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Publicado em 10 de setembro de 2025 às 11h05.
Por Márcio Holland*
A aprovação da reforma da tributação sobre o consumo deve ser celebrada e sua implementação deve ser promovida com destaque nos próximos governos. A agenda de reformas estruturais não pode ter volta. Não se pode, contudo, perder essa grande oportunidade transformadora apequenando o desenho do novo imposto seletivo. De fato, não é tarefa fácil definir quais bens e serviços são prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Muito menos é dado como certo que a tributação em si seria o único instrumento capaz de desestimular o consumo destes produtos.
O desenho de boas políticas públicas deve se basear em análise de dados e evidências. A boa notícia é que o Brasil tem uma ampla gama de microdados sobre consumo das famílias, sobre doenças crônicas e sobre estilos de vida. O estudo desde dados com uso de técnicas estatísticas adequadas permite amplo diagnóstico e subsidiam nas melhores escolhas de políticas públicas. O desenho do imposto seletivo no âmbito da reforma tributária deve se beneficiar desta virtude.
O imposto seletivo deve se basear, predominantemente, no princípio da extrafiscalidade, se afastando do conceito de um imposto meramente arrecadatório. Vejamos o exemplo do consumo de açúcar no Brasil. Visando desincentivar o consumo deste bem, o Imposto Seletivo se circunscreveu ao espectro apenas de bebidas que contêm açúcar que, por sua vez, foi reduzido a apenas dois tipos: os refrigerantes açucarados e os refrescos açucarados, que representam somente 1,3% da ingestão calórica média do brasileiro. O açúcar propriamente dito, que responde por 5,8% da ingestão calórica nacional, foi incluído na Cesta Nacional de Alimentos e, com isso, terá alíquotas da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) reduzidas a zero. Ou seja, se adicionarmos água ao açúcar, haverá punição tributária; mas o consumo abundante de açúcares em diversos alimentos não causa, aparentemente, problemas à saúde humana.
O consumo de refrigerantes vem caindo de forma consistente há mais de uma década no Brasil, segundo dados do setor e das últimas edições da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE. O consumo dos demais bens prejudiciais à saúde se mantem ou vem crescendo. No mesmo período, a prevalência da obesidade e do sobrepeso aumentou, como registrado nas duas últimas edições da Pesquisa Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) é clara ao afirmar que a obesidade resulta de um desequilíbrio entre ingestão e gasto calórico. Não é um único produto que causa obesidade, mas uma combinação de diferentes fatores: consumo excessivo de alimentos ricos em carboidratos, gordura saturada, sódio e açúcares, além do estilo de vida, do padrão moderno de trabalho, da insuficiência de práticas esportivas, de aspectos socioculturais e psicossociais, entre outros. A propósito, o sedentarismo do brasileiro é sempre esquecido no debate sobre as causas da obesidade e o consequente crescimento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs). Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), do Ministério da Saúde, 40,3% dos adultos estão classificados na condição de insuficientemente ativos.
Falar de tributação exige fazer contas para mitigar riscos de distorções de mercado. No Brasil, os refrigerantes já estão sujeitos a elevada tributação, e o sistema tributário nacional já conta com seletividade para esse caso. Com a reforma, a carga tributária do setor deve subir cerca de 1,1%, caso a alíquota do IVA (CBS + IBS) chegue a 26,5%. Ao mesmo tempo, bebidas substitutas (sucos de frutas, por exemplo) devem ter redução relevante da carga tributária, ampliando ainda mais a diferença de tratamento (seletividade). Ou seja, a adoção de um imposto seletivo adicional aos novos tributos deve implicar em majoração na carga tributária atual.
Ao analisar dados de preços e consumo de bebidas não alcoólicas — como refrigerantes e sucos de frutas naturais —, com metodologias econométricas internacionalmente reconhecidas, não se observa efeito de substituição relevante. Tecnicamente, a elasticidade de substituição entre refrigerantes e sucos naturais não é estatisticamente diferente de zero. Assim, não é esperado que o aumento de carga tributária sobre refrigerantes impulsione a demanda por sucos naturais, mas apenas eleva o peso da tributação sobre um produto consumido, comprometendo ainda mais a renda das famílias mais pobres. A propósito, dados da POF indicam que, entre essas famílias, o refrigerante representa apenas 0,69% da ingestão calórica diária. Ou seja, o que alguns chamam de seletividade pode ser lido como regressividade tributária.
Longe de esgotar os dados e evidências contrários ao modelo proposto para o imposto seletivo apenas sobre bebidas açucaradas, sem considerar outros fatores relacionados com a obesidade, é preciso destacar o uso de inferência causal (causa e efeito) quando, na realidade, os dados mal se correlacionam. Em estatística, correlação não implica em causalidade. Associar consumo de refrigerantes às DCNTs exige controles estatísticos, como o consumo de outros alimentos não saudáveis, consumo excessivo de álcool ou tabaco, modo de vida, entre outros, que estão ausentes no debate. Isolar a influência de um único fator exige pesquisas robustas.
A prevalência da obesidade e o crescimento das DCNTs são, de fato, graves problemas de saúde pública. Exigem diagnósticos precisos e soluções efetivas. A construção de um caminho mais saudável para a sociedade depende do uso de dados, de evidências sólidas e da formulação de políticas sustentáveis.
Márcio Holland é Professor na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-Eesp) e coordenador de Programas de Pós-Graduação lato sensu