Em sociedade, o movimento constante provoca atrito entre os grupos sociais que têm interesses distintos (Arte/Bússola)
Analista Político - Colunista Bússola
Publicado em 6 de outubro de 2023 às 14h00.
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, registrou em seu discurso de posse a vitória da democracia brasileira sobre as recentes ameaças que pairaram sobre a nossa forma de governo. A conclusão pode ser precipitada... o jogo ainda não acabou. Na verdade, não acaba nunca. Democracia exige cuidado e vigilância permanente.
Apontado por Winston Churchill como a pior forma de governo, com exceção de todas outras formas já testadas na história do homem, a democracia está relacionada ao movimento humano, como a rotação e a translação. Não para nunca. Se parar, entra em colapso.
O movimento constante provoca atrito, como sói natural. Atrito entre os grupos sociais que têm interesses distintos. Esses choques promoveram a evolução institucional. E trouxeram a humanidade a um dos melhores momentos em sua milenar história: o progresso tecnológico produziu bens numa escala que permitiu sua disseminação em todas áreas do planeta; melhoraram sistemas e técnicas de saúde; a educação evoluiu e incorporou a tecnologia como diferencial baseado em ciência; o mundo ficou menor com a melhoria dos transportes de massa pelo globo, conectado o tempo todo nas ondas da internet e redes socialmente bifrontes. Além de pautas igualitárias e inclusivas pela manifestação das minorias.
Nem por isso o mundo ficou menos complexo, injusto e desigual. Poucas vezes houve tanta concentração de riqueza nas mãos de tão poucos. É o paradoxo contemporâneo. O sistema globalizado trouxe ainda uma sensação de prevalência do mercado sobre o indivíduo e dos valores universais sobre as crenças pessoais. O estranhamento é ubíquo em quase todos países do mundo, com reflexos profundos na política.
A China se tornou o país mais inclusivo socialmente das últimas décadas, acrescentando dezenas de milhões de pessoas ao mercado de bens e elevando padrões sociais de forma significativa. Sem democracia. Caminho que se repete de forma semelhante na Índia em anos recentes. O petróleo do subsolo ergueu arranha-céus no deserto de Emirados Árabes, com paisagens naturais artificializadas para sustentar liberações ocidentais para turistas em países de costumes medievais.
No Brasil, o dia 8 de janeiro mencionado pelo ministro Barroso mostrou que há fagulhas com potencial de causar incêndios. O resultado das eleições dos conselhos tutelares também demonstra que há reações sociais a decisões de pautar temas controversos, como liberação de drogas, descriminalização de aborto ou determinação de uma grande amplitude para os direitos indígenas sobre terras. Sem entrar no mérito de nenhumas das questões, elas dividem a sociedade em polos claros e antagônicos.
A evolução natural de certos processos pode determinar uma forma suave de solução desses impasses ou uma ruptura. Nos Estados Unidos houve uma Guerra de Secessão para acabar com a escravidão. No Brasil, a Princesa Isabel assinou uma lei que provocou o final do Império anos depois. No primeiro houve derramamento de sangue de milhares de concidadãos. Noutro, o navio partiu levando o imperador para o exílio sem choro, nem vela. A posterior República brasileira depois massacrou os moradores da região de Canudos que se proclamavam monarquistas, mas isso é outra parte da nossa história...
A solução para os atuais impasses pela via democrática ainda não está clara, pois ainda há divisões e choques. Os brasileiros parecem preferir certos quebra-quebra localizados a uma generalização da ruptura. Mas é sempre bom manter a vigilância e os argumentos em alerta para tomar o devido cuidado na manutenção da forma de governo, e não voltar a tentar umas das exceções já fracassadas no passado.
Agora, nem sempre impasses são negativos. Exemplo disso foi o embate entre Câmara e Senado que travou a reforma da lei eleitoral, que corria o risco de ser piorada. Da mesma forma se parou, por enquanto, a anistia aos crimes partidários. Sem resolução porque não houve diálogo convergente, a solução foi melhor do que qualquer votação.
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