Bússola

Um conteúdo Bússola

VOZES: o valor conceitual do trabalho

Neste mês, Thânisia Cruz, presidenta da ong #ElasNoPoder, fala sobre trabalho, dignidade e transformação social

"Não se precifica o trabalho do outro!" (kupicoo/Getty Images)

"Não se precifica o trabalho do outro!" (kupicoo/Getty Images)

Bússola
Bússola

Plataforma de conteúdo

Publicado em 25 de setembro de 2023 às 12h42.

Por Thânisia Cruz*

Este texto não surpreenderá nenhuma pessoa adulta, seja ela herdeira, empregadora ou empregada, pois a única diferença entre essas pessoas é o ponto de vista, por vezes cruel ou lucrativo, sobre o trabalho. Todas concordarão que é ele, o trabalho, que tem feito a máquina do mundo girar. 

Minha experiência com na vida profissional

Quando iniciei a minha vida profissional, eu sabia que o trabalho era pago por hora com base nas conversas que a minha mãe fazia com as minhas tias ou amigas da área educacional do Distrito Federal. Com elas, eu aprendi que as profissionais da educação são pagas por hora de trabalho, inserindo ou não no cálculo as gratificações por insalubridade, tempo de serviço, formação ou outra especificação - o que ainda não representa a valorização necessária para a categoria.

A minha primeira aula de francês, em uma escola de línguas pequena e particular da Ceilândia, custava R$13,00 a hora. Independente do número de pessoas em sala e do planejamento anterior, das horas antecipadas de impressão, contagem de material, eu recebia R$13,00 a cada 60 minutos cravados no relógio. Ao final do mês, isso girava em torno de R$ 200,00, mais ou menos. 

Naquela época, eu estava concluindo meu curso em Letras-Francês, na Universidade de Brasília (UnB). E já tinha seis anos de estudo no Centro Interescolar de Línguas de Ceilândia, que não habilita para atuar com licenciatura, porém, desenvolve inúmeras habilidades e é um capital cultural riquíssimo. Naquela época, com a disputa do mercado e o que ele impõe, eu estava consciente de que a minha oferta só teria melhora com o diploma da Universidade em mãos, mesmo com os anos de estágios em espaços do Governo Federal, mesmo que a minha aula fosse acolhedora e atingisse os objetivos sempre emergenciais de pessoas que buscavam a língua francesa para uma viagem de trabalho.

Entre 2016 e 2021, a minha jornada foi continuar a estudar francês, participar de pesquisas, buscar outras fontes de estudos fora do ensino de línguas, continuar em contato com a comunidade educacional, buscar a habilitação do DALF-C2, estudar para participar de seleções que fossem capazes de me levar à França para estudar, realizar voluntariados para ficar em contato com a minha geração, realizar o mestrado e me atualizar no ativismo. 

Todas essas ações eu fiz sendo cotista, com bolsa estudantil, prêmios/seleções e estágios afirmativos em órgãos federais. Contudo, nessa conta média, apenas para realizar a habilitação do DALF-C2 foram R$ 800,00 para a inscrição e mais uma média de R$ 2.000,00 para o cursinho. Ainda que estudando em instituições públicas, inserindo transporte, cópias e alimentações, façam as contas do investimento feito para a disputa de mercado.

Com esse cenário, eu fui treinada pelas circunstâncias a olhar o trabalho como um retorno do investimento feito. Somado a isso, o Movimento de Mulheres Negras Brasileiras me deu ferramentas capazes de me fazer disputar a noção de atuação política em coletivo e o meu compromisso é fazer o mesmo, com consciência de raça, classe e território, sabendo que o debate sobre a meritocracia não dá conta das diferentes demandas que temos enquanto sociedade.

Bem ou mal, hoje, eu sei que uma hora/aula do meu trabalho enquanto professora de francês custa R$ 150,00, minimamente, e é assim que eu precifico qualquer outro trabalho que eu faça, por horas em aulas, palestras, planejamentos ou por quantidade de caracteres em revisões.

Meu pai sempre diz que a gente não deve dormir com os olhos dos outros. Agora, com uma experiência de pessoa negra e que contou com apoio, enquanto gestora, atuando por vezes voluntariamente, gerenciando equipe, com salário ou sem salário, eu escrevi o seguinte lema no peito: NÃO SE PRECIFICA O TRABALHO DO OUTRO

Hoje, estou Presidenta da ONG Elas no Poder e continuo realizando outros trabalhos por interesse próprio e compromisso político com o que já realizava antes, como o Projeto Katendê. Assim, para contratar assistente de produção, tradução, fotógrafa, cozinheira, psicóloga, motorista, assistente de vendas ou pensar na atuação do voluntariado, eu preciso fazer um passo-a-passo: 1. Analisar o orçamento; 2. Observar a quantidade de trabalho; 3. Analisar como seria a contratação da equipe; 4. Apresentar uma proposta de valor ou avaliar a proposta de valor enviada; 5. Decidir com a pessoa.

No entanto, independente desse passo-a-passo o que deve ser primordial para todas nós é que a dignidade não deve estar em jogo. Ela não deve ser comprometida por frases como “eu acho que isso aqui dá, o trabalho é tranquilo”; “são poucas horas de trabalho, esse valor não precisa de refeição ou transporte”. 

Estando diante dessas frases é onde aprendo, diariamente, que não existe branco aliado ou almoço gratuito, pois tem sido no seio do antirracismo que a maioria dessas frases são ditas e eu não preciso me envergonhar em relatá-las, pois os fatos são mais reveladores do que as opiniões.

O trabalho no Brasil e na atualidade

Em 2023, a história do Brasil está diante de nós e este modo de pensar é o cerne da escravidão que pode pegar toda a sociedade de surpresa, silenciosamente. A base fundamental do trabalho, no Brasil, é a escravidão, a visão colonial sobre o tempo de serviço que uma pessoa dedica aos sonhos de outra. A escravidão está no fazer com que pessoas trabalhem sem ter dignidade. Infelizmente, no capitalismo a dignidade se desenvolve com a energia do dinheiro para todas as pessoas. Sendo todas demandantes de necessidades básicas: alimentação, moradia, lazer, cultura, saúde.

Então, temos aqui a solução que não leva a nossa crença: a urgência do entendimento dos quadros ditos antirracistas para se responsabilizarem pelos ditos negócios de impacto, organizações sociais, ações culturais sustentáveis com salários e diárias justas e dignas. Nesse caso, não existe outra proposta diante das seguintes manchetes: 

Mulher é resgatada após 72 anos de trabalho escravo doméstico no Rio”, Repórter Brasil, 2022. 

Trabalhadora doméstica vítima de escravidão moderna por 30 anos é resgatada em Teresina”, G1, 2023.

Caso de Madalena, escrava desde os oito anos, expõe legado vivo da escravidão no Brasil”, El País, 2021.

Em quê “esse valor está muito alto para uma poucas horas de trabalho” dito na educação, na cultura, nas organizações, se distancia de todas das manchetes?

Isto porque existe valor conceitual em todos os trabalhos, com ou sem diploma. O serviço prestado é o tempo de dedicação em buscar soluções e ele deve ser valorizado pela concepção humana e por uma legislação trabalhista efetiva, e isso começa com atitudes mais coerentes no serviço público, privado ou em atividades autônomas. É sobre dignidade. E não se pode tirar isso do próximo.

*Thânisia Cruz é presidenta do #ElasNoPoder, projeto voltado para o preparo e competitividade de campanhas políticas femininas

Siga a Bússola nas redes: Instagram | Linkedin | Twitter | Facebook | Youtube

Veja também

A importância do ODS 5, sobre igualdade de gênero, para o Brasil na assembleia geral da ONU

Menos de 20% dos cargos das áreas de tecnologia são ocupados por mulheres

Gestão Sustentável: o futuro do passado

Acompanhe tudo sobre:Bússola Vozesfuturo-do-trabalhoDiversidade

Mais de Bússola

7 em cada 10 brasileiros apostam na produção de biocombustível como motor de crescimento econômico

97% das empresas com receita de US$ 1 bi já sofreram violação por IA generativa, aponta instituto

Luiz Garcia: como a construção civil pode superar os desafios provocados pelo aumento do INCC

Bússola Cultural: moda periférica com Karol Conká e Tasha&Tracie