Protestos nos EUA: cinco filmes para entender questões raciais e violência policial (Christian Mang/Reuters)
Guilherme Dearo
Publicado em 1 de junho de 2020 às 13h08.
Última atualização em 1 de junho de 2020 às 14h04.
Estados Unidos, 1937. O poeta e ativista Abel Meeropol, chocado com uma fotografia de 1930 feita por Lawrence Beitler que mostra dois negros enforcados em uma árvore no sul dos Estados Unidos, linchados e mortos por uma multidão branca enfurecida, escreve "Strange Fruit", poema-protesto sobre os linchamentos raciais nos EUA. Os homens eram J. Thomas e Abraham S. Smith e estavam presos, ainda esperando por um processo formal de acusação e julgamento, quando foram retirados de suas celas em Marion, Indiana.
Estados Unidos, 1939. A cantora negra americana Billie Holiday, uma das grandes vozes da música no século 20, grava a canção "Strange Fruit", sobre "corpos negros balançando na brisa sulista, estranhas frutas penduradas nos álamos". A audiência branca pouca entendia o significado por trás da música. Para muitos dos casais que assistiam às apresentações de Holiday, a canção era romântica e falava de namorados abraçados e apaixonados.
4 de abril de 1968. Martin Luther King, ativista político negro e Prêmio Nobel da Paz em 1964, é assassinado em uma varanda em Memphis, alvejado por um tiro à distância dado por James Earl Ray, um homem branco que acreditava que os protestos incentivados por King eram propositais para enfraquecer o país político e economicamente.
1989. Spike Lee, nome iniciante no cinema americano, lança "Do The Right Thing", filme que o leva aos holofotes. Na história, o personagem negro interpretado por Bill Nunn é morto enforcado por um policial branco, em uma ocorrência até então banal. A morte gera um levante no bairro nova-iorquino do Brooklyn e escancara as divisões políticas e raciais entre brancos e negros.
23 de fevereiro de 2020. Ahmaud Arbery, 25 anos, é morto a tiros por dois homens brancos, pai e filho, enquanto praticava jogging em uma rua de Brunswick, Georgia. Um vídeo revelado posteriormente, crucial para a investigação da polícia, mostrou que a dupla perseguiu Arbery por muitos metros. Os criminosos alegaram que pensavam que Arbery era um ladrão.
25 de maio de 2020. Suspeito de comprar cigarros com uma nota falsa, George Floyd é abordado pelo policial Derek Chauvin, em Minneapolis. Ele discute com o policial, mas é algemado e fica deitado no chão. O policial coloca o joelho sobre o pescoço de Floyd por mais de oito minutos. Floyd avisa que não consegue respirar, mas não adianta. Acaba morrendo. Pedestres gravam todo o incidente. Protestos contra o racismo e o assassinato de negros por agentes da lei tomam conta de dezenas de cidades nos EUA e no mundo.
O problema racial nos Estados Unidos, de passado escravocrata e segregacionista, é complexo e vem de séculos. Das plantations no sul do país à Guerra Civil que opôs estados do Norte contra a escravidão e estados sulistas favoráveis à manutenção do regime, passando pelos movimentos civis por direitos e pelo fim da segregação racial nos anos 1950 e 1960 e por líderes como Martin Luther King, Rosa Parks, Angela Davis e Malcolm X, a questão vem sendo debatido há anos através de ações políticas, protestos, teses, programas de TV, livros, filmes e músicas.
Tudo isso remete, agora, às manifestações intensas que tomaram conta dos Estados Unidos e ecoaram em diversos cidades do mundo. A morte de Floyd foi o estopim para protestos que, há décadas, apontam para o racismo pouco velado nos EUA e para a violência policial.
Confira cinco documentários e séries documentais disponíveis na Netflix para entender mais sobre a questão racial nos Estados Unidos, a brutalidade policial e a nova onda de manifestações.
Direção de Ava DuVernay
A diretora de ficção e documentários Ava DuVernay parte de algumas estatísticas alarmantes para compor seu documentário de 2016 "13th", indicado ao Oscar e premiado com o Emmy. Entre 1980 e 2015, a população carcerária americana passou de 500 mil para 2,2 milhões de pessoas, um aumento de mais de 200%. Nesse período, a taxa de criminalidade americana não caiu na mesma proporção, mas caiu pela metade (de 10.2 assassinatos por 100 mil habitantes em 1980 para 5.0 assassinatos por 100 mil habitantes em 2018). Contudo, é impossível dizer que tais prisões são único e diretamente responsáveis pela queda acentuada de crimes no período. Outro número que chamou a atenção de DuVernay: os negros correspondem a cerca de 13% da população americana, mas homens negros representam 37% dos presos do país.
A partir disso, a diretora analisa como a 13ª emenda da Constituição americana, criada logo após o fim da Guerra Civil americana e do fim da escravidão no país, garantiu, nas entrelinhas, a perpetuação da escravidão do povo negro no país e como isso, séculos depois, reflete no encarceramento em massa de negros e a violência policial direcionada a essa população. O item garantia a liberdade aos negros, mas dizia que havia exceção para aqueles que tinham cometido algum crime. Em uma sociedade onde dificilmente a justiça tratava com isenção os escravos e os negros, esses voltaram imediatamente para a prisão e começaram a fazer trabalhos forçados (algo altamente lucrativo nos séculos 20 e 21, como o filme mostra, ao tratar da privatização de prisões e das empresas que lucram com o trabalho desses condenados). "A 13ª Emenda" traz depoimentos de Barack Obama, Angela Davis, Bryan Stevenson e outros e também analisa como a chamada "guerra às drogas", iniciada com Ronald Reagan, também levou à prisão em massa da população negra.
Complemento
Leia o livro "Estarão as Prisões Obsoletas?", de Angela Davis, que aborda pontos comuns ao documentário e discute a formação das prisões americanas, sua configuração racial e como elas não resistem às novas políticas do século 21.
Criado por Jenner Furst, Julia Willoughby Nason e Nick Sandow
A série documental em seis episódios, de 2017, conta a história do jovem americano Kalief Browder. Preso em 2009 aos 16 anos, acusado de roubo de uma mochila, ele ficou de 2010 a 2013 preso, já que sua família não podia pagar, inicialmente, os 900 dólares de fiança. Browder ficou preso em Rikers Island por mais de três anos sem julgamento formal. Na prisão, sofreu espancamentos, abusos sexuais e mentais e chegou a ficar na solitária por dois anos. Acabou solto, já que não foram encontradas provas contra ele. Dois anos depois de ser libertado, cometeu suicídio.
A série mostra toda a problemática racial no sistema policial, judicial e carcerário americano e esmiúça toda a polêmica em torno da investigação contra Browder e, depois, a investigação sobre as irregularidades do processo contra ele e também do tempo que passou preso e sofreu abusos, aparentemente sem proteção e devidas ações dos agentes prisionais.
Complemento
Leia o romance de 1974 "Se a Rua Beale Falasse", do escritor negro americano James Baldwin, sobre um jovem negro preso falsamente acusado por um policial. O livro de Baldwin explora o amor entre jovens e levanta questões como racismo e injustiça na Nova York dos anos 1970. O livro virou filme em 2018, dirigido por Barry Jenkins, e levou um Oscar pela atuação de Regina King.
Direção de Yance Ford
Em tom intimista, a diretora negra americana Yance Ford conta em "Strong Island", documentário de 2017 indicado ao Oscar, a história de seu irmão William Ford Jr., assassinado em 1992 aos 24 anos, em um crime que acabou impune. Em abril de 1992, William, um professor em Long Island, Nova York, foi morto por Mark. P. Reilly, um mecânico automotivo branco de 19 anos. Os dois teriam discutido quando William questionou a qualidade do reparo feito por Mark no carro da namorada. Desarmado, William levou um tiro de rifle no peito. Posteriormente, um júri em Suffolk County composto só por pessoas brancas inocentou Mark, que alegou autodefesa.
Yance Ford explora, décadas depois, como o crime afetou sua mãe e sua família. Ela passou anos revisitando arquivos pessoais, fotos e notícias de jornal para recontar a história do irmão e refletir sobre a parcialidade da justiça americana e o racismo nos Estados Unidos.
Complemento
Leia o livro "Democracy in Black", de Eddie S. Glaude Jr., professor da Universidade de Princeton e presidente do Departamento de Estudos Afro-Americanos da universidade. Em Democracy in Black: How Race Still Enslaves the American Soul, Glaude analisa a situação racial nos EUA após os dois mandatos de Barack Obama e reflete sobre os sonhos não correspondidos após a presidência histórica. O pensador reflete sobre racismo, supremacia branca e violência.
Direção de Daniel Lindsay e T.J. Martin
"LA 92", filme de 2017, explora um momento histórico da cidade de Los Angeles: os protestos e ondas de violência que tomaram conta da cidade em 1992. O estopim para a explosão em massa que provocou passeatas, embates, incêndios e destruição foi o caso de Rodney King, trabalhador de construção civil. Em 3 de março de 1991, King, negro, foi violentamente detido e espancado por policiais brancos após ser acusado de dirigir em alta velocidade. A ação policial foi capturada em vídeo. Em abril de 1992, um júri de maioria branca absolveu os policiais. A injustiça deu início a uma guerra racial na cidade, que durou três dias e terminou com 58 mortes, 2.800 feridos, 3.100 comércios destruídos e prejuízos de mais de US$ 1 bilhão. Posteriormente, Rodney King recebeu uma indenização de US$ 3,8 milhões.
O documentário, premiado com o Emmy, esmiúça através de imagens de arquivo a onda de protestos, mais de duas décadas depois, e faz uma ligação do episódio de 1992 com outros momentos da história americana, como os "Protestos Watts" de 1965, a eleição de Tom Bradley em 1973 e o assassinato da menina Latasha Harlins, em 1991.
Complemento
A tensão racial na Califórnia estava alta nos anos 1990. O caso de Rodney King teve influência direta no julgamento do ex-jogador de futebol americano O.J. Simpson, preso em 1994 sob acusação de matar sua ex-mulher e outro homem. Ele acabou inocentado, em um júri com muitas pessoas negras. Herói nacional, Simpson e seu advogado convenceram o público de que aquele era, mais uma vez, o caso de um negro sendo falsamente acusado pela justiça. Tal fator racial no julgamento é explorado no documentário da ESPN "O.J. - Made In America", ganhador de um Oscar, e na primeira temporada da série de ficção "American Crime Story", onde Cuba Gooding Jr. encarna Simpson.
Direção de Peter Nicks
O documentário de 2017, premiado no Festival de Sundance, traz o ponto de vista das forças policiais para falar de racismo, machismo, violência policial e criminalidade. O diretor Peter Nicks conta a história da polícia de Oakland, Califórnia, que passa por uma profunda reforma após pressão federal e um explosivo caso de abuso sexual. O departamento policial local tenta mudar após escândalos e pressão social, aumentando a investigação sobre policiais acusados de má conduta.
O filme mostra que, enquanto a cidade enfrentava altas taxas de criminalidade, a força policial se envolvia em escândalos de violência e prostituição. Seria possível mudar esse quadro, partindo das entranhas da justiça?
Complemento
Veja o filme "O Ódio que Você Semeia", dirigido em 2018 por George Tillman, Jr., baseado no romance da escritora negra Angie Thomas. A história gira em torno de Starr Carter, adolescente negra que vive entre duas realidades: a violência de seu bairro e a escola de elite que frequenta. Ela acaba sendo testemunha de um assassinato de seu amigo Khalil, morto por um policial.