Perdas humanas são sempre trágicas, mas não se engane: para os políticos, lato sensu, elas são apenas uma variável da função que define o grau de sustentação do poder (Ricardo Moraes/Reuters)
A ciência gosta de calcular por meio de porcentagens a letalidade de um fenômeno qualquer. Até o momento, as mortes por Covid-19 pelo mundo resvalam em 0,1% da população nos casos mais agudos. É relativamente aceitável? Não chega a ser motivo para manchetes. Mas, e se você disser que o Brasil deve passar das 200 mil mortes pela ação do SARS-CoV-2? É bem mais impactante.
Perdas humanas são sempre trágicas, mas não se engane o leitor, ou leitora: para os políticos, lato sensu, elas são apenas uma variável da função que define o grau de sustentação do poder. Outra variável é a narrativa para explicar as fatalidades. Uma boa narrativa pode, em consequência, neutralizar um alto número de mortes, quando se calcula o efeito político delas.
Eis por que o governo federal se agarra à denúncia da resistência dos adversários à cloroquina. Há alguma evidência de que o uso precoce dela teria reduzido as contabilidades fatais? Nenhuma. A ciência já largou de mão faz tempo. Mas isso pouco importa. Interessa antes de tudo fornecer argumentos a quem vai te defender, na mesa do bar ou na reunião da família.
Mas seria injusto particularizar a caracterização no governo federal. Veja-se por exemplo a situação de São Paulo. Até sexta-feira o estado tinha 728 mortes por milhão de pessoas. São Paulo desde o início escalou uma profusão de celebridades científicas para dar cobertura à política. Depois implantou um sistema labiríntico para a saída da quarentena, o Plano São Paulo.
Bem, com suas 728 mortes por milhão, São Paulo está pior que o Brasil no seu conjunto, onde o número até sexta-feira estava em 641. É razoável deduzir então que o enfrentamento da Covid-19 vem sendo pior em São Paulo que no resto do país? Fica a dúvida. Mas é inegável que a performance de “culto à ciência” está ajudando, e bem, o Bandeirantes a atravessar a borrasca.
Voltemos aos 0,1%. Suponhamos que a China tivesse deixado a doença seguir seu curso natural, como fizeram em grande medida o Brasil e os Estados Unidos. É razoável projetar que teríamos então mais de um milhão de chineses mortos pela ação do SARS-CoV-2. Explica-se portanto o duríssimo rigor das autoridades ali. Seria um número de alta letalidade política e propagandística.
Números são números. E aí os políticos levam uma vantagem sobre os cientistas. Podem mudar de conversa de um instante para outro, pois no primeiro ramo a coerência não chega a ser um valor vital. Já no ramo científico espera-se que o dito hoje tenha ver com o dito ontem. Se não tiver, é obrigatório explicar por quê.
Uma explicação que os divulgadores científicos estão a dever é sobre o atingimento da imunidade de rebanho. Lá no começo da pandemia afirmava-se que seria necessário contaminar uns 60% da população para as curvas de casos e mortes entrarem na descendente. Bem, elas estão caindo por aqui sem que a população dotada de anticorpos ultrapasse 20%.
Pode ser que haja gente resistente à coisa mesmo sem exibir anticorpos. Ou pode ser que o número estivesse errado. Ou outra hipótese qualquer. Há muitas por aí. Certamente um dia será explicado. De lição, fica apenas constatar, novamente, que ciência de verdade não combina com certezas absolutas a respeito de assuntos que ainda não se conhece bem.
*Analista político da FSB Comunicação. Coluna publicada também nos sites Poder360 e Migalhas