ousado. O italiano Attimo, em parceria com o irmão, tornou-se seu investimento mais alto, estimado em oito milhões de reais. “Meus projetos são a médio e longo prazo. No Attimo, o Jefferson e mais duas pessoas da equipe, por exemplo, ficaram quase um ano na Europa imersos para poder ter o choque. Tudo isso eu faço com prazer, mas tem um custo”, diz.

Nem tudo são flores 

O Jefferson em questão foi a maior fonte de dor de cabeça do empresário em 2015. Jefferson Rueda, titular da cozinha do Attimo desde o início do projeto, desfez a parceria ano passado. Enquanto Rueda abriu com sucesso A Casa do Porco, Fernandes manobrou com habilidade a cozinha do Attimo para que ela passasse de ítalo-caipira para simplesmente italiana. A ideia era que, sob o comando de Francisco Pinheiro, ela sentisse a menor falta possível do ex-comandante. A separação foi tranquila, pelo menos para o empresário.

É possível que o processo não tenha sido tão fácil para Rueda, uma vez que, convidado a falar sobre o ex-chefe para essa reportagem, informou por meio de sua assessoria que precisava “dar mais um tempo” para tratar do assunto. É natural, em qualquer separação, que um lado sofra mais que o outro. Ao falar da relação com chefs estrelados, é a única vez em quase seis horas de conversa que Fernandes abandona a diplomacia. “Chefs são importantes, mas não são fundamentais, porque no fim é o restaurante que tem de pagar essa conta. Sem uma boa equipe e credibilidade por trás, não se tem um bom chef. Nos meus restaurantes, o chef é importante, mas o restaurante é maior. O chef sai, o restaurante permanece.”

“A saída do Jefferson fez o Attimo perder em conceito, mas não em qualidade”, diz Arnaldo Lorençato, “A mão dele como restaurateur é perceptível no Clos, por exemplo, que nasceu espanhol e hoje é mais contemporâneo, e mudou sem perder a qualidade”, ressalta o crítico. Diante disso, a manutenção das estrelas Michelin foi uma vitória. Além de perder Rueda, Fernandes sentiu na pele a crise. O grupo, que atende cerca de 30.000 pessoas por mês, não perdeu clientes, mas o gasto por mesa baixou. “O meu cliente tomava aperitivo, degustava o couvert, uma entrada, prato principal e sobremesa. Hoje ele pula o aperitivo, escolhe entre a entrada ou o couvert e divide a sobremesa”, conta Fernandes. O ticket médio do grupo caiu de 180 para 160 reais por pessoa, e o faturamento, que ele não revela, encolheu 30% nos últimos meses. “Já tivemos 280 funcionários, hoje temos 220 e precisamos reduzir a 190, mas não vamos abrir mão de hospitalidade nem de cuidado com os detalhes”, garante o empresário.

Apesar dos problemas, em dezembro, em parceria com o irmão e um amigo, Fernandes abriu a hamburgueria Tradi, vizinha ao Attimo, uma homenagem aos sanduíches que comiam na adolescência no Ipiranga. Em março, teve de fechar a filial da Mercearia do Francês. Entre altos e baixos, diz que trabalha para estar com negócios bem azeitados quando o país recobrar o crescimento.

Marcelo não quer só comida

De sócio de restaurante acidental, Fernandes virou um obcecado, que almoça e janta de segunda a sexta em seus restaurantes e ainda leva a família nos fins de semana para comer hambúrguer na Tradi. “Ele claramente trabalha com um modelo muito diferente daquele empresário que só passa nas casas no fim da noite para pegar o dinheiro”, ressalta Ricardo Castanho. Na crise, o serviço de atender em residências ou escritórios virou parte importante da receita de todas as casas. Ele atende grandes corporações, grupos médios e casais – quem estiver em São Paulo e quiser pedir alguém em casamento com uma experiência completa do Clos, com menu degustação harmonizado, vai desembolsar hoje algo entre 800 e 1.000 reais.

Pai de Gabriel, de sete anos, e de Rafael, de oito, Fernandes viajou esta semana para um lugar não revelado fora do Brasil para comemorar 13 anos de casamento com Juliana, uma advogada dez anos mais nova que hoje trabalha com ele, no comando do marketing digital e da parte de eventos dos restaurantes. Promete mais um projeto para 2016, provavelmente algo mais simples e em um bairro vizinho à Vila Nova Conceição, onde estão seus principais restaurantes e onde vive. A possibilidade do fracasso não parece assustá-lo. “A minha empresa de despachante ainda está aberta, se um dia isso parar de dar lucro, volto para lá”, diz, entre um meio sorriso. Parece ironia, mas é impossível ter certeza.

(Jardel Sebba) 

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