A antecipação de duplicatas é um dos instrumentos mais tradicionais de financiamento empresarial, permitindo que valores a receber se transformem em capital imediato para manter o giro dos negócios. (Prasit photo/Getty Images)
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Publicado em 22 de agosto de 2025 às 15h00.
Última atualização em 22 de agosto de 2025 às 15h20.
*Por Ezequiel Wilbert
A antecipação (ou desconto) de duplicatas é um dos instrumentos mais tradicionais de financiamento empresarial, permitindo que valores a receber se transformem em capital imediato para manter o giro dos negócios. Essa prática, quando bem estruturada (com títulos reais, documentação em ordem e controles internos funcionando), estabiliza e fortalece o fluxo de caixa, reduz o custo financeiro do giro e viabiliza crescimento.
Bancos, fundos, securitizadoras e plataformas especializadas existem para isso e, com apoio de equipe qualificada, a operação é simples: a empresa vende mercadorias ou presta o serviço, emite a nota, comprova a entrega ou a execução, gera a duplicata e a apresenta para desconto/antecipação. O adiantamento entra, o fluxo melhora e o negócio respira: feito do jeito certo, é bom para todos.
O problema começa quando surge a “solução fácil”: em vez de antecipar uma única vez a duplicata emitida, a empresa apresenta o mesmo título a mais de um fundo ou banco, recebendo duas ou três vezes pelo mesmo crédito. Vender o mesmo crédito para compradores diferentes significa transferir algo que já não pertence à empresa. Na prática, é como vender o mesmo imóvel ou o mesmo carro para mais de um comprador, ou seja, a antecipação deixa de ser uma solução financeira legítima para se tornar uma prática questionável, com graves repercussões econômicas e legais.
Como, por enquanto, as instituições não compartilham essas informações entre si (o que vai mudar muito em breve, com a Convenção entre entidades registradoras e escrituradores, a ser implementada pelo Banco Central), a situação pode passar despercebida por um tempo e, no curto prazo, até parece resolver o problema do caixa.
Porém, assim que a duplicidade é descoberta (e ela será), o crédito da empresa é imediatamente bloqueado, linhas são cortadas, cláusulas de vencimento antecipado são acionadas e o nome da companhia passa a circular negativamente em todo o mercado. Para fundos, bancos, fornecedores e clientes essa prática contamina a confiança na empresa, e recuperar esses valores costuma ser caro, demorado e litigioso.
Um único episódio pode comprometer anos de construção de reputação e dificultar qualquer novo acesso a capital – é o tipo de atalho que custa muito caro.
Mas não é tudo: os efeitos devastadores não ficam só na esfera financeira.
Além de manchar o bom nome da empresa, a negociação de duplicatas em duplicidade pode trazer sérias consequências legais: quando a empresa busca obter vantagem indevida induzindo banco, fundo ou investidor em erro por meio de artifícios (é exatamente o que ocorre quando se desconta a mesma duplicata em mais de uma instituição), a situação pode se enquadrar no art. 171 do Código Penal (com reclusão de 1 a 5 anos e multa).
Além disso, se houver adulteração ou invenção de títulos, canhotos, notas fiscais, ordens de serviço, cartas de aceite ou contratos para dar aparência de legitimidade à duplicidade, isso poderá se enquadrar no art. 298 do Código Penal (com reclusão de 1 a 5 anos e multa).
Por fim, quando o desconto em duplicidade é efetivado com o objetivo de obtenção de recursos junto às instituições financeiras, isso pode ser compreendido como operação de financiamento e, então, o ato poderá se enquadrar no art. 19 da Lei n. 7.492/86 (com reclusão de 2 a 6 anos e multa). Neste caso, a responsabilidade penal pode atingir os administradores, os gestores e os colaboradores que participaram diretamente da operação.
A justiça brasileira (jurisprudência) entende que basta a prática do ato para que o crime se configure, não sendo necessário demonstrar prejuízo efetivo ou abalo ao sistema financeiro.
A mensagem prática é direta: se a empresa quer usar antecipação de duplicatas para crescer, deve fazer do jeito certo. Ou seja, descontando/antecipando cada título uma única vez, mantendo a documentação que prova a entrega ou a execução do serviço, conciliando diariamente o que foi faturado com o que foi cedido e bloqueando qualquer duplicação manual.
Se alguém cogitou negociar duplicatas em duplicidade, deve parar antes de dar o primeiro passo, revisar os processos e procurar orientação técnica. O ganho momentâneo não compensa o risco financeiro e, principalmente, o risco legal para a companhia, para seus administradores e colaboradores.
Boa gestão de recebíveis não é “jeitinho”, é disciplina. Quando feita com base em fatos sólidos, controles e transparência, a antecipação ajuda a empresa a atravessar ciclos difíceis e a financiar crescimento. Quando feita com artifício, vira problema judicial.
*Ezequiel Wilbert, fundador e CEO, e Meisson G. Eckardt, advogado empresarial, ambos na Safegold.