10,2 milhões de carros elétricos foram vendidos em 2022 (seksan Mongkhonkhamsao/Getty Images)
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Publicado em 18 de maio de 2023 às 12h05.
Por Omarson Costa*
O automóvel se tornou desde o início um símbolo de modernidade, status e sonho de consumo pela liberdade de locomoção dada a seus donos, mas entrou o século 21 como um dos vilões pelo aquecimento global. Para fugir da berlinda, a indústria recorreu a uma velha tecnologia. Com 10,2 milhões de unidades vendidas em 2022 e projeção de 17 milhões esse ano, o carro elétrico parece enfim se consolidar como uma ideia viável pela maioria dos atores econômicos.
A preocupação com a poluição ambiental ganhou a arena do debate global lá na Eco-1992, realizada no Rio de Janeiro. E se tornou realmente pop em 2005 quando o filme “Uma Verdade Inconveniente” mostrou o ex-vice-presidente dos EUA Al Gore tirando a expressão aquecimento global do restrito clube de cientistas.
A essa altura, outro grande ator percebeu que não poderia ficar sem mostrar serviço dentro daquele debate, especialmente depois que o mundo ficou atônito com a imagem de uma Pequim praticamente invisível sob uma névoa densa de poluição durante a realização da Olimpíada de 2008 — vista do estádio Ninho de Pássaro, o principal da Olimpíada de 2008, durante a realização dos jogos.
No fundo, a discussão sobre aquecimento global gira em torno da matriz energética, centrada nos combustíveis fósseis, descobertos em abundância no século passado e que baratearam a energia mundo afora, viabilizando inclusive a massificação do automóvel como meio de transporte. A única maneira de frear os efeitos, pregam os especialistas há anos, é reduzir a emissão de carbono que despejamos na atmosfera. Tudo o que gira em torno dessa discussão virou alvo de debates acalorados, muito lobby, e posições radicalizadas.
Como disse acima, a ideia do carro elétrico não é nova. Os primeiros protótipos lá no século 19 pensavam nesta forma de alimentação, que acabou sendo deixada de lado por conta dos desafios que pesquisadores da indústria só tiveram incentivo de se debruçar para resolver mais recentemente. Afinal a gasolina era barata.
Pra quem lembra de como eram os celulares em meados dos anos 1990, imaginar uma bateria que durasse o bastante para tornar viável a movimentação dos carros parecia muito distante. Mas o mesmo lítio que fez os celulares utilizáveis, recolocou os carros elétricos na prateleira das alternativas.
As primeiras gerações de consumidores lidaram com carros híbridos, como o Prius da Toyota, que funciona com combustível quando a bateria descarrega. E mesmo que as baterias tenham conseguido avançar muito, a autonomia continua sendo um ponto de angústia para os usuários. E se houver um imprevisto no trajeto como um acidente, ou um engarrafamento como os de voltas de feriado? Como fica o carro elétrico? Vai parar na subida da Serra do Mar?
Outra questão é o tempo. Caso seja necessário recarregar em um trajeto, o tempo não muito curto para a recarga se completar ainda é pelo menos umas oito vezes superior aos cinco minutos que se leva para abastecer um tanque de gasolina.
Sem contar a questão dos postos de abastecimento que foram bastante raros em termos de capilaridade, mesmo em países ricos como os EUA. A paranóia de não achar um posto para recarga era real. Mas a popularização aos poucos vai eliminando esse problema. Primeiro porque havendo mais carros, há mais incentivos para espalhar pelo país os pontos de recarga. Alguns começam a ser cobrados, inclusive por aqui no Brasil - um sinal de que a base efetivamente está aumentando a ponto de se tornar um negócio viável e rentável.
Ao longo dos anos, governos preocupados com a questão climática trataram de dar uma série de incentivos fiscais tanto para o proprietário de um veículo elétrico, como também aos fabricantes, na esperança de apressar a conversão da frota. Em tempos de petróleo barato, os apelos eram esnobados pela indústria automobilística. O aumento do custo da gasolina na Europa e nos EUA mudou um pouco essa posição.
Outra frente em que os estados trabalham diretamente é a da regulação, ou seja, forçar que a indústria saia do conforto de um modelo já provado e vencedor para a perigosa e custosa mudança de paradigma. Metas de adoção começaram a ser adotadas mundo afora. Algumas mais radicais que as outras.
A Califórnia pretende banir a venda de carros a gasolina ou diesel até 2035. Mas já a partir de 2026, 35% da produção da indústria precisa ser pelo menos de modelos parcialmente elétricos. No nível federal, Joe Biden se comprometeu a ter 50% da frota eletrificada até 2030.
Se a Europa que sofre há mais tempo com as instabilidades do mercado de petróleo, está mais adiantada na adoção, os gigantes asiáticos têm papel importante também. O governo da Índia fixou uma meta ambiciosa de ter EVs como 100% das vendas até 2030, lembrando que lá há veículos de 3 e 2 rodas com vendas acelerando.
A líder desse mercado é a China, uma história que começou lá em 2001, quando pesquisas em torno da eletrificação de veículos se tornaram parte do plano quinquenal do país. Um ano antes da Olimpíada de Pequim, assumiu o cargo de ministro da Ciência e Tecnologia Wan Gang, um engenheiro que havia trabalhado na Audi e que começou a atuar para o crescimento dessa indústria - até o ano passado tinham sido investidos cerca de US$ 29 bilhões em subsídios e isenções fiscais.
Como resultado, em 2022, a China sozinha vendeu quase 7 milhões de veículos contra 800 mil dos EUA - é mais da metade de toda a venda mundial. Além disso, antes do consumidor final se interessar pelos carros elétricos, o governo deu contratos às empresas do setor para que eletrificasse a vasta frota de ônibus e táxis, o que ajudou a torná-las financeiramente saudáveis. A China é a líder de produção, venda e com tecnologia de baterias avançada.
O governo brasileiro também tem recorrido ao subsídio ou às isenções para aumentar a atratividade do carro elétrico, mas de forma muito menos significativa. A ajuda tem sido feita do lado do comprador, em iniciativas municipais ou estaduais, como em SP, onde há isenção de IPVA, licenciamento e dispensa do rodízio. Mas pouca coisa vinha sendo feita junto à indústria.
Até o final de 2022, a expectativa era que nossa frota de elétricos chegasse a 50 mil. A participação dos elétricos nas vendas totais varia entre 0,5% e 2,5% das vendas totais em uma frota com cerca de 37 milhões de carros de passeio.
No entanto, a tendência é de que essas estatísticas se acelerem um pouco a partir de 2023 porque a posição da nova administração federal, que é pró-ambiental, tende a acelerar estudos. O mercado automotivo no Brasil é relevante, ainda que tenha enfrentado anos difíceis recentemente. Ainda assim, empresas como GM e BYD já anunciaram planos de utilizar o parque instalado no Brasil para fazer do país um polo exportador de EVs.
A chinesa BYD promete trazer ao país um veículo elétrico para competir entre os mais baratos da categoria e montar aqui fábrica de carros e baterias. O BYD Seagull teria preço de “entrada” a partir de R$ 130 mil, o que o tornaria de fato mais barato que o JAC E-JS1 e o modelos de Chery e Renault, todos acima de R$ 140 mil. Se levarmos em conta que um carro a combustão de entrada custa metade disso, dá pra entender a lentidão do avanço. No ano passado, oito empresas, entre fabricantes e aplicativos de mobilidade se uniram em uma ação para acelerar a adoção no país.
Os carros elétricos são celebrados pelo mercado como muito mais simples de serem mantidos, porque possuem uma fração dos componentes necessários para fazer um carro a combustão interna funcionar.
De acordo com um estudo da startup UCorp, um carro comum tem em média 2.400 peças. Este número cai para 250 peças (em média) quando falamos dos elétricos. É muito menos coisa para quebrar ou se desgastar com o tempo.
No entanto, a sabedoria convencional em torno da tecnologia, que tende a baratear com o tempo na medida em que ganha escala, não tem servido até agora para o mercado de EVs. Basicamente, a culpa é do principal componente de um carro elétrico, sua bateria.
Elas continuam caras, porque os fabricantes seguem investindo bastante dinheiro para que melhorem em eficiência e o preço dos minerais envolvidos em sua fabricação subiram. E pesquisa e desenvolvimento é das coisas mais caras na formação de preço de um produto. Em média, um carro elétrico sai, nos EUA, US$ 18 mil mais caro. E olha que o preço por kWh caiu muito na última década.
Vale mencionar que a Tesla, empresa que tornou os carros elétricos mais conhecidos no Ocidente e um pouco menos caros também, parece estar perdendo essa guerra, porque resolveu investir num modelo proprietário de bateria e a concorrência está obtendo resultados melhores. A chinesa CATL está abrindo unidades na Alemanha e nos EUA para fornecer baterias para montadoras como Ford e BMW.
A CATL acaba de lançar um modelo de bateria com uma arquitetura completamente nova, que permite rodar 1 mil quilômetros com uma carga. É o caso do Zeekr 001, modelo de uma submarca da chinesa Geely, dona da Volvo. Essa autonomia é substancialmente superior à do modelo Y da Tesla (em torno de 700 km) e por um preço US$ 20 mil menor.
Outros fabricantes estão se associando para se posicionarem mais fortemente no mercado, como foi o caso da Afeela, marca spin-off da Honda e da Sony que já tem um protótipo em desenvolvimento com direção autônoma de nível 3, suficiente para o carro assumir o controle nos engarrafamentos, por exemplo, e dúzias de componentes eletrônicos embarcados que, entre outras coisas, monitoram a atenção do motorista, para o caso de ele precisar assumir a direção.
O fato de ter menos peças e dispensar óleo para lubrificar correias e outros componentes dão vantagem considerável ao carro elétrico. Segundo o site especializado Garagem 360, modelos semelhantes da Peugeot têm custo de revisões bastante distintos, sendo que do modelo convencional é o dobro do EV.
O Renault Kwid e-Tech tem baterias de íons de lítio com 28kwH. Em SP, com o custo do KWH em torno de R$ 1 (valores de janeiro), a recarga completa das baterias do Kwid custaria cerca de R$ 30 para rodar até 185 km. No tanque do Kwid a combustão cabem 38 litros, o que faz o custo de abastecer com gasolina cerca de R$ 210 (com autonomia de 532 km, levando em conta o consumo de 13km/l informado pelo fabricante). Para ver como a questão da autonomia é relevante, em condições ideais a versão elétrica precisaria de 3 cargas para rodar o mesmo que um tanque de combustível e isso eleva o valor de abastecimento para R$ 90, ainda assim, uma diferença relevante.
O tempo de recarga é o grande calcanhar de Aquiles do EV. Porque enquanto a operação em um posto de combustível leva alguns poucos minutos, no caso do carro elétrico vai depender de quanto você quer recarregar e qual a potência do carregador. No caso do Kwid tais variáveis podem significar qualquer coisa entre 40 minutos e 5 horas.
Mas existem operações mais rápidas do que isso e soluções de carregamento bastante originais, como o carregador móvel inventado na China.
Como se nota, o principal problema para aumentar a frota é exatamente o alto custo de aquisição inicial em relação aos carros convencionais, o que é válido na maioria dos mercados, ainda que em diferentes proporções. Agora, se é caro de comprar e barato de manter, me parece um bom negócio ter um “carro por assinatura”, como eu já havia previsto em artigo publicado na Exame.
O car as a service no Brasil começou a ser praticado pela Renault que aluga o Kwid elétrico a partir de R$ 2 mil por mês. O governo francês anunciou em meados de 2022 um programa de leasing para carro elétrico por cerca de 100 euros mensais, o que é um baita negócio, dado que o proprietário já pagaria isso para encher o tanque de um carro convencional. A França tem uma taxa de adoção de EVs mais baixa que países como Alemanha e a campeã Noruega, onde hoje 8 a cada 10 carros são pelo menos híbridos.
Uma parte dessa conta toda não fecha. Por que? Para serem produzidas as baterias precisam de íons de lítio, e os carros de silício para a parte eletrônica, além de cobre, manganês e níquel. Mas a atividade de mineração tem sofrido restrições no mundo todo pelos danos que causam ao meio ambiente e condições de trabalho degradantes. Como conciliar as duas coisas? Em 2030, quando as frotas mais relevantes do planeta deverão ser majoritariamente elétricas por lei, a demanda por lítio vai ultrapassar a oferta.
Lembrando que a extração do lítio está associada ao aumento de arsênio nas redondezas, o que é um contaminante para fontes de água. Então isso seria uma inconsistência do modelo sustentável? Segundo a agência ambiental dos EUA, a EPA, essa questão dos efeitos nocivos da mineração podem ser resolvidas com a reciclagem das baterias.
Ora, em vez de explodir rochas no Chile (maior reserva de lítio do mundo) por que não pegamos aquele lixo tóxico nos cemitérios de baterias para reciclá-las? A solução para essa tarefa complexa tem avançado bastante nos últimos anos, graças ao trabalho de um cofundador da Tesla, chamado JB Straubel, cuja empresa Redwood tem conseguido desenvolver um processo de reciclagem que gera uma bateria com capacidades muito semelhantes àquelas em uma unidade nova.
Outro dia lia que cientistas austríacos desenvolveram um protótipo de bateria que utiliza um tipo de cristal abundante chamado perovskita (titanato de cálcio) que teria a capacidade de capturar e liberal íons de oxigênio, o que substituiria a função do lítio no processo de carregar/descarregar. Só que, ao contrário do lítio, essa descarga é temporária e logo refeita. Ou seja, a bateria enquanto estiver saudável não descarrega “nunca”. Além disso, os materiais envolvidos não são nada inflamáveis.
Por enquanto, o único porém desse protótipo é o fato de precisar trabalhar a altas temperaturas, o que é um problema para baterias de EVs, mas não das usinas geradores de energia, como as solares ou de vento, que também usam baterias. De fato, isso reduziria enormemente o impacto ambiental e tornaria nossas energias renováveis efetivamente recicláveis.
Estamos num momento muito interessante desse mercado, em que as empresas se preparam para escalar a produção, mas é necessário que a ciência ajude a resolver os inconvenientes da solução para que seja efetivamente sustentável. Parece que já entramos no ponto de não retorno quando gigantes como Ford, GM e as chineses BYD e outras vão criando modelos mais eficientes e acessíveis a cada ciclo.
E é alarmante que o Brasil não tenha como país uma estratégia clara sobre isso, o que pode representar mais uma oportunidade perdida e a irrelevância de uma das últimas indústrias importantes que temos, que é a automobilística.
*Omarson Costa é diretor de Negócios na Accenture e conselheiro de administração para empresas dos setores de telecomunicações, serviços, publicidade e educação
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