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Omarson Costa: What a 'fakeful’ world. Bem-vindo à Era do Irreal

O “mercado do irreal” foi avaliado em 2020 em algo por volta dos US$ 15 bilhões e pode ultrapassar a barreira do trilhão de dólares em 2030

Quem não sonha com uma versão melhorada de si mesmo? (Constantine Johnny/Getty Images)

Quem não sonha com uma versão melhorada de si mesmo? (Constantine Johnny/Getty Images)

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Publicado em 11 de outubro de 2022 às 20h31.

Última atualização em 11 de outubro de 2022 às 20h33.

Há alguns meses escrevi neste espaço sobre a moda do open (open finance, open talent, open source…). O processo eleitoral segue até o final deste mês e, desta vez, vou me permitir neste artigo jogar alguma luz sobre a moda do fake. Claro que enquanto as eleições não estiverem totalmente resolvidas, as fake news continuarão correndo soltas. Junto com elas, circulam as ainda mais temidas deep fakes, cada vez mais avançadas. Ainda que a criação humana não esteja de todo dispensada, existe um elemento “perturbador” e que a maioria parece menos propensa a levar em conta dado os inúmeros avanços positivos que também traz: a inteligência artificial.

O desenvolvimento de tecnologias como IA e aprendizado de máquina tiraram do campo do sonho um monte de possibilidades, como permitir que a voz da apresentadora Renata Vasconcellos faça a locução de um resultado de pesquisa inventado, mas com a programação visual do Jornal Nacional. E isso é só a ponta do iceberg. Convido você a mergulhar em um mundo fascinante e, em grande medida, assustador também.

Antes de mais nada é preciso estabelecer a terminologia para o novo festival de siglas em inglês que vai invadir o cotidiano das pessoas. Podemos chamar genericamente esse conjunto de tecnologias de XR, ou extended reality. Ela engloba a AR (augmented reality), a MR (mixed reality) e a VR (virtual reality).

(Bussola/Divulgação)

O maior mercado hoje é, sem dúvida, o da AR. Estima-se que cerca de 2 bilhões de pessoas no mundo já sejam consumidores de realidade aumentada, mesmo sem se dar conta disso. Parece coisa demais? Então, lembre-se da febre que foi aquele povo no meio da rua procurando Pokémons com o celular. Pense agora naqueles óculos bacanas que você usou em um museu por aí para ver mais informações a respeito de uma exposição. E se eu te disser que os filtros de Instagram e Snapchat utilizam AR? Agora a estatística ficou mais palatável, certo?

A realidade aumentada permite ver um elemento digital, seja informação ou um objeto, integrado ao mundo real. O lançamento pela Apple do ARKit e pelo Google do ARCore permitiu que milhares de aplicativos fossem desenvolvidos e integrados aos smartphones para todo tipo de uso, com destaque para a indústria da moda e a automotiva.

A realidade mista (MR) é a menos famosa das três na mídia. Ela usa uma combinação de “gadgets” para que você possa não apenas enxergar algo digital, mas interagir com o objeto, produzindo um efeito no mundo real. Quando você coloca um móvel que você quer comprar na sua sala, isso é MR (alguns entendem que isso também é um tipo de AR). Você pode, por exemplo, pegar uma caixa digital na sua mesa de cabeceira e abri-la.

Para funcionar, você precisa de óculos ou um “headset” como o hololens, da Microsoft, que projeta uma imagem holográfica. Lembra da Princesa Leia no início de Guerra nas Estrelas? Então, agora existe de verdade. Por meio de hologramas é possível colocar pessoas em ambientes em que elas não estão.

Só que o software que projeta o holograma, o Mesh, fica na nuvem, portanto a Microsoft afirma que será em breve possível colocar todos os funcionários de uma empresa que tem trabalho remoto reunidos virtualmente em uma sala, que pode ser a casa do chefe, por exemplo. Agora se o ambiente for totalmente virtual, aí você estará no Metaverso.

Recentemente, causou espanto a apresentação de Elvis Presley na final do America's Got Talent. Uma empresa com o nome sugestivo de Metaphysic reproduziu a voz (por deepfake) e utilizou o corpo de um sósia para corporificá-lo, alterando digitalmente o rosto. Ou seja, Elvis cantou, falou de "corpo presente" no palco e em um dos números ainda foi acompanhado pelas duas juradas como coro, elas também em versão deepfake, assim como no dueto com o jurado. A cena prova a frase da Microsoft em seu marketing: “Aqui pode ser qualquer lugar”.

Outra aplicação interessante da MR é na educação. Estudos da própria empresa de Bill Gates concluíram que o uso da tecnologia em universidades aumentou 22% a performance de estudantes em provas e 35% o engajamento e retenção de conteúdo. Imagine um residente de medicina poder fazer cirurgias virtuais, por exemplo.

MR portanto é a mistura de digital e real, porque na VR a pessoa é transportada para um ambiente novo, imersivo, em que os sentidos são bloqueados para o mundo externo. Por isso que são necessários os óculos. A realidade virtual existe nos videogames, é verdade, uma aplicação bilionária. Mas serve excepcionalmente bem também para treinamentos. Pilotos de avião fazem horas no simulador até poderem controlar uma aeronave de verdade.

Pesquisa conduzida com os Millennials e com a geração Z mostrou que 77% dos entrevistados queriam se engajar em interação social no ambiente virtual, seja jogando, assistindo a vídeos ou conversando. Esse resultado mostra que talvez hoje estejamos realmente na época certa para uma “rede” como o Metaverso. Não é à toa que Mark Zuckerberg mudou até o nome da corporação dele para Meta. Olhe de novo para os dados de interação.

Em 2021, o Metaverso, suas plataformas e aplicações compunham um mercado de quase US$ 40 bilhões, sendo que o grosso do uso ainda é entretenimento, mas seguido de perto pelo varejo e os serviços financeiros. A previsão é de que até o fim da década o valor do Metaverso esteja na casa do trilhão de dólares.

Existe um gráfico em forma de sino para caracterizar o estágio atual de uma tecnologia. Desde os responsáveis pela inovação até que ela se torne disseminada, inclusive para aqueles que chegam por último. O que tem tudo isso em comum? Seria um desejo cada vez menos recôndito de fugir do real?

Sobre dragões e dinossauros

Recentemente, o americano Jason Allen se viu no meio de uma polêmica danada. Ele se inscreveu no concurso de arte da Feira Estadual do Colorado e sua obra recebeu o maior prêmio. Só que os demais concorrentes o chamaram de impostor e protestaram ao saber que a obra fora composta com auxílio de um ‘gerador de imagens por inteligência artificial’. Allen digitou uma frase no Google e um programa chamado Midjourney retornou quatro imagens. O homem escolheu uma e “só fez” retocar até o resultado final, o que ele considera suficiente como expressão artística, para revolta de seus adversários.

Essa não é a única ferramenta do gênero. Existe uma outra chamada Dall-E (o trocadilho com o pintor espanhol…) que faz algo muito parecido. A tal ponto que o mercado começa a imaginar que a partir de 2023 provavelmente estaremos vivendo o fim da Era do Photoshop.

A Meta está desenvolvendo uma ferramenta semelhante a essa só que com vídeos. No post do blog em que anunciou a “Make-a-Video”, a empresa fez a ressalva de que mesmo sendo uma ferramenta valiosa para criadores de conteúdo e artistas, preocupa o uso dela para gerar desinformação, propaganda de toda sorte, pornografia não consensual e outras formas de intimidação, sobretudo contra mulheres.

Essas ferramentas são um passo adiante na escala do irreal porque não se limitam a arranjar dentro de um banco um conjunto de fotos ou vídeos correspondendo às pesquisas para depois juntá-las. As ferramentas criam uma terceira coisa, que ainda será objeto de muita discussão. Afinal, o francês Georges Méliès, no final do século 19, inventou o efeito especial no cinema, que teve um novo salto com a computação gráfica, da qual o filme “Parque dos DInossauros” é um marco, um século mais tarde. Isso é arte ou não?

Na música, nova polêmica quando a Capitol Records resolveu lançar o álbum do rapper FN Meka, cujas raízes musicais são um conjunto de zeros e uns, já que se trata de um rapper 50% criado por inteligência artificial - a voz era real mas as letras e o avatar de Meka foram feitos por CGI (a mesma tecnologia que deu vida ao T-Rex de Spielberg e aos dragões de Westeros).

Na Era do Irreal, até mesmo o sexo entrou na jogada. A ferramenta Stable Diffusion tem a mesma função que o Dall-E e o Midjourney. A diferença é que, desde agosto, ela se tornou uma ferramenta de código aberto, o que permite derrubar certas restrições de conteúdo como a de pornografia.

Dá para pensar em uma série de vantagens, em termos de segurança, o fato de atrizes e atores reais serem dispensados desse tipo de atuação. Por outro lado, do que viverão plataformas como OnlyFans, que se viabilizou comercialmente com as “pessoas comuns” rentabilizando seus nudes? Como distinguir pessoas reais de modelos AI?

O tamanho do mercado

Os números e as previsões variam muito, mas o “mercado do irreal” foi avaliado em 2020 em algo por volta dos US$ 15 bilhões com um CAGR em torno de 40% ao ano. Nesse ritmo, deve passar a barreira do trilhão de dólares até 2030.

Hoje, o mercado de AR é maior que o de VR, mas acredito que a tendência é essa equação se inverter, sobretudo por essa nossa tendência ao irreal. Afinal, uma pessoa normalmente tímida e que gagueja nas apresentações pode criar no Metaverso um avatar que seja totalmente desenvolto na hora de falar em público.

Quem não sonha com uma versão melhorada de si mesmo?

Vamos ter de rediscutir conceitos básicos como realidade e ficção, até onde a interação online pode substituir o bom e velho encontro pessoal, o que é arte, o que é correto e qual o comportamento indevido em um ambiente em que as pessoas podem, por definição, desempenhar qualquer papel que quiserem. As fronteiras entre realidade e ficção estão mesmo fadadas a se tornarem quase inexistentes? Como vamos lidar com isso? O resultado ruim que alcançamos no mundo todo até agora com o combate às fake news eleitorais não nos autoriza a muito otimismo.

*Omarson Costa é chairman da The Next Billion, diretor de Negócios na Accenture e conselheiro de administração para empresas dos setores de telecomunicações, serviços, publicidade e educação

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