Estamos nos desenvolvendo e desenvolvendo líderes que reconheçam a importância da justiça de gênero e da justiça racial. (Christopher Aluka Berry/Reuters)
Bússola
Publicado em 21 de março de 2022 às 16h00.
Por Jaime Almeida*
No mesmo mês que se registra o Dia Internacional da Mulher, foi instituído pela ONU em 1966, o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, em memória às vítimas de Shaperville, mortas seis antes. Ambas as datas são mais que bem-vindas para marcar momentos de reflexão sobre injustiças e o quanto precisa ser feito em nossa sociedade, mas sem dúvida alguma, acredito que devemos fazer com que tanto a causa em prol de justiça para com as mulheres, tanto quanto com a justiça racial, dure mais de um dia por ano, precisamos aumentar sua ocorrência por mais 364 dias. Somente dessa maneira poderemos avançar para um mundo mais igual e mais humano.
O dia 21 de março ganhou esse marco após o sangrento dia, em 1960, quando 69 sul-africanos negros foram assassinados durante uma passeata de protesto contra a discriminação racial, onde se clamava por direitos iguais de ir e vir. Em Shaperville, bairro de Joanesburgo, na África do Sul, as pessoas negras precisavam andar com uma caderneta onde constava a lista dos lugares onde elas tinham permissão para ir, mais uma das inúmeras e agressivas práticas de racismo em curso à época.
Mas o que é que Shaperville tem a ver com o Brasil e com o mundo para que faça sentido pararmos e refletirmos sobre essa data? Definitivamente tem muito a ver. Tem por exemplo, alta semelhança com a guerra que nesse momento massacra os ucranianos.
O ato da violência, aliás, é muito similar, são seres humanos sendo dizimados todos os dias dessa guerra que não tem nenhum sentido ou justificativa. Por que ceifar tantas vidas inocentes de mulheres, homens e crianças? Apenas nos primeiros 20 dias de guerra a Agência de Direitos Humanos da ONU registrou 726 mortes de civis na Ucrânia, fazendo uma média de 36 mortos a cada dia.
E aqui no Brasil? Bem, por aqui temos aproximadamente 1,35 massacre de Shaperville acontecendo todos os dias, esse é o número que resulta da divisão dos 34.466 assassinatos de pessoas negras, registrados somente em 2019, número que cresce anualmente em registros analisados desde 2009 pelos sistemas Sim e Sinan, 2021.
Então aparece uma triste dança de números 69, 36 e 94. O primeiro foi o número de pessoas negras assassinadas na África do Sul em 1960. O seguinte é o número médio de civis ucranianos assassinados diariamente na guerra imposta pelo governo russo agora em 2022. Por fim, o número médio de assassinatos de pessoas negras no Brasil no último registro em 2019. Qualquer um desses números, isoladamente ou todos eles juntos, revelam massacres, injustiças sociais e raciais que impactam populações sem defesa em três continentes diferentes.
Outra pergunta que eventualmente pode surgir é: “Mas num ambiente de discussões corporativas e de negócios, onde é que esse entra tema?”. E a resposta rápida é que “Entra em tudo”. Enquanto a chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil for 2,6 vezes maior do que uma pessoa não negra, a chance dessa mesma pessoa negra chegar a um posto de trabalho é reversamente contabilizada.
Dentre os mais de 13 milhões de desempregados no Brasil, 72,9% são pessoas negras. Junte-se a isso mais dados já conhecidos de que os profissionais negros estão majoritariamente em posições de entrada, posições operacionais e longe das lideranças na maioria das empresas no país.
Vejamos, na liderança das 500 maiores empresas do Brasil apenas 4,7% são pessoas negras e se olharmos especificamente para as mulheres negras, encontraremos a assustadora representatividade de apenas 0,4% em posições executivas.
Então se queremos eliminar a discriminação racial no Brasil precisamos, necessariamente abrir as portas das empresas para os profissionais negros, precisamos permitir que os profissionais negros possam ter direitos iguais de desenvolvimento e crescimento dentro dos quadros corporativos e alcançar posições de liderança na mesma raia de oportunidades e justiça com as quais as pessoas brancas são tratadas.
Já discuti com vários profissionais negros sobre uma dor que sentimos quando alcançamos oportunidades, a dor da solidão. Não é a solidão de não fazer colegas e amigos, esses nós fazemos, e muitos, porque existem pessoas maravilhosas em todas as empresas, mas a solidão de não encontrar outras pessoas negras em posições de liderança, ser sempre uma exceção.
Em minha experiência como homem negro, nascido em família preta, pobre na periferia da zona leste de São Paulo, não há espaço para lamentos por faltas de oportunidades profissionais. Nos meus 45 anos de trabalho, iniciados aos oito anos de idade, passei por uma fábrica de luvas, pela feira livre, farmácias e cheguei a empresas multinacionais e universidades. De vendedor de batatas a vendedor de remédios, de faxineiro de chão da farmácia a diretor internacional em multinacional americana. Trabalhei viajando pelo mundo todo, conhecendo culturas e pessoas incríveis.
Mas trabalhei sentindo essa solidão de não encontrar colegas negras e negros liderando em ambientes privilegiados corporativamente. Quantos mais degraus minha carreira me permitiu subir, menos pessoas negras eu encontro trabalhando numa mesma empresa. Pouquíssimos colegas negras e negros em nível gerencial e absolutamente nenhum colega, homem ou mulher, negro em posição de diretoria nos quase 20 anos em que atuo nesse nível hierárquico.
Nas salas de aula, onde tenho tido o privilégio de exercer, em paralelo, minha segunda carreira nos últimos 20 anos, tampouco encontro tantos outros professores negros que representassem sequer os dedos de uma de minhas mãos. De novo é duro sempre ser uma exceção.
Consequentemente, se desejamos ver o revés desses números caóticos de assassinatos de pessoas negras, precisamos assegurar que essas pessoas tenham acesso justo a uma educação com o mínimo de qualidade que todo brasileiro merece ter, acesso ao primeiro emprego, acesso ao desenvolvimento e oportunidades de carreira iguais ao que as pessoas brancas têm.
Não devemos ter vergonha de discutir sobre vagas afirmativas, porque são um instrumento mínimo de reconhecimento da necessidade de reparar a desigualdade e injustiça racial vividos por muitos anos e até aqui. Há muitas empresas realizando iniciativas fantásticas no campo da diversidade e inclusão, então senhoras e senhores líderes, que tal aprendermos com quem já está colocando em prática essas ações tão necessárias?
Concluo compartilhando palavras e pensamentos de sábios sobre o papel social das lideranças. “No papel de um líder está o desenvolvimento de novos líderes” — Dona Nazaré, 106 anos, matriarca e líder comunitária de uma comunidade quilombola do Rio Grande do Norte. “Os líderes devem ser como os bons tomates, firmes, mas nunca duros” — Tokio Nakano, 76 anos, feirante. “Se você pode, você deve” — Vó Cida, 95 anos, avó da amiga Júlia. “Se você é neutro em situações de injustiças, você escolheu o lado do opressor” — Desmond Tutu, 90 anos.
Precisamos refletir com as mensagens desses sábios sobre nossos papéis na liderança das empresas e nos conselhos de administração. Estamos nos desenvolvendo e desenvolvendo líderes que reconheçam a importância da justiça de gênero e da justiça racial necessárias de grande crescimento em nosso país? Somos líderes firmes no propósito de criar ambientes inclusivos em nossos espaços de trabalho? O fato concreto é que nós podemos fazer essa transformação, resta saber, estamos realmente engajados em fazer acontecer? E finalmente, você já escolheu seu lado nesse cenário atual de injustiça?
*Jaime Almeida é sócio e diretor de Diversidade e Inclusão da Fesa Group
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