Festival ocorreu em Austin, nos EUA (MacPherson/AFP/Getty Images)
Plataforma de conteúdo
Publicado em 3 de abril de 2023 às 18h06.
Última atualização em 3 de abril de 2023 às 18h22.
Crises, guerras, polarização, pandemia, falências repentinas de bancos e varejistas, disrupções tecnológicas. Quem faz um negócio acontecer nunca precisou lidar tão ativamente com a incerteza. E o exercício de continuadamente repensar os negócios nunca foi tão imprescindível.
O SXSW – festival de tendências e inovação cuja 37ª edição acaba de acontecer em Austin, EUA – é combustível dos bons para esse exercício. Porque expõe e debate o novo: na tecnologia, no entretenimento, no comportamento e nos negócios.
À base de pouco sono e muito café, pude, em meu quarto SXSW, acompanhar 34 dentre centenas de painéis que percorreram as 25 trilhas temáticas da última edição. Costurando anotações e reflexões dessa experiência, penso que gestores - nos mais diferentes setores de atuação - têm à frente uma oportunidade única. A de criar condições para um novo tipo de trabalho híbrido: o trabalho híbrido homem-máquina, numa colaboração nunca antes experimentada, que pode tornar os negócios mais velozes, produtivos e eficientes. Mas que também precisa torná-los mais eficazes, sensíveis e, acima de tudo, responsáveis.
Bradley Schurman, em seu painel "The New Demographic Reality and Its Impacts" observou que a partir de 2050 a população do mundo começará a diminuir. Uma mudança que pode afetar significativamente a economia e os negócios. De acordo com Schurman, o mercado de trabalho precisará criar condições para que pessoas entre 50 e 65 anos participem dele por mais tempo. Além de inúmeros benefícios derivados de ambientes de trabalho mais diversos e inclusivos, o prolongamento da vida profissional pode promover uma melhor saúde financeira, social e mental para indivíduos dessa faixa etária que, consequentemente, terão relevância ainda maior no consumo.
No SXSW também foi apresentado e debatido o "carro elétrico voador". No painel "Flight Club: The Air Taxi Takeoff", soube que já em 2025 a Delta planeja voar com "air taxis" de propulsão elétrica, considerados mais silenciosos e 10.000 vezes mais seguros que helicópteros. E que a japonesa Toyota já investiu 400 milhões de dólares na empresa Joby Aviation, buscando dar escala à produção desses veículos que, imaginam, deve em breve substituir - com maior velocidade, conveniência e segurança - boa parte das viagens hoje feitas com automóveis.
Muito se falou também no festival sobre o potencial do blockchain, das redes sociais, dos NFTs e das realidades virtual e aumentada para os negócios. E sobre como essas tecnologias irão - de forma imersiva e colaborativa - alavancar o storytelling, os esportes e os treinamentos corporativos. O painel "The Future of Entertainment" sublinhou como os NFTs vêm democratizando o financiamento para criadores, dando também para suas audiências a possibilidade de conexão e colaboração amplificada. O "The Future of Sex", destacou a importância das novas tecnologias para uma melhor educação, inclusão e escala no atendimento de necessidades humanas essenciais. Já o "The Ultimate Potential of VR: Promises & Perils" apontou para tecnologias emergentes de realidade virtual com altíssima fidelidade e capacidade preditiva: capazes de captar sua intenção de mover antes mesmo da realização de um movimento.
Outra tecnologia que esteve em pauta - por sua capacidade exponencial de processamento e potencial para revolucionar os negócios - foi a computação quântica. No painel "Why Your Future Depends on Quantum Computing", Whurley, fundador da startup Strangeworks, apontou que nos próximos 7 anos o quantum deve transformar mais a computação do que em toda a história desta. Alcançando a capacidade de um milhão de qubits até 2030, os computadores quânticos devem revolucionar a pesquisa científica, o entretenimento, a logística, a agropecuária, o sistema financeiro e muitas decisões de negócios.
Por fim, a grande "buzzword" do SXSW: inteligência artificial. A mais repetida e debatida ruptura emergente. Tecnologia até então aplicada em atividades repetitivas e que começa a ganhar precisão também em atividades expressivas e analíticas. Uma verdadeira revolução que, segundo descrevem Davenport, Holweg e Jeavons em "How AI is Helping Companies Redesign Processes", deve se tornar tão padrão nas empresas quanto os ERPs ou até mesmo as planilhas de Excel. E que pode, entre outras coisas, democratizar ferramentas criativas, agilizar a programação de software, otimizar processos, alavancar a experiência de clientes, aprimorar diagnósticos clínicos e permitir melhores tomadas de decisão.
Bill Gates, em artigo recente no seu "Gates Notes", coloca que a inteligência artificial será tão revolucionária quanto foi a criação dos microprocessadores, a internet e os smartphones. Afinal, diz ele - comparado a um computador - nosso cérebro é como uma lesma: trabalha a 1/100.000 da velocidade do primeiro e com muito mais limitações de memória e processamento. De acordo com Gates, muito em breve os negócios passarão a se diferenciar pelo bom ou mau uso da inteligência artificial.
Independentemente da sua indústria, essas mudanças irão te afetar.
No painel "The Creator Boom", Michael Huppe, CEO da SoundExchange, colocou que a inteligência artificial é um rio cujas águas avançam aceleradamente e que não há como pará-lo. Milhares de novas tecnologias e aplicações surgem diariamente e, não à toa, a gigante Microsoft lançou - apenas de janeiro a março deste ano - nove ferramentas diferentes baseadas em inteligência artificial generativa.
Quem está à frente de decisões de negócios não terá escolha. Ou, de acordo com o ex-detento Jesse Crosson - hoje diretor da fundação Second Chancer, que trabalha pela ressocialização e inclusão de encarcerados - terá três. Crosson resumiu em sua palestra, de forma simples e tocante, as alternativas que indivíduos e organizações têm diante da adversidade: desistir, aguentar (sofrendo) ou mudar (aprendendo e crescendo). A terceira alternativa pode não ser a mais fácil, mas certamente é a mais interessante.
É importante pular na nova realidade. Ganhar intimidade com o novo contexto e as novas tecnologias. Sujar as mãos. Conhecer, experimentar, testar, criticar. Aprender ativa e continuamente, criando condições para que todos que fazem o seu negócio acontecer possam identificar sinais e se adaptar rapidamente às mudanças.
Ganhar intimidade com o novo contexto e as novas tecnologias é questão de sobrevivência para quem está à frente de um negócio. Independentemente da área de atuação, um "banho" de novas tecnologias, valores contemporâneos, digitalização e - incontestavelmente - inteligência artificial é cada vez mais necessário. Mas novas tecnologias e contextos têm sempre seus lados "luz" e "sombra".
Bill Gates no recém-publicado artigo "The Age of AI has begun" aponta que, como a maioria das invenções, a I.A. pode ser utilizada para bons e maus propósitos. Ao mesmo tempo que pode alavancar velocidade, produtividade e qualidade, pode ter vieses, permitir atividades ilícitas, antiéticas e criminosas.
Esther Perel, em seu concorrido painel "The Other AI: Artificial Intimacy", lembrou que a digitalização por um lado democratizou informações, educação e conexão, mas por outro favoreceu a proliferação de fake news, ansiedade e depressão. A psicóloga alertou para os riscos das tecnologias emergentes, que frequentemente nos fazem estar presentes fisicamente, mas ausentes emocionalmente, ou vice-versa, numa simulação da realidade altamente prejudicial à intimidade genuína. Segundo Perel, há risco de presenciarmos o que aconteceu com o fast-food. Ele tornou a comida mais estável e disponível, mas demorou para nos darmos conta das consequências disso para nossa saúde física. Com as novas tecnologias e as relações humanas pode acontecer o mesmo, dessa vez com sérias consequências para nossa saúde mental.
Nancy Pelosi, ex-presidente da Câmara dos Estados Unidos, numa igualmente concorrida palestra no SXSW, alertou também para os riscos sociais e políticos do novo contexto. Sustentou que as motivações reais dos espalhadores de fake news - acumular dinheiro, garantir poder ou pagar menos impostos - são sempre mascaradas de reivindicações ideológicas. E destacou a importância da ética, do respeito aos direitos humanos, do poder legislativo e das instituições democráticas para se garantir um bom uso das novas tecnologias.
Já Yuval Harari, Tristan Harris e Aza Raskin, no artigo "You Can Have The Blue Pill or The Red Pill, And We Are Out Of Blue Pills", arremataram: apesar de ainda embrionária, a inteligência artificial por trás das redes sociais foi capaz de criar uma cortina de ilusões que aumentou a polarização social, minou nossa saúde mental e comprometeu a democracia. Milhões de pessoas confundiram essas ilusões com a realidade. Se seguirmos com o "business as usual", as novas e exponenciais capacidades da I.A. também serão utilizadas inadvertidamente em privilégio do lucro e do poder, mesmo que isso destrua os alicerces da nossa sociedade.
É fundamental para quem está à frente de decisões de negócios compreender que junto com o "novo" chegam oportunidades e riscos a granel. E que não há mais espaço - na sociedade e no mercado - para oportunidades sem responsabilidade. Ryan Gellert, CEO da marca de moda Patagonia, colocou em seu painel no SXSW que, em geral, as empresas sempre fazem a coisa certa, depois de esgotarem todas as outras alternativas. E que, de agora em diante, resistirão apenas aquelas que entenderem seus impactos e assumirem responsabilidade sobre eles.
É preciso então pular de cabeça na transformação, mas pular de paraquedas. Como paraquedas aqui funcionariam modus operandi, princípios e controles - ainda em construção - que nos permitam não apenas fazer mais, mas também fazer melhor, e fazendo o que é correto.
Tirar ao mesmo tempo o melhor da máquina e o melhor do homem.
Bill Gates em "The Age of AI has begun" aponta que modelos de inteligência artificial ainda falham miseravelmente em entender o contexto e abstrações humanas. Esther Perel, em sua palestra no SXSW destacou também que a inteligência artificial não tem crenças nem vivências pessoais. Não sabe lidar com dilemas morais e nem com a ambiguidade. É desprovida de intuição, espontaneidade ou imaginação. É desprovida de - pasmem - humanidade, característica que vem fazendo a Disney - dos quadrinhos ao streaming - um sucesso atemporal. No painel "Creating Happiness: The Art & Science of Disney Parks Storytelling", Josh D'Amaro, chairman dos parques, experiências e produtos Disney, "revelou" o segredo desse sucesso: storytelling, criatividade e inovação. Segundo D'Amaro, quando nossas emoções são exacerbadas, as memórias, conexões e negócios mudam de patamar.
Emocionar é humano. Assim como ter empatia, algo hoje igualmente vital para os negócios. E foi a empatia - combinada com a tecnologia - que levou a marca de vendas diretas de produtos para bebês Hello Bello, à preferência e liderança nesse segmento. Na apresentação "Building a Brand Through Community", os atores Kristen Bell e Dax Shepard, cofundadores da marca, revelaram que grande parte do sucesso da Hello Bello vem dela reconhecer - em tudo o que faz e fala - a bagunça e a dificuldade que é ser pai e mãe de primeira viagem: a fase, segundo eles, mais confusa, fedorenta e imperdível da vida.
Podemos perder de lavada da máquina no xadrez, no processamento e na projeção de dados, mas acho difícil um dia perdermos na crítica, na empatia, na intuição, na paixão ou na imaginação. Rohit Bhargava, em sua tradicional "15 Non-Obvious Trends Shaping Our Future" repetiu mais uma vez a máxima "people who understand people always win". John Maeda, também na sua tradicional "Design in Tech Report", afirmou que o difícil não é falar a língua das máquinas, mas sim a dos humanos.
Penso que o segredo hoje está no blend. Entender muito da máquina e do homem. Dominar a língua de ambos. Diferenciar os negócios e torná-los mais competitivos, delegando a eficiência, a produtividade, a escala, a velocidade e a precisão cada vez mais para a tecnologia. E priorizando a eficácia, a intuição, a criatividade e, acima de tudo, a responsabilidade para as pessoas. Empresas, profissionais, governos e a sociedade precisam mergulhar na mudança. Ganhar intimidade com os algoritmos e as novas tecnologias. Mas, ao mesmo tempo, refirnar o algoritmo humano da sensibilidade, da paixão, da criatividade, da ética, da inclusão e da responsabilidade. Para criar condições para um novo - e acredito melhor - tipo de trabalho: o trabalho híbrido homem-máquina, numa colaboração nunca antes experimentada.
*Sergio Katz é estrategista, vice-presidente de planejamento na Almapbbdo
Siga a Bússola nas redes: Instagram | Linkedin | Twitter | Facebook | Youtube
Veja também:
Alice Sosnowski: A solução está nas habilidades humanas
Aché abre programa de inovação aberta do Aché para startups
Glaucia Guarcello: 7 Lições que aprendi no SXSW 2023