Tributação das grandes fortunas pode não ser medida efetiva (SimpleImages/Getty Images)
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Publicado em 9 de outubro de 2025 às 13h00.
Última atualização em 9 de outubro de 2025 às 13h28.
Por Rafael Gonçalves de Albuquerque e Mitale Feitosa Sampaio*
A proposta de tributar grandes fortunas voltou ao centro do debate global. A França, hoje com um déficit fiscal superior a 5% do PIB, o equivalente a 160 bilhões de euros, tornou-se o exemplo mais recente dessa discussão.
O economista Gabriel Zucman, da Paris School of Economics, defende uma alíquota anual de 2% sobre patrimônios acima de 100 milhões de euros.
A ideia soa moderna e justa, mas repete o mesmo equívoco que levou diversos países a abandonar esse tipo de tributo nas últimas décadas.
Nos anos 1990, doze países da OCDE cobravam imposto sobre o patrimônio líquido. Atualmente, apenas três mantêm o modelo: Noruega, Espanha e Suíça.
Nações como Áustria, Alemanha, Suécia e a própria França desistiram após constatar que o sistema arrecadava pouco e criava distorções econômicas profundas.
O relatório “Mirrlees Review", elaborado pelo Institute for Fiscal Studies do Reino Unido, concluiu que esse tipo de imposto gera baixa receita, incentiva a evasão e opera de forma ineficiente e injusta.
O problema central é prático. Medir o valor real da riqueza é uma tarefa quase impossível. Empresas familiares, participações em negócios privados, propriedades únicas, obras de arte e ativos intangíveis não têm valor de mercado claramente mensurável.
Em contextos assim, a avaliação se torna arbitrária e sujeita a longas disputas judiciais. Além disso, indivíduos com alto patrimônio têm flexibilidade para realocar ativos, mudar de jurisdição e utilizar estruturas legítimas de planejamento tributário.
O resultado é previsível: arrecadação frustrada, distorção de incentivos e fuga de capital.
Os defensores do imposto sobre grandes fortunas o associam à ideia de justiça social. O raciocínio é que os mais ricos devem contribuir mais para reduzir desigualdades e financiar políticas públicas. Na prática, porém, o impacto é mínimo.
Estudos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico mostram que há “argumentos limitados” para a adoção de impostos sobre patrimônio líquido, sobretudo em países que já tributam ganhos de capital e heranças.
Nos Estados Unidos, o economista David Splinter, do Joint Committee on Taxation, demonstrou que a carga efetiva sobe de 2% entre os mais pobres para 45% no topo de 0,01% da renda. Ou seja, o sistema já é fortemente progressivo.
O problema não é falta de arrecadação, mas má alocação de recursos. Criar um novo tributo sobre o estoque de riqueza é uma forma de adiar reformas que exigem eficiência administrativa e responsabilidade no gasto público.
Mesmo com evidências contrárias, o discurso de tributar fortunas reaparece em períodos de crise. No Reino Unido e na Alemanha o tema é recorrente. Na Austrália discute-se taxar grandes fundos de aposentadoria.
E nos Estados Unidos o governo Biden chegou a propor um imposto sobre ganhos de capital não realizados, que na prática equivaleria a tributar patrimônio.
Na França, 86% da população apoia a proposta de Zucman. O ex-economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, também a defende como forma de demonstrar que os mais ricos estão “dividindo o sacrifício”.
É um argumento sedutor, mas ilusório. Como alerta John Cochrane, professor de Stanford, políticas tributárias devem ser avaliadas com base em incentivos, não em sentimentos morais.
O imposto sobre riqueza falha em três dimensões: durabilidade, utilidade e coerência econômica.
O apoio popular tende a evaporar quando os efeitos reais aparecem.
A socióloga Ursula Dallinger, da Universidade de Trier, mostrou que o entusiasmo pelo imposto sobre fortunas flutua conforme o humor econômico. Uma medida criada sob euforia pode se tornar rapidamente um fardo político e fiscal.
Não é à toa que políticas tributárias de justiça social já foram implementadas e abandonadas por mais de uma dezena de países.
Paul Hugon, professor da Universidade de São Paulo e das Faculdades de Direito da França, abordou em obra publicada em 1973 a teoria moderna, os principais sistemas do imposto, e o motivo pelo qual a política de justiça social não funciona.
Na obra, Paul evidencia que nunca se deve perder de vista o princípio fundamental de produção que, quando conforme o interesse geral, nunca deve ser diminuída pelo imposto, tendo em vista que toda perda de produção é empobrecimento para a nação e seus homens. E os mais ricos são, em sua maioria, os que mais produzem.
Mesmo que o imposto se mantenha popular, sua arrecadação seria insuficiente para reduzir déficits ou sustentar programas sociais relevantes.
A satisfação inicial de “punir os plutocratas” logo se transforma em frustração quando cortes e ajustes fiscais continuam necessários.
As reformas do imposto seriam simples se apenas tratasse de produção, mas se tornaram mais complicadas quando se introduziu na fiscalização, ao sopro generoso da democracia, o zelo pela justiça.
Todas as implementações do imposto sobre riqueza, por serem estudadas em países democráticos, procuram para o futuro sistemas de impostos mais justos, e este progresso na justiça fiscal aumentará ainda mais na medida em que seja aumentado o peso dos impostos sobre as classes, exagerando os efeitos de justiça social, e diminuindo a riqueza geral.
É ingênuo acreditar que uma alíquota moderada permanecerá moderada. O próprio Thomas Piketty, mentor de Zucman, evoluiu de defensor de um imposto simbólico para proponente de taxas confiscatórias de até 90% sobre grandes fortunas.
Em um de seus textos mais recentes, sugeriu inclusive que quem tentasse deixar o país para evitar o tributo deveria ser impedido de viajar. É a fronteira em que o ideal de justiça se transforma em punição à prosperidade.
A França e outros países em situação semelhante dispõem de opções mais sensatas.
Revisão de benefícios fiscais, aumento de impostos sobre consumo e propriedade, uma política de imposto sobre carbono e o adiamento da idade mínima de aposentadoria são medidas impopulares, mas fiscalmente sólidas.
Implementar uma política ruim apenas porque é popular é o primeiro passo para o descrédito econômico.
No Brasil, o tema também aparece ciclicamente. A Constituição de 1988 prevê um Imposto sobre Grandes Fortunas, mas ele nunca foi regulamentado.
Diversos projetos de lei já tentaram fixar alíquotas entre 0,5% e 1,5% sobre patrimônios acima de 10 milhões de reais, sem sucesso.
Em 2024, a Câmara dos Deputados aprovou a criação de um imposto mínimo de 10% sobre rendas mensais superiores a 50 mil reais, uma tentativa de alcançar os mais ricos dentro do Imposto de Renda.
O governo também endossou o debate internacional sobre um tributo global de 2% sobre bilionários no âmbito do G20. As intenções são legítimas, mas enfrentam as mesmas limitações observadas no exterior: complexidade, risco de evasão e baixo retorno líquido.
O imposto sobre riqueza é um sofisma fiscal. Apresenta-se como uma solução ética, mas fracassa no teste da eficácia.
O verdadeiro debate sobre justiça tributária precisa focar na eficiência do gasto público, simplificação de regras e melhor tributação sobre fluxos de renda e herança.
Tributar o patrimônio acumulado é uma resposta emocional a um problema estrutural. O país que insistir nessa rota corre o risco de transformar um desafio fiscal em um obstáculo à competitividade e à criação de riqueza.
Rafael Gonçalves de Albuquerque é Conselheiro de Administração certificado pelo IBGC, advogado e co-fundador da Catalysis Multi-Family Office.
Mitale Feitosa Sampaio é advogada, especialista em Direito Tributário pela FGVLAW, Diretora do Instituto Mineiro de Direito Tributário – IMDT, conselheira do Grupo de Estudos Sobre Política Tributária – GEPT, e professora.